20 de agosto de 2008
A Rússia ameaça a NATO. A Rússia ameaça a Ucrânia. A Rússia ameaça as relações com os EUA. A Rússia ameaçou cortar os fornecimentos energéticos a parte da Europa. A Rússia utiliza o cínico argumento do "humanitarismo armado" para canibalizar a Geórgia e ameaça quem ataque as suas, imagine-se, "forças de paz". A Rússia ameaça, sem mais: são assim, desde a consolidação da ordem de Putin, quase todas as notícias que chegam do antigo centro do bloco comunista. É certo que o precedente do Kosovo, o aventureirismo do presidente Georgiano, a tibieza europeia e a "democratização" iraquiana propulsionaram as mais recentes ameaças russas, mas exige-se mais da comunidade internacional na reacção a essa conjugação de força bruta, sobretudo por parte de quem viveu durante décadas sob a ameaça soviética na Europa ocidental e quem de facto experienciou a sua barbárie na Europa de Leste.
A Rússia passou directamente do totalitarismo comunista para o totalitarismo das máfias, da corrupção, do autoritarismo de Estado e de clientelas do antigo PCUS que rapidamente foram absorvidas pela "abertura" pós-soviética. Todos os sinistros membros do aparelho repressivo comunista fortaleceram o seu poder nos escombros da URSS à sombra da recuperação da simbólica imperial da Rússia -- um país-continente que nunca existiu sem ela --, da exploração dos seus imensos recursos naturais, da hostilização das suas antigas "democracias populares" e da dependência energética europeia. Aos poucos, isso tem vindo a desenhar um lento mas sólido guião de uma Rússia militarizada que necessita tanto das mundivisões da Guerra Fria quanto o resto do mundo não precisa delas.
A Rússia tem restaurado o seu papel na cena política internacional optando invariavelmente pela duplicidade, pela ameaça, pela máscara, navegando em águas turvas e turvando-as para nelas navegar. É assim na ONU, nos dossiers nucleares iraniano e norte-coreano, no alargamento da UE, na expansão da NATO, na relação com a China, em tudo. E a tudo isso, até agora, a Europa e a NATO foram incapazes de assumir aquilo que Luís Amado definiu como uma posição de força sem agressividade, que já não seria pouco. A curto prazo, como se viu nas últimas semanas, passará por aí a capacidade de afirmar (ou não) a sustentabilidade de uma União Europeia tal como a conhecemos. Ou, melhor dizendo, com os países que conhecemos. Sem fantasmas, mas com uma mínima ideia colectiva do que pretendemos no horizonte de uma comunidade alargada de democracia e segurança.