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25 de novembro de 2007

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Cultura

Santa Maria de Iquique, há cem anos


Ivy Judensnaider
ArsScientia / La Insignia, novembro de 2007.

 

Há cem anos

Há cem anos, uma revolta promovida pelos trabalhadores de minas de salitre por melhores condições de trabalho, em Santa Maria de Iquique (Chile, região desértica de Atacama), acabou em massacre. Em Iquique, o ambiente era insalubre: os mineiros trabalhavam de oito a dez horas por dia; no verão, enfrentavam temperaturas elevadas e, no inverno, extremamente baixas; a água não era potável, e o esforço para carregar o salitre era subumano. Os trabalhadores, dependendo da mina, estavam submetidos ao pó asfixiante, aos perigos dos explosivos usados para explorar as minas e às tragédias por mau funcionamento do maquinário utilizado na extração e refino do salitre. Eram comuns os castigos físicos e os mineiros também estavam sujeitos aos gases venenosos, em locais que careciam de luz, água e ventilação apropriada. Sem qualquer proteção social, sequer recebiam salário: ao invés de dinheiro, mesmo que a título de injusta remuneração pelo esforço de extrair o oro blanco da terra, recebiam vales, fichas cambiáveis apenas nos locais autorizados pelos proprietários das minas, embora a lei proibisse particulares de emitir moeda ou algo semelhante.

No mundo todo, o crescimento do proletariado trazia à tona o debate sobre as condições de vida e de trabalho, bem como discussões a respeito da utilização da greve como instrumento de luta e defesa dos interesses dos operários. Não apenas na extração de salitre, que empregava cerca de 35 mil trabalhadores em 1907 (no total, 110 mil trabalhadores em todo o setor salitreiro, sendo destes 66 mil chilenos e 12 mil bolivianos), em todas as áreas da economia chilena eram os operários mal tratados e mal remunerados, e as greves eram freqüentes.

Segundo o historiador Sergio Grez Tozo, o movimento chileno transitava de um modelo primitivo, com combates pré-políticos e formas de organização rudimentares, para outro modelo mais moderno, em que se mantinham elementos dos antigos fundos de ajuda mútua, ao mesmo tempo em que novos elementos do movimento proletário mundial eram absorvidos (elementos esses que estariam finalmente cristalizados na Revolução Mexicana de 1910, e na Russa, de 1917). A linha difusa entre greves com reivindicações claras e greves com um contorno menos nítido seria comum durante o final do século XIX e o início do XX: geralmente, as variáveis que definiam o perfil das greves estavam relacionadas ao tipo de atividade econômica de onde nasciam os movimentos, grau de sedentarização e proletarização da mão-de-obra, e às conexões com esferas mais politizadas e organizadas do movimento operário internacional. No caso de Iquique, alguns elementos apontam para a participação de operários anarquistas no fomento, organização e condução da greve, como evidencia a liderança do norte-americano José Briggs e de Luis Olea Castillo, considerados próximos ao movimento anarquista (Briggs, depois, ao perceber os rumos que a greve de Iquique tomava e já adivinhando o seu trágico final, proporia aos Estados Unidos que concedessem asilo político aos principais partícipes do movimento).

A pauta de reivindicações dos mineiros de Santa Maria de Iquique revela que o núcleo dos protestos estava localizado nas questões específicas da atividade mineradora: a greve tinha como objetivo obter melhorias como aceitação geral dos vales usados como pagamento ou a substituição dos vales por dinheiro, a construção de escolas noturnas, condições menos insalubres nas salitreiras, e liberdade de movimento para os trabalhadores (eles, sequer, podiam sair das Oficinas ou receber visitas externas sem a aprovação e o consentimento dos administradores). A Intendência das minas aguardou a chegada da força militar, enquanto negociava com os grevistas, simulando interesse. Depois de buscar abrigo na Escola de Santa Maria, os trabalhadores foram atacados pelas milícias.


A economia salitreira

Para as autoridades chilenas, a questão trabalhista nas minas era um problema britânico, já que os ingleses eram os donos das minas desde a vitória chilena contra a Bolívia e o Peru na Guerra do Pacifico (1879 - 1883): àquela época, as terras ricas em nitratos (de Tarapacá até Antofogasta) haviam sido facilmente compradas pelos britânicos por causa da baixa dos títulos e das ações durante o conflito militar.

As terras salitreiras forneciam o salitre, o oro blanco formado pelo processo de evaporação de águas subterrâneas filtradas pela Cordilheira dos Andes. O salitre, origem inclusive da disputa entre Chile, Bolívia e Peru, tinha a sua procura historicamente ligada aos interesses da fabricação de pólvora e manipulação de metais preciosos para o fabrico de moedas desde o século XVIII. Também era utilizado para a agricultura, pois apresentava propriedades fertilizantes. Já era mencionado pelos viajantes naturalistas que visitavam e mapeavam os países da América Latina, inclusive o Brasil, e que recebiam instruções de buscá-lo e identificar suas fontes; Charles Darwin, em visita a Iquique em 1835, também descreveria essas terras. O trabalho cuidadoso e detalhado da historiadora da ciência Márcia Helena Mendes Ferraz, quando do estudo sobre a produção de salitre no Brasil colonial, menciona as "cinzas e terras nitrogenadas", lugares onde se poderia encontrar o salitre. Não apenas aquele depositado naturalmente, mas também o possível de ser extraído em tanques artificiais que, "tratados de forma adequada, depois de um certo tempo dariam o precioso sal".

A economia chilena, ao final do século XIX e início do XX, era de natureza monoextrativista e latifundiária, exportando salitre e importando manufaturados; caracterizava-se, portanto, por uma alta vulnerabilidade às oscilações de preço do nitrato no mercado internacional. O negócio envolvia a busca de terrenos, a extração do caliche e a elaboração do salitre nas Oficinas. O oro blanco vindo das minas passou a ser a principal atividade econômica do Chile, após o abandono paulatino da monocultura agrícola: ao tempo das idéias de Adam Smith, buscava-se espaço no mercado internacional através da exportação de mercadorias em cuja produção havia vantagens competitivas. Assim, em 1890, 52% das rendas obtidas em exportação vinham do comércio do salitre, e quase 60% da exploração salitreira estava nas mãos de estrangeiros, especialmente ingleses. A figura do inglês Thomas North, dono da companhia distribuidora de água potável, de quinze oficinas salitreiras, quatro ferrovias, proprietário do Banco de Tarapacá e Londres e da companhia distribuidora de alimentos, é emblemática e simbólica do predomínio inglês nos negócios chilenos. O Império Britânico expandia-se; concomitantemente, os países recém-saídos da condição de colônia ocupavam-se com a busca de suas identidades como Estados-nação. Assim, se a atuação da sociedade chilena originava-se dos elos construídos entre a comunidade inglesa e a burguesia nacional, do ponto de vista político-econômico a fricção se dava nos movimentos do capital privado - nacional e internacional - e o setor público. A oligarquia nacional oscilava entre defender os interesses do capital britânico ou se opor às ameaças do oligopólio estrangeiro naquilo que era a principal fonte de riqueza da nação, e a guerra civil de 1891, embora não diretamente relacionada à questão das propriedades das minas de salitre, evidenciou os conflitos existentes no seio da burguesia chilena. Eram estes os conflitos que deixavam transparecer as lutas por uma maior representatividade no governo - espaço da prática política -, e as discordâncias sobre a nacionalização das riquezas em posse dos estrangeiros. De qualquer forma, tanto a elite oriunda do capital nacional quanto a elite com origem no capital estrangeiro apoiavam-se na força repressora do Estado para garantir a continuidade dos negócios e do lucro que o salitre trazia, fazendo inclusive uso de forças policiais para garantir a ordem em dias de pagamento dos salários dos operários salitreiros. Em 1907, a participação do salitre chegaria a 44% das rendas chilenas com exportação, rendas essas advindas dos impostos aduaneiros, já que todo o negócio de exploração, produção e transporte do salitre estavam em mãos estrangeiras.

À revolta de Iquique, a milícia respondeu com violência e algumas estatísticas apontam perto de três mil mortos. Há cem anos, em 21 de dezembro de 1907, os trabalhadores de Santa Maria de Iquique foram assassinados e a greve encerrada.


O legado de Iquique

O salitre continuou como sustentáculo da economia chilena até 1929: no mínimo, representaria 45% das rendas com exportação até 1923. De 1924 a 1929 perderia participação na pauta de exportações do Chile, decrescendo continuamente, e alcançando não mais que 23% em 1929. A partir desta data, a economia chilena daria impulso a três processos: o primeiro, em decorrência das dificuldades originadas pela Quebra da Bolsa americana, de transição do modelo monoexportador para o modelo de substituição de importações, buscando implantar no país uma indústria que pudesse suprir as necessidades de bens industriais e manufaturados; segundo, o de substituição do salitre pelo cobre, especialmente em função da queda internacional dos preços do nitrato ocasionada pela concorrência da produção, na Alemanha, do amoníaco sintético, similar ao salitre (substituição essa levada a cabo com eficiência já que, durante o período da II Guerra Mundial, o cobre chileno responderia por 18% de todo o metal consumido no conflito); finalmente, o terceiro, de mudança no perfil dos investidores externos com significativa participação nos negócios chilenos, trocando o predomínio inglês pelo americano, mudança essa finalizada com a II Guerra Mundial e a posterior política internacional hegemônica dos Estados Unidos em todos os cantos do mundo.

A questão da nacionalização das minas (de cobre, já que as de salitre nada mais valiam) perpassaria a história do Chile nos mais diversos momentos ao longo do século XX: a nacionalização, iniciada no governo de Eduardo Frei (1964 - 1970), estaria finalizada com Allende. O golpe de 1973, quando Pinochet toma o poder à força, reverteria o processo: não apenas o General retrocederia em relação à nacionalização das minas, como também entregaria o restante da economia aos americanos e ao capital internacional, seguindo à risca aquilo que, no futuro, o discurso midiático chamaria de processo de globalização. Antecipando-se em quase duas décadas, Pinochet instituiria o livre comércio e o processo de desregulamentação da economia sob os auspícios teóricos de Milton Friedman, enterrando o modelo de Estado desenvolvimentista e condutor do processo de industrialização a partir das substituições das importações. Como herança, além dos milhares de mortos e desaparecidos (e as mãos de Victor Jara barbaramente decepadas), deixaria o Chile com índices invejáveis de crescimento, uma economia monoexportadora de produtos primários e importadora de manufaturados, e totalmente vulnerável ao preço internacional do cobre. Dependente do capital externo, o Chile é hoje o país com uma das mais injustas distribuições de renda da América Latina (atualmente, o quarto pior índice de Gini, o mesmo que a Colômbia, e logo após o Brasil, Paraguai e Bolívia).

A revolta de Iquique e as mais de 200 greves que aconteceriam entre 1902 e 1908 (50% delas na zona salitreira) deixariam como legado os pavimentos para a construção do sindicalismo chileno. Quase sempre vinculado ao modelo econômico vigente e às condições da economia de cada época, este sindicalismo se desenvolveria a partir de três grandes vertentes, e já presentes na greve de 1907: o anarcosindicalismo, o assistencialismo e o sindicalismo propriamente dito. No governo Allende, em função das rachaduras e conflitos entre várias correntes da esquerda, inúmeros setores entrariam em greve (inclusive em uma mina de cobre nacionalizada, El Teniente). Com o golpe militar de 1973, a luta operária sofreria um grande revés com o desmanche dos sindicatos, e a prisão ou assassinato de seus líderes. Nos dias de hoje, (e como no restante do mundo, aliás) o movimento sindicalista busca discutir o modelo econômico mais adequado ao Chile, o papel do Estado dentro desse modelo e como provedor de benefícios sociais, e a defesa dos direitos dos trabalhadores.

Em 1970, Luis Advis compôs a Cantata de Santa Maria de Iquique, que logo se tornou um hino em prol dos movimentos operários durante as décadas de 70 e 80. A matança ainda inspirou obras literárias (e as de Hernan Rivera Letelier e Eduardo Devés são as mais conhecidas) que, mesclando o gênero literário e o estudo histórico, preencheram as lacunas que a ausência de fontes primárias e outras fontes documentais nos deixaram de herança. Quanto às velhas oficinas salitreiras abandonadas no desértico clima árido, elas hoje revelam apenas vestígios da riqueza que um dia o salitre trouxe ao Chile. Segundo o emocionado e poético texto do escritor, educador e investigador Juan Adrada, à paisagem dos pampas salitreiros somam-se as fantasmagóricas sombras do antigo clube da sociedade huberstoniana, com seus bilhares, cozinhas, salão de bailes e piscina. O portentoso teatro municipal é prova da pujança da região no começo do século XX, bem como as velhas máquinas, casas de operários, trilhos de trem. Símbolos de um passado glorioso e de lutas, as Oficinas Salitreiras de Humberstone e Santa Laura, da região de Tarapacá e Antofogasta, província de Iquique, empreenderam pedidos em 2003, junto à Unesco, para serem alçadas à condição de Patrimônio Mundial.

De Iquique, não restaram apenas músicas, obras literárias, ruínas. Sobrou também a construção equivocada do mito da Terra Mãe, de seios fartos e generosos, sempre disposta a fornecer riqueza e fortuna, apesar das evidências do desgaste de recursos que, todos sabemos, são parcos e finitos (e a escassez de água - no Chile e no restante do mundo - é prova disso). Mesmo os exemplos históricos de mudanças tecnológicas e científicas como as que produziram, por exemplo, o salitre sintético, mostraram-se insuficientes. Nos dias de hoje, as exportações chilenas (mais de 60%) ainda têm origem nas atividades de extração de minérios e outros recursos naturais.

Aparentemente, tampouco se aprendeu algo a respeito dos riscos de manter uma economia baseada, em grande parte, nos lucros advindos da exploração de um único produto: atualmente, o cobre representa 30% do total de exportações chilenas (o Chile é responsável por 40% das exportações mundiais do metal). Também passou ao largo o passado traiçoeiro, devorador e predatório do capital internacional. Modelo e exemplo da "globalização que pode dar certo", a estrutura econômica chilena é resultado de ações aprovadas pela comunidade internacional e que até podem se traduzir em crescimento, mas que dificilmente geram desenvolvimento ou bem estar social.

De herança, Iquique deixou lembranças dos primórdios heróicos do movimento sindical chileno que, hoje, tenta se recuperar dos amargos anos da ditadura militar, procurando vias de resistência ao discurso conformista da adesão à globalização. Deixou também uma lição que não foi aprendida. Do oro blanco ao oro rojo. Ao que parece, en Chile no pasa nada (1). Ao menos, enquanto durarem as reservas de cobre...


(1) Nada acontece no Chile. Segundo Alfredo Sirkis em Roleta Chilena, era a expressão com a qual os jornalistas sediados em Santiago avisavam às redações sobre a ausência de novidades no quadro político chileno, às vésperas do golpe que, pegando a todos de surpresa, acabaria por tirar El Chicho (Allende) do poder.

 

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