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La insignia
2 de junho de 2007


O pai dos burros*


Otaciel de Oliveira Melo
La Insignia. Brasil, junho de 2007.


Era assim que meu pai "apelidava" os dicionários. Naturalmente, ele confundia burrice com ignorância, confusão ainda hoje reinante em muitas das pessoas que nasceram nas primeiras décadas do século passado. Para mim, quando criança, esta foi uma qualificação infeliz, porque me trouxe uma séria de problemas para o meu aprendizado (como veremos adiante), na qualidade de primogênito, cujo pai era uma guarda do serviço de Endemias Rurais a espargir DDT nos potes de água das casas das cidades interioranas dos Estados da Paraíba, Alagoas e Pernambuco, com o objetivo de combater a malária e a febre amarela. Não demorávamos muito em cada comunidade receptora do veneno, e por isso eu me matriculei pela primeira vez numa escola pública quando já tinha 11 anos de idade. Antes disso, quem me deu um pouco de luz foi minha mãe, que me ensinou o alfabeto e a soletrar as primeiras palavras ou frases do tipo "Maria colheu os morangos e Pedro comeu as uvas" , muito embora eu nunca tivesse visto, até então, uma uva ou um morango ao vivo.

À época, a minha timidez era proporcional a minha confusão vocabular: eu não sabia se tratava uma adolescente da minha idade por você, senhorita, senhora ou por dona Clemilda. Escrever uma carta ou mesmo um bilhete para uma namoradinha era um Deus nos acuda.

Por causa de um acidente, naqueles tempos considerado grave, meu pai havia fixado residência numa cidade próxima a Recife e já não era mais um nômade. Aposentara-se por causa do acúmulo de água na pleura, motivada por uma queda de um jumento, veículo freqüentemente utilizado pelos funcionários do Departamento onde ele trabalhava. Foi graças a esta queda que comecei a freqüentar regularmente uma escola pública em Cavaleiro, Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco.

Essa escola tinha somente uma professora, a Dona Raquel, solteirona vaidosa e bonita, no auge dos seus 35 anos, que se dividia entre os alunos da primeira, segunda, terceira e quarta séries primárias. Isto mesmo: uma única professora para cerca de 80 alunos de quatro séries diferentes que se acotovelavam numa única sala de aula de 50 m2. Era um grande pandemônio! Enquanto a professora explicava para uma turma da quanta série os segredos da divisão de uma laranja em quatro ou oito partes iguais, as outras tinham que fazer exercícios de "interpretação de textos", decorar tabuada ou o nome dos rios mais importantes do mundo, aprender divisão com números decimais, colorir inapropriadamente a bandeira do Estado de Pernambuco, enfim, ocupar o tempo da maneira mais variada possível, pois Dona Raquel tinha muito boa vontade, mas lhe faltava o dom da ubiqüidade. Essa professora morreu solteirona, soube muito tempo depois. Se na qualidade de seu aluno,eu fosse de maior idade, provavelmente isso não teria acontecido.

Mesmo assim terminei a quarta série primária e fui fazer o preparatório para o Exame de Admissão numa escola mais organizada, o Instituto 17 de Janeiro, em Coqueiral, Município do Recife. Desnecessário dizer que durante o preparatório o meu grande "calo" continuava sendo a língua portuguesa. Porém, apesar de todas as deficiências acumuladas ao longo dos tempos de escuridão nas cidades interioranas mal iluminadas de conhecimento, consegui uma boa colocação no final do ano e uma meia bolsa para um ginásio privado, o Wanderley Filho, em Tejipió, escola conhecida pela ferocidade com que o diretor e dono, professor Queiroz, tratava o corpo discente. Perdi a meia bolsa quando descobriram que eu gazeava muitas aulas com a finalidade de assistir às seções matutinas do Cinema Moderno, que ficava no centro do Recife, ou bater "pelada" nos campos do Sancho, uma área ainda pouco habitada por situar-se em torno de um hospital que tratava de tuberculosos.

Aos 13 anos conheci um adolescente que viria a ser um dos melhores amigo de toda minha vida, o poeta José Carlos Targino Bezerra. Ele era chegado à leitura, me estimulava a decorar as capitais de todos os países do mundo, escrevia as poesias que eu enviava às minhas namoradas como se fossem de minha autoria (ele sabia da apropriação indébita) e me emprestou o primeiro livro que li em minha vida : "O último trem de Berlim". Escrito numa linguagem simples e direta, o livro contava a história de alemães que no final da segunda guerra mundial se alimentavam de papelão que, uma vez impregnado de certos produtos químicos, se assemelhava a bacalhau. Contudo, apesar da simplicidade da narrativa, eu não compreendia certas palavras do texto e, com vergonha de reconhecer a minha necessidade de recorrer ao "pai dos burros", omitia essas pequenas dificuldades a meu amigo Targino.

Em 1964 minha família mudou-se para Água Fria, um bairro bem próximo do centro da capital pernambucana, e por algum tempo senti a falta da companhia do meu melhor amigo. Fui estudar num colégio público, o Alfredo Freyre, desta feita repetindo a terceira série ginasial, consciente de que aquela seria a última oportunidade que teria como estudante, pois uma outra reprovação na mesma série, ainda que a primeira não tivesse sido numa escola pública, equivaleria ao que hoje é conhecido como jubilação.

Outras amizades foram se desenvolvendo, agora com pessoas que gostavam de estudar matemática, física e química, até que ao longo de alguns dias do mês de maio de 1965 ocorreram dois episódios que mudaram a minha vida para sempre: a) conheci um estudante de Geologia; b) constatei que não sabia o significado da palavra excede.

Antônio Honório era estudante de Geologia e me foi apresentado pelo amigo Mário, o papa da matemática do Colégio Alfredo Freyre. Antônio era um sujeito extremamente simpático e comunicativo, e a minha primeira pergunta dirigida a ele foi "que diabo é Geologia?". A resposta foi bastante longa e a ela se seguiram novas oportunidades de questionamentos, de tal maneira que lá pelo quinto encontro eu tinha decidido, com a mais absoluta clareza e certeza, que iria estudar Geologia.

Mas a síndrome da deficiência lingüística ainda me acompanhava por onde quer que eu fosse, e o exemplo mais notório de que a doença era grave foi explicitado quando, na semana seguinte, estávamos eu e mais dois amigos estudando matemática na casa de um deles. Foi quando nos deparamos com o enunciado de um problema simples que dizia o seguinte: a soma de dois números é igual a 12 e um deles EXCEDE o outro de 4 unidades. Quais são os números? Por incrível que pareça, nenhum dos presentes sabia o significado da palavra excede. Além disso, na casa onde estávamos não havia um único dicionário.

Foi aí que a frase distorcida pelo meu pai, de que o "dicionário era o pai dos burros", aflorou em toda sua crueza, e reconheci que era eu quem tinha sido burro até aquele momento, por nunca ter consultado o "pai dos ignorantes". Mesmo assim o problema foi resolvido por tentativas, e como os números solicitados eram 4 e 8, começamos a desconfiar que a palavra "excede" significava "a mais".

Saímos dali nos sentindo um bagaço, mas todos reconhecendo a importância de um bom dicionário. Diria até que fomos além: na aula seguinte de português do professor Amauri, contamos o nosso vexame para toda a turma, que não nos poupou de gozações. Eu não liguei para nenhuma delas, pois sabia que uma boa parte dos gozadores tinha a mesma dificuldade. Naquele momento, como que motivado pelas palavras de incentivo daquele excelente professor, solicitei dele que me fizesse uma lista com os títulos das grandes obras da literatura universal, pois eu estava disposto a lê-las. Vaias uníssonas ecoaram por toda sala, com todos duvidando da minha capacidade como leitor. Decidi também, naquele momento, que parte do meu tempo de lazer seria dedicada à leitura.

Depois de tudo isso eu tive uma conversa franca com o meu pai. Eu o convenci de que as palavras burrice e ignorância têm significados distintos e de que uma frase mal dita para uma criança pode dificultar enormemente o seu aprendizado. Ignorantes todos nós somos, pois não conseguimos dominar o universo de conhecimento acumulado pelas artes, técnicas e ciências ao longo dos tempos, principalmente nos últimos cem anos. Basta dizer que os superespecialistas são quase sempre os mais inteligentes e ao mesmo tempo os mais ignorantes homens do mundo.

Para terminar, eu gostaria de dizer algo que todos nós já sabemos, e fechar esta palestra com uma pergunta: nossos cérebros são computadores semelhantes aos PCs cujo sistema operacional é o windows. E eu pergunto: qual é o sistema operacional dos computadores localizados em nossas cabeças? Quem respondeu que o sistema operacional é a nossa língua portuguesa acertou na mosca.


(*) Palestra realizada em 30.5.2007, no Dia do Geólogo, em Fortaleza, Ceará.



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