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1 de maio de 2008

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Cultura

As criaturas de barro de Zé do Carmo


Marco Albertim
La Insignia. Brasil, maio de 2008.

 

Cangaceiros com asas de anjo. Anjos com fuzil no ombro, revólveres na cintura, balas, punhal comprido; carregando alforge e chapéu de couro na cabeça. O que há de comum sob o chapéu, é que tanto o arcanjo quanto o cabra têm cabelos finos, desalinhados, no molde da cabeça torneada. Assim os fez, os faz, o ceramista Zé do Carmo. Ele desceu da rua da Conceição, uma rua urbanizada, com luzes ralas a partir das cinco horas da tarde; desceu para o Baldo do Rio, de onde tirou o massapé para moldar suas criaturas diabo-angélicas. Foi há sessenta anos, em Goiana, Zona da Mata de Pernambuco.

Saíra antes, junto com a mãe, do Abrigo da Misericódia, nos fundos da igreja do mesmo nome. Moraram ali filho, mãe e pai, por mercê do padre. O pároco os queria sob o altar, para fazer de Zé do Carmo um carmelita; para cuidar da horta, dos jardins, do pátio de entrada, com piso de cimento. A velha fora servil e zelosa. Com a morte do pai, Zé do Carmo e a mãe saíram do abrigo. O negrinho nascera feito um curumi miúdo, cresceu doentio; com ungüentos da horta e promessas ao santo, curou-se de malária, de impaludismo. Daí em diante chamaram-no Zé do Carmo, para tributar à santa que o socorrera.

O moleque não tinha olhos para os santos, inda que se impressionando com a coragem de São Jorge matando o dragão. Absorveu a quietude dos olhos de cada anjo na abóbada da igreja, injetou-a no rosto de Corisco, o cangaceiro malvado. Corisco ganhou asas de anjo nas mãos de Zé do Carmo; nas mãos, nas espátulas e no cinzel dele. Lampião, o Virgulino, Zé do Carmo o manteve com os óculos redondos, de aro fino; os cabelos descidos sobre os ombros, e um par de asas do tamanho das espáduas do cangaceiro.

Zé do Carmo é o único ceramista do Brasil que apetrechou anjos com armas do cangaço; que deu feições de anjo a Lampião e seus homens. "O cangaceiro era um retirante, tangido pela seca; não tinha terra nem boi pra criar. Foi ser cangaceiro pra num morrer de fome, com raiva dos coronéis." A casa onde mora é sua; é a primeira, a única que conseguiu comprar com o dinheiro do comércio de estatuetas rebeldes. Quando saíra do abrigo, foi morar na beira do rio junto a pescadores de caranguejo, gente tão pobre quanto ele. Com a morte da mãe, juntara algum dinheiro e comprou a casa da rua da Conceição.

A fama de sua cerâmica rompeu os limites do município. Tornou-se, ele, objeto da curiosidade de antropólogos, sociólogos. Gilberto Freyre visitou-o ao lado de uma comitiva de curiosos. "Não tem medo de contrariar a Igreja com suas estátuas profanas!?" - Perguntaram-lhe. Ele deu de ombros, do mesmo modo quando o padre o quisera catequizar para que usasse a batina dos carmelitas. Zé do Carmo não é um rebelde, respeita a autoridade do clero e não se subordina. Os traços de suas imagens são tão simples quanto os de um retirante da seca; não têm rancor nos olhos, não falam, mas olham oblíquas, pedindo explicação para o rumo de suas vidas.

A casa de Zé do Carmo é ateliê e loja. Mora com a mulher, nunca teve filhos e não dá explicação. Passou dos 70 anos. Foi robusto, hoje é magro, tem no rosto o perfil de um corvo; na cor e nos traços. O ateliê já foi muito visitado, fizeram-lhe romarias; gentes de outros Estados. Ele passa o dia sentado numa cadeira, na loja, ao lado do ateliê. A mulher, Rosa, não se mete no comércio, não dá palpites na criação do ceramista. Ele a provisiona do necessário para os dois. Não há luxo na casa. Os móveis são mantidos luzidios, na cor negra da cabiúna. Xícaras, pratos, talheres, tudo combinando com o formato cilíndrico da mesa, do armário, das cadeiras. Ao meio-dia, da cozinha desprende-se o cheiro do feijão na panela. O ambiente cobre-se do cheiro da comida. O casal não usa mais panelas ou alguidares de barro. O carvão sob as trempes, substituiu-o por um fogão a gás. Não se queixa da vida, Zé do Carmo. Guarda nos olhos uma tristeza inconfessa, raramente sorri. Se o incitam, solta uma conversa confusa; o propósito é instilar mistério no ato de moldar estatuetas ecumênicas. Fala, sem dar substância à palavra, na "transfiguração" pela qual passou, quando distinguira no cangaceiro um querubim.

O pequeno comércio que trouxe turistas a seu ateliê, sumiu-se com a rua vazia. Ele assunta sozinho, lembrando-se de diálogos remotos. O asseio de seu ateliê, de sua loja, atrai para um serão sestroso. Zé do Carmo é o mesmo, seu estátuas se confundem com a paisagem já conhecida de todos.

Incitaram-no a visitar o papa, dar-lhe um presente; inda que com o risco de excomunhão. Ele moldou um cangaceiro tão puro quanto Gabriel, o anjo bom. Daria, ajoelhado, rogando-lhe a bênção, a João Paulo II. O pontífice veio a Recife, o arcebispo Dom Hélder Câmara fez as vezes de cicerone. Uma multidão aclamou o santo padre. O cardeal Marcinkus, desconfiado, não se impressionou com os gritos do povo; passeou seus olhos por cima dos fiéis, ignorando a oferenda pagã a caminho; pagã e de boa-fé.

Dom Hélder viu Zé do Carmo entre a multidão ruidosa, chamou-o para mais perto. Quando o embrulho com a estatueta foi desfeito, perguntou, inquieto, temendo por certo a proibição do cardeal Marcinkus:

- O que é isso, rapaz? Cangaceiro com asas de anjo!?

A estatueta ficou mas não foi levada para Roma. Zé do Carmo, pressionado pela devoção da multidão, balbuciou rezas sem nunca tê-las na cabeça. Não se aproximou do papa, não o permitiram. Voltou para casa oculto entre os romeiros, sem falar no assunto.


Marco Albertim (marcoaca[arroba]uol.com.br) é escritor e jornalista.

 

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