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8 de setembro de 2008

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Cultura

Ian Fleming: O espião de sangue quente


Helena Vasconcelos
Storm / La Insignia. Portugal, setembro de 2008.

 

Ian Fleming ou Conan Doyle? É possível escolher? Em ambos os casos a ficção confunde-se com a realidade, a criação com o seu criador. De Baker Street para o extenso mundo da espionagem, da misantropia e do intelecto de Holmes, Sherlock, para o charme mortífero e a postura física de Bond, James, vai um passo de gigante. Mas os seus criadores tinham muito em comum. Foram contemporâneos, ambos tinham raízes escocesas e tanto um como outro mantiveram uma relação estreita com a imprensa. Conan Doyle , para além de ter produzido panfletos políticos publicou muitos dos seus contos em revistas e jornais - como era hábito nos finais do século XIX - e Ian Fleming foi um jornalista-escritor com uma relação muito próxima, tanto em termos profissionais como até mesmo pessoais, com o universo dos média. Poder-se-ia acrescentar que a obsessão de Doyle pelas ciências ocultas e pelo espiritismo não anda longe do gosto viciante de Fleming pelo secretismo da espionagem, com os seus códigos e cifras secretos. Há quem defenda, por exemplo que a famosa designação de Bond como o agente 007 - um número considerado sagrado - foi inspirada pelo fórmula do infame Dr. John Dee, ocultista, espião e mágico privado da rainha Isabel I - que assinava as cartas para ele com a sigla M - e que o - 7777 atribuído a Bond no último romance escrito por Fleming, "Só se Vive Duas Vezes" significa em numerologia que "é o fim" ou, em linguagem popular, "estás feito!". Existem também elementos cabalísticos : Auric Goldfinger é uma escolha óbvia - o dedo mágico do alquimista que transforma tudo em ouro - tal como Hugo (mente) Drax (dragão).


"Bond… James Bond": o agente secreto mais famoso do mundo com o seu atraente sorriso trocista numa boca cruel, olhar penetrante e voz macia, gestos felinos, rápidos e por vezes mortíferos tornou-se um ícone de uma certa cultura que atravessa classes sociais, ideologias e, principalmente, o tempo. James Bond: um nome "banal e vulgar, curto, nada romântico, anglo-saxónico e muito viril" porque assim o quis o seu criador, o escritor Ian Fleming, nascido em Londres no dia 28 de Maio de 1908. Fleming era um homem sofisticado, cosmopolita, com um à-vontade e auto-confiança que certamente transbordaram para o seu herói. Com um rosto patrício permanentemente tisnado, o cabelo grisalho nas têmporas, o famoso nariz partido, num jogo em Eton, pelo irmão do Primeiro-Ministro Henry Douglas-Home, os irrepreensíveis "smokings", a longa boquilha Dunhill de ébano e o fino cigarro Morland, cujo fumo o envolvia numa nuvem sedutora, o relógio bem preso ao pulso viril, as mãos elegantes e a descontracção dos bem nascidos, Fleming foi, desde cedo, uma personagem tão mítica como a sua criação.

Quando Bond apareceu pela primeira vez - em "Casino Royal", 1953 - o seu autor já era conhecido principalmente nos corredores dos jornais britânicos. Na família era o que menos se distinguira e ficava muito aquém do seu irmão Peter, autor de famosos livros de viagens. Mas era conhecido - e invejado - pelos companheiros do Sunday Times pelo seu elevado salário, pelo sucesso junto das mulheres - a sua relação com Annie, a mulher do director do Daily Mail, com quem acabou por casar, era famosa - e pela forma como, às sextas-feiras, quando todos estavam ainda presos ao trabalho, ele arrancava por volta do meio-dia no seu Ford Thunderbird para ir jogar golfe antes de um dos seus memoráveis jantares. Era o único que, no jornal, tratava o director, Lord Kemsley, pelo primeiro nome com uma intimidade descontraída que impressionava todos, incluindo Godfrey Smith, o jornalista que ainda recorda as maneiras do seu colega de trabalho e a forma como todos tentavam imitá-lo. Na verdade, havia uma razão forte para a estreita relação de Fleming com Lord Kemsley ou simplesmente "K", como era chamado. Tinham-se conhecido durante a Guerra, quando Fleming se dedicava activamente à espionagem e passavam longas noites a jogar cartas.

Em 1915, Kemsley adquirira o Sunday Times e, em 1937, já o jornal era o mais importante da Grã-Bretanha e ele era o dono de um império editorial. Fleming pertencia à mesma classe social: o avô, Robert Fleming, tinha sido um banqueiro de renome, e o pai, Valentine, abatido em 1917 era amigo de Winston Churchill. Ian, educado em Eton e Sandhurst, acabou por ser convidado a sair desta última escola depois de ter contraído uma doença venérea com uma encantadora prostituta num dos múltiplos lugares nocturnos que, desde cedo, passou a frequentar. Em consequência desse incidente foi despachado, em 1935, para Moscovo, onde fez a cobertura, para a Reuters, do famoso julgamento dos engenheiros da Metrovick . Regressou para o lugar de assessor de imprensa do General Godfrey, director da espionagem da Marinha e, daí, para o mundo - incluindo, evidentemente, Lisboa - que percorreu ao Serviço de Sua Majestade. Participou activamente nas conversações em Washington entre Churchill e Roosevelt, durante a Guerra, e teve um papel preponderante na organização da futura CIA. Era conhecido por estar sempre a engendrar golpes contra os alemães - e mais tarde contra os russos - tal como o seu James Bond. A partir de 1945 ocupou o lugar de correspondente no estrangeiro para as várias publicações de "K" e organizou uma equipa de 88 colaboradores - a Mercury - cujos membros se apresentavam como jovens, destemidos e fluentes em, pelo menos, três línguas. Percorriam o mundo em busca de notícias e certamente faziam uns biscates como espiões, lealmente acompanhados pelo seu galante e sofisticado chefe que, entretanto, se dedicava a outras aventuras editoriais. Uma das mais famosas foi a publicação de uma série dedicada aos sete pecados mortais que foram distribuídos pelos escritores que Fleming mais admirava, com Somerset Maugham à cabeça. Este, começou por recusar - mesmo quando Fleming lhe propôs a oferta de "um pequeno Renoir" como pagamento - mas acabou por aceitar, juntamente com Angus Wilson , Edith Sitwell , Cyril Connolly , Patrick Leigh Fermor, Evelyn Waugh, Christopher Sykes e W. H. Auden. A série foi publicada em livro, deixando no entanto, de fora, o pecado que Fleming achava ser o pior de todos: ser-se aborrecido.

Ian não ficou imediatamente famoso com o seu James Bond, cujas aventuras começaram a ser escritas na luxuriante propriedade do autor na Jamaica, (apelidada "Goldeneye", um nome inspirado no romance de Carson McCullers, "Reflexos num Olho Doirado" e ao lado da mansão do amigo Noël Coward; Goldeneye foi, também, o nome de código de uma operação durante a Guerra que visava repelir os nazis se estes entrassem em Espanha. Foi, também, o único filme da série James Bond - com Pierce Brosnan - que não foi adaptado de um livro de Fleming) e Annie chegou a escrever a Evelyn Waugh, queixando-se que Fleming "continuava a martelar a sua "pornografia" sem sucesso ". A pouco e pouco, o interesse aumentou mas foi só quando o Presidente John Kennedy fez saber que " Da Rússia com Amor" se tornara o seu livro favorito, que as vendas nos Estados Unidos dispararam em flecha, chamando, evidentemente a atenção dos produtores cinematográficos. (Fleming conhecera Kennedy e até passara um jantar a dar-lhe ideias para desacreditar Fidel de Castro, ideias essas que o Presidente parece ter encaminhado para o chefe da CIA, com alguns resultados). Em 1962 surgiu o primeiro filme de James Bond, "Dr. No" para o qual Fleming tinha sugerido o seu amigo Noël Coward ou o seu primo Christopher Lee para o papel do vilão e Roger Moore ou David Niven para o de James Bond que acabou por ser atribuído a Sean Connery com o sucesso que, agora, todos (re)conhecem.

Fleming praticava desporto e coleccionava livros antigos e primeiras edições. Não se interessava especialmente por festas e pela vida de sociedade mas, em casa, tinha prazer em bater em Annie, de vez em quando. Ela dizia que também gostava e chegou a escrever-lhe, numa carta, as seguintes palavras: " Sinto-me muito só quando se passam mais do que cinco minutos em que não me bates nem me gritas. Devo ser perversamente masoquista por gostar que me chicoteies e me contradigas, principalmente porque nunca tens razão. " No entanto, apenas se conhecem duas ou três pessoas que não gostavam de Fleming e que o acusavam de ser um snobe excêntrico e sádico. Leitores das suas obras em tempos posteriores apontaram o dedo à sua misoginia, materialismo, violência e completa frieza em relação ao sexo. A questão que se coloca é a seguinte: quanto de Fleming existe em James Bond? Enquanto que Ian mostrava com descontracção o seu lado sedutor, guiando com cuidado o seu Bentley de colecção e evitando os tubarões da sua praia jamaicana, na realidade nunca desejou que o herói por si criado fosse uma personagem simpática. Bond é um assassino frio e desapiedado, embora essa característica pouco atraente faça "parte do seu trabalho". Fleming parece não ter sido especialmente violento ( excepto nas suas "brincadeiras" consentidas com Annie e provavelmente com outras mulheres) e detestava qualquer sinal de violência de rua depois de uma experiência em Istambul que o marcou. Tal como Bond apreciava caviar, sol e praia, carros velozes, "gadgets" e os encantos do sexo feminino mas não gostava de antros como "casinos com o cheiro nauseabundo a fumo e a suor, pelas três da madrugada" ("Casino Royal"), apreciava a companhia dos amigos e a elegância de Monte Carlo. Mas foi Annie quem melhor o descreveu: "Ian era totalmente egocêntrico, uma criança crescida mas eu gostava dele. O seu único objectivo era evitar a todo o custo o tédio, a rotina e as obrigações comuns das pessoas banais. Empenhou-se em construir um estilo de vida que não fosse aborrecido e, com persistência, seguiu esse caminho que o levou até James Bond".


Bibliografia

"James Bond Encyclopedia", John Cork e Collin Stutz, Dorling Kindersley Publishers Ltd
"For Your Eyes Only: Ian Fleming and James Bond " Ben Macintyre, Ed. Bloomsbury
"James Bond: The Authorised Biography", John Pearson, Arrow Books
"Bond Code - The Dark World of Ian Fleming and James Bond", Philip Gardiner, New Page Books
"You Know My Name - The World Of James Bond, 007, In Film And Print", Christopher DeRose, Men's Hour Books
"Ian Fleming and James Bond: The Cultural Politics of 007", Stephen Watt e Skip Willman, Indiana University Press

(A exposição "For Your Eyes Only: Ian Fleming and James Bond" está patente, em Londres, no Imperial War Museum, até 1 de Março de 2009.)

 

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