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La insignia
23 de julho de 2007


Linhagens do pensamento político brasileiro (III)


__La Insignia__
Diálogos
Gildo Marçal Brandão (*)
La Insignia, julho de 2007.



Temporalidades

Delineado o campo analítico, recortado o objeto e formuladas as hipóteses para estudá-lo, cabe agora especificar que o esforço para desentranhar "afinidades eletivas" entre pensadores e entre teorias, continuidades subterrâneas de longa duração e nem sempre percebidas pelos próprios autores-atores, etc., nada tem a ver com a busca de "matrizes ideológicas transepocais" - para usar a linguagem do saudoso José Guilherme Merquior em sua crítica a O Espelho de Próspero, de Richard Morse, que raciocinaria como se existisse uma "cultura política cuja forma mentis foi elaborada pela Espanha filipina e não obstante perdura até hoje" (41). Não se trata sequer de imaginar no plano das constelações ideológicas - ainda que esta seja a esfera do real que muda mais lentamente e tenha maior capacidade de sobrevivência - uma espécie de reprodução dessa história imóvel de cinco séculos que, pela direita e pela esquerda, algumas das "interpretações do Brasil" injetaram no senso comum, teorias segundo as quais o que viria a ser a sociedade brasileira já estava prefigurado civil e economicamente tão logo o português aqui montou a primeira feitoria ou começou a produzir para o mercado mundial. Ao contrário, há que partir da altíssima taxa de mortalidade das iniciativas intelectuais de se haver com nossa experiência, de reconhecer que a história das idéias, das ideologias e das teorias políticas é, em grande parte, um vasto cemitério, de tal maneira que a constituição de "famílias intelectuais" e formas de pensar é mais um resultado do que um pressuposto - padrões que se constituem ao longo de reiteradas tentativas, empreendidas aos trancos e barrancos por sujeitos e grupos sociais distintos, de responder aos dilemas postos pelo desenvolvimento social.

De fato, ainda que deitem raízes numa formação histórica particularmente adversa, as matrizes intelectuais passíveis de rastrear só poderiam existir numa sociedade onde o capitalismo já se houvesse enraizado, quer dizer, não apenas a partir da precoce opção pelo "espírito do capitalismo", mas também quando (e porque) este já lograra ocidentalizar ou criar boa parte das instituições locais, de tal modo que a civilização que aqui se armava passara a estar, como diria Euclides da Cunha, condenada ao progresso (42). Nesses termos, a investigação delimita como ponto de partida que a ruptura básica na curta história de cinco séculos se dá com os oitocentos, e especifica que por mais que haja continuidade entre a colônia e o império, ou entre o império e a república, a criação do Estado político e a liquidação do escravismo colonial - faces do mesmo fenômeno, ainda que dilatadas no tempo - introduzem descontinuidades que redefinem o conteúdo e a profundidade daquela, refutando a idéia de uma história sempre a mesma. Como diz Caio Prado Júnior, o século XIX,

marca uma etapa decisiva em nossa evolução e inicia em todos os terrenos, social, político e econômico, uma fase nova (...) O seu interesse decorre sobretudo de duas circunstâncias: de um lado, ela nos fornece, em balanço final, a obra realizada por três séculos de colonização e nos apresenta o que nela se encontra de mais característico e fundamental, eliminando do quadro ou pelo menos fazendo passar para o segundo plano, o acidental e intercorrente daqueles trezentos anos de história. É uma síntese deles. Doutro lado, constitui uma chave preciosa e insubstituível para se acompanhar e interpretar o processo histórico posterior e a resultante dele que é o Brasil de hoje (43).

Tais matrizes intelectuais são, portanto, produtos, resultados de processos para os quais concorreram múltiplos fatores; embora conhecidas, só puderam ser reconhecidas quando o tecido social adquiriu certa densidade, a sociedade internalizou seu "centro de decisão", intelectuais e grupos encontraram nas ciências sociais o instrumento adequado para pensar sobre si próprios; - e na medida em que conseguem constituir, ao longo de dramáticos processos de substituição cultural de importações e por rala que seja, cultura em sentido sartreano, vale dizer, por destilar uma série de problemas, interpretações, formas de abordagem da realidade do país, controvérsias, êxitos ou fracassos analíticos e políticos que vão constituir um fundo comum ao qual as novas leituras vão sendo obrigadas a se referir no enfrentamento das questões postas pelas circunstâncias históricas (44).

Por isso mesmo, e novamente, não se trata de postular enteléquias que pairam acima dos processos sociais, e muito menos de enxergar sempre no novo o antigo, como costuma ocorrer com os que vêem em tudo a "consciência conservadora", o "estamento burocrático", o "formalismo", a "conciliação", etc. Nada garante, nos momentos em que surgem - confrontando-se sobre o Império, como durante a crise do Segundo Reinado - ou são reinventadas - como nas críticas ao liberalismo e ao republicanismo da Primeira República e mesmo no choque entre desenvolvimentismo e liberalismo em meados do século XX -, que serão elas e não outras que se cristalizarão. Como costuma ocorrer com fenômenos socialmente significativos, também aqui tais formas de pensar, pressupostas, só sobrevivem se forem repostas pelo evolver do desenvolvimento histórico, não sendo possível definir com antecedência quais de seus conteúdos substantivos e esquemas intelectuais sobreviverão; e cada reposição, cujo alcance e profundidade nem sempre se dá imediatamente à consciência, expressa uma mudança de qualidade (para frente ou para trás) no fenômeno ideológico e no próprio processo histórico.


O problema: continuidade encapuzada

Na verdade, uma das mais claras manifestações da rarefeita história cultural e ideológica brasileira é que embora esta seja uma das formas pela quais os intelectuais costumam construir suas identidades, nem sempre é, ou não era verdadeiramente possível situá-los analiticamente em "escolas", "instituições", correntes e tendências coletivas - pretensão que muitas vezes não passa de wishful thinking (dos atores) ou arbitrárias imputações (dos analistas). A vontade de ver "o que ainda não existe, a nação" tem sido responsável por esse singular anacronismo institucionalista que consiste em secionar disciplinar e institucionalmente onde a atividade cultural é incipiente e não há instituições consolidadas e tipos intelectuais e políticos nitidamente diferenciados. O analista assume como critério de verdade o que o ator pensava de si mesmo, toma como boas descrições da realidade as denominações tribais com que cada indivíduo ou grupo lutava para firmar posição em geral tendo como referência alguma firma intelectual européia - nem sempre grande, mas sempre pensada como tal - da qual se pretendia representante no trópico (45). Talvez a crítica mais incisiva deste anacronismo tenha sido de Mário de Andrade, que desconfiava das generalizações apressadas e das críticas prematuramente sintéticas e que, em matéria de pensamento político-social brasileiro, mandava analisar autor por autor, quem sabe obra por obra, antes de se lançar às construções típico-ideais. Como diz em artigo de 1943 contra Tristão de Athayde, considerado então o mais importante crítico do modernismo.

Como crítico literário, Tristão de Ataíde sofria dos defeitos por assim dizer já tradicionais da crítica literária brasileira desde Sílvio Romero. Nesta barafunda, que é o Brasil, os nossos críticos são impelidos a ajuntar as personalidades e as obras, pela precisão ilusória de enxergar o que não existe ainda, a nação. Daí uma crítica prematuramente sintética, se contentando de generalizações muitas vezes apressadas, outras inteiramente falsas. Apregoando o nosso individualismo, eles socializam tudo. Quando a atitude tinha de ser de análise das personalidades e às vezes mesmo de cada obra em particular, eles sintetizavam as correntes, imaginando que o conhecimento do Brasil viria da síntese. Ora, tal síntese era, especialmente em relação aos fenômenos culturais, impossível: porque como sucede com todos os outros povos americanos, a nossa formação nacional não é natural, não é espontânea, não é, por assim dizer, lógica. Daí a imundície de contrastes que somos. Não é tempo ainda de compreender a alma-brasil por síntese. Porque nesta ou a gente cai em afirmações precárias, e inda por cima confusionistas, como Tristão de Ataíde quando declara que o sentimento religioso "é a própria alma brasileira, o que temos de mais diferente (sic), o que temos de mais nosso" (p. 278); ou então naquela inefável compilação de fichário de Medeiros de Albuquerque que censurava um poeta nacionalista por cantar o amendoim "frutinha estrangeira, talvez originária da Síria" (46).

Não é o caso de discutir em pormenor este programa de pesquisa, essa mistura de niilismo e bom senso que consiste em pôr entre parêntesis toda e qualquer tentativa de interpretar a evolução literária e intelectual brasileira como conjunto, para concentrar os esforços nos fragmentos porque as trajetórias individuais são erráticas e o terreno social e ideológico no qual pisam parece mais um atoleiro. De qualquer modo, de lá para cá ele foi em parte realizado - pelo razoável acúmulo de estudos monográficos sobre autores e movimentos culturais, etc. - e, como tal, superado, sem abrir mão, o que teria sido estupidez, das interpretações abrangentes, como, aliás, a própria crítica literária explorou mais e melhor do que ninguém.

Tirando de lado seu mau-humor, o fato é que além de se livrar das bobagens sobre o "caráter nacional", Mário de Andrade, entre outros, flagrou o substrato real da vida intelectual brasileira e, em conseqüência, a dificuldade de apanhar o que, referindo-se à música popular sofisticada, Caetano Veloso denominou certa vez de "linha evolutiva" da cultura brasileira. Para evitar qualquer teleologia, talvez deva falar sempre no plural: as linhas evolutivas. De qualquer maneira, a dificuldade de detectá-la(s) não é apenas acadêmica, mas tem a ver com um problema real: seja qual concepção se tenha do que deva ser a "nação", o fato é que, comparada com outras (com as nações, digamos assim, cuja construção não foi obra exclusiva de suas elites a cavaleiro do Estado, mas contou com a participação ativa das classes subalternas, que por sua vez conseguiram forçar a porta da nova ordem e tomar acento, ainda que lateral, à mesa), a brasileira continua a ser marcada por heterogeneidades estruturais, desigualdades entranhadas e existência de grupos sociais com restritas possibilidades ou capacidades de secretar as instituições e valores que dariam suporte à sua atividade espiritual e política.

Não há nenhuma novidade nessa enunciação, cuja naturalidade foi exaustivamente investigada por nossa sociologia política durante a segunda metade do século XX. Cabe talvez acrescentar que a "imundície de contrastes" por Mário de Andrade nomeada, é conseqüência necessária, talvez inevitável, do processo pelo qual o tipo de organização social que aqui se instaurou consagra a dissociação entre "sociedade civil" e "Nação"; estrutura e dinâmica tão arraigadas que mesmo o extraordinário progresso obtido no terreno da democratização política nas últimas décadas tem sido insuficiente para cancelar a "variedade especial de dominação burguesa" de que falava Florestan, "a que resiste organizada e institucionalmente às pressões igualitárias das estruturas nacionais da ordem estabelecida, sobrepondo-se e mesmo negando as impulsões integrativas dela decorrentes" (47). Desse ponto de vista, as conseqüências sociais e ideológicas desta situação afetam todas e cada particular manifestação cultural e política, bem como todo e qualquer grupo social ou intelectual no país.

Num quadro como este, em que linhas quebradas escondem ou se superpõem à continuidades subterrâneas, não será surpresa constatar que tais "linhas evolutivas", "famílias intelectuais" ou "formas de pensar" não são naturais nem imediatas. De fato, as conexões e continuidades entre representantes de uma mesma tendência ou família intelectual não são dadas espontaneamente, não fazem parte da experiência existencial dos grupos intelectuais e políticos; nossas linhagens não são do tipo que podem ser assumidas orgulhosamente. Fazendo uma comparação: o senador Giorgio Amendola disse uma vez no Senado italiano: "meu bisavô era mazziniano, meu avô era garibaldino, meu pai antifascista, eu sou comunista - esta é a marcha da civilização na Itália". Importa pouco aqui que a história não tenha corroborado a conclusão do argumento, o ponto é que continuidade espiritual desse tipo jamais pôde ser cabalmente estabelecida para o Brasil, ainda que, para determinados grupos conservadores, o Império funcione como uma espécie de idade de ouro da política. Reconhece-se certamente alguma relação entre Pedro I, visconde de Uruguai e Getúlio Vargas, mas seja com for, esta raramente foi uma relação existencial, vivida, mas quando muito intelectual. Em outros termos, trata-se de algo que tem que ser reconstruído intelectualmente para poder ser apropriado experimentalmente. Nesse sentido, sua intelecção depende do momento histórico, isto é, do grau de consciência de que os atores adquiriram de sua própria herança, o que supõe, por outro lado, exploração empírica sistemática e trabalho teórico prévio, sem as quais tais formas não serão expostas à luz, incorporadas à experiência.

Se a comparação acima cabe - além da Itália, cabe lembrar os efeitos culturais dos casos "prussianos" de desenvolvimento do capitalismo, bem explorados pela historiografia -, a fragmentária história brasileira levou a que os pensadores começassem várias vezes do zero, freqüentemente ignorando os que antes deles chegaram a diagnósticos parecidos e soluções similares, descobrissem por conta própria uma série de formulações antecedentes, tivessem precária consciência daqueles que, no passado, adotaram perspectivas "metodológicas" confluentes. Convém observar que este é um fenômeno distinto daqueles investigados à exaustão pela sociologia da ciência: dado o caráter coletivo da atividade científica, há sempre a possibilidade de que pesquisadores façam quase ao mesmo tempo as mesmas descobertas - elas estavam, por assim dizer, no ar, na atmosfera que todos respiravam - ou mesmo reprimam inconscientemente a influência que outros, especialmente mestres, adversários e mortos, exerceram sobre eles. Nada disso elimina o caráter coletivo e acumulativo dessa atividade. No plano que estamos tratando, ao contrário, o encontradiço é a ocorrência de grupos intelectuais (e políticos) novos que se comportam como se a história começasse com eles, como se existisse um grau zero na política ou em qualquer atividade coletiva. Contrapartida de sua percepção da história sempre a mesma, a novidade que esses grupos encarnam irrompe no cenário (político ou cultural) como negação radical de tudo que "aí está"; e só depois de umas tantas desilusões é que se percebe - quando se percebe! - sua homologia com tentativas pregressas, contra as quais se batia, de lidar com os mesmos dilemas históricos e sociais.

Para tomar dois ou três exemplos no plano estritamente intelectual, não deixa de ser surpreendente que o mais vigoroso intérprete liberal da história brasileira, Raymundo Faoro, não reconheça analítica nem politicamente Tavares Bastos como o seu ancestral, embora possa e deva ser lido como um grandioso prolongamento deste em contexto radicalmente modificado. O fato de que Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro seja um brilhante panfleto e Os Donos do Poder um clássico da história política, um essencialmente federalista e o outro não, não deve obscurecer a substancial similaridade do andamento analítico e do diagnóstico do país, em que pese visíveis diferenças de avaliação de determinados atores e conjunturas, como na desqualificação das revoltas regenciais e na crítica aos liberais do Império, com a qual Faoro conflui surpreendentemente com o juízo depreciativo tornado hegemônico pelos conservadores na historiografia brasileira (48). Na mesma direção, Maria Sylvia de Carvalho Franco e Maria Isaura Pereira de Queiroz são capazes de escrever brilhantes livros sobre o trágico destino dos homens livres numa formação escravocrata e sobre o caráter estrutural e não apenas histórico do mandonismo na sociedade brasileira, e Oliveiros S. Ferreira de propor uma inteira interpretação sobre os fundamentos da crise e dos dilemas latino-americanos, todos eles ignorando ou não explicitando o quanto suas análises, sem serem necessariamente conservantistas, são tributárias ou confluentes com as de Oliveira Vianna (49). E foi preciso passar um século de experiência republicana para que elaboração tão estratégica dos fundamentos desta como a de Ruy Barbosa pudesse ser reivindicada sem complexo de inferioridade pelos liberais e posta novamente em circulação, como parecem indicar O Liberalismo e a Constituição de 1988, no qual o organizador Vicente Barreto teve a feliz idéia de alinhar os artigos correspondentes da primeira e da última constituição republicana, e de usar os comentários de Ruy à de 1891 como se fosse à de 1988; e principalmente o ensaio de Bolívar Lamounier sobre o líder do movimento civilista e a construção institucional da democracia brasileira (50).

De qualquer maneira, o conservantismo parece ter sido capaz de plasmar inteiras formações intelectuais, como a dos saquaremas no Império ou a do pensamento autoritário dos anos 1930, enquanto algumas das melhores leituras liberais parecem façanhas de personalidades brilhantes isoladas (mais uma vez vem à mente Tavares Bastos, cujas idéias corporificaram o primeiro projeto específica e globalmente capitalista para o país e logo caíram no ostracismo por ausência de portadores sociais; e Raymundo Faoro, cujo libelo contra o "estamento burocrático", formulado num período em que o Estado era o repositório das esperanças nacionais, só obteve êxito década e meia depois, quando este deixara de ser solução das mazelas para ser visto como o problema). Situação que, tudo leva a crer, se inverte num momento como o atual, em que as mutações ideológicas na cultura capitalista mundial, o fracasso do socialismo como alternativa de modo de vida, a perda de capacidade hegemônica da cultura de esquerda, o esgotamento do nacional-desenvolvimentismo, a memória do comprometimento de boa parte do conservantismo com o estatismo e com o autoritarismo, a consolidação de uma sociedade de consumo de massas e a internalização dos valores individualistas possessivos na condução da vida cotidiana, abriram a possibilidade de que o liberalismo - revitalizado pelo papel que desempenhou nos estertores do regime militar e engordado pelos migrantes do campo socialista e comunista em crise - se torne finalmente uma idéia dominante na formação social brasileira.

Seja como for, parece razoável considerar a precária consciência da historicidade das idéias e das formas de pensar como expressão da debilidade destas, e não é de estranhar que historicamente tenha afetado menos os intelectuais (e políticos) conservadores do que as correntes (de alguma forma) críticas ao status quo. De fato, é natural que os primeiros sejam mais conscientes dos seus laços de parentesco, pois ao contrário de seus adversários liberais ou esquerdistas - que encaram o passado como fardo e o futuro como tempestade - se nutrem do poder e fazem da continuidade não apenas a constatação de algo empiricamente existente, mas um princípio ideológico que enquadra antecipadamente a pesquisa e norteia posteriormente a ação. Mas a conseqüência desta opacidade para os destinos da sociedade e dos agrupamentos sociais e políticos por ela afetados não é pequena: não será a consciência da herança, a possibilidade de falar em nome de uma tradição, de se legitimar como intérprete e dono da história de um país, uma das condições básicas de qualquer grupo ou elite política que aspire à direção intelectual e moral de grandes grupos sociais?

Nada disso, por suposto, tem a ver com talento individual, honestidade intelectual, relações de causalidade imediatas, ou mesmo influências ideológicas ou conceituais diretas. Ninguém duvida também que descontinuidades são socialmente inevitáveis, que tais rupturas, sendo falsas, são, não obstante, verdadeiras. Reconhecê-lo, no entanto, exige investigar tanto a estrutura dessas constelações intelectuais cuja unidade nem sempre é dada e cujas ligações nem sempre são visíveis, como as conseqüências políticas e ideológicas dessa inconsciência da historicidade das idéias e das formas de pensar; trata-se de individualizar especialmente os limites que impõem à autocompreensão dos sujeitos que a protagonizam. Desse ponto de vista, a estratégia Andradina acima referida pode ser suposta na partida -, mas agora a pesquisa acumulada permite avançar além dos limites fixados pelo modernista, e a análise circunstanciada torna possível dar conteúdo positivo ao que não passava então de hipótese negativa: o que "ainda não existe" cede lugar ao exame das propostas concretas de sua criação e desenvolvimento. Assim, o estudo de cada autor específico, de cada corrente, é não só guiado por hipótese global - sim, estamos diante de formas de pensar que contém modelos de sociedade e de Estado distintos e práxis relativamente diferenciadas, e não apenas de autores isolados e idéias arbitrárias, não apenas de diferenças de estratégia em função de objetivos que todos compartilham - como sua demonstração, longe de adiar, exige a intervenção generalizadora.

Feitas as contas, talvez o auto-esclarecimento que tal investigação propicia seja justificativa nada desprezível para a ocupação com o estudo do pensamento político-social brasileiro, este gênero reflexivo considerado a um tempo "menor" e indispensável.


Notas

(41) In "El Otro Occidente (Un poco de filosofía de la historia desde Latinoamérica)". Cuardernos Americanos Nueva Época. Cidade do México: UNAM, n. 13, janeiro-fevereiro, vol. 1, p. 13. Merquior não nega, em princípio, a legitimidade da empreitada (como se comprova também pela simpatia e entusiasmo com que acolhe o "transepocalismo" de Os Donos do Poder, com o qual tende a concordar tanto do ponto de vista ideológico como político), mas rejeita o culturalismo e as conclusões teóricas e políticas comunitaristas e anti-racionalistas que Morse dele deriva. O tema da "Ibéria" (e da Ibéria americana) como matriz civilizacional alternativa à anglo-saxã foi também explorado por Rubem Barboza Filho, Tradição e Artifício - Iberismo e barroco na formação americana. Belo Horizonte e Rio de Janeiro: Editora UFMG e IUPERJ, 2000.
(42) A referência ao "espírito do capitalismo" foi feita por Florestan Fernandes no capítulo sobre "As implicações sócio-econômicas da Independência" de A Revolução Burguesa no Brasil (Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, 3ª. ed.), para qualificar a natureza revolucionária da opção da elite fundadora do Império num contexto em que o capitalismo estava longe de possuir bases materiais internas ao país. Florestan situa o desencadeamento da "ordem social competitiva", como se sabe, no último quartel do século XIX, com a Abolição criando as bases jurídicas e sociais sobre as quais esta se assentará. Na mesma direção, e em franco antagonismo com a historiografia que faz da nação um produto do Estado, os trabalhos de István Jancsó e João Paulo G. Pimenta vêm explorando as diferenças de tempo entre construção do Estado e construção da nação, entre a percepção do país e a emergência de uma identidade nacional brasileira. Cf. "Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira)", in Carlos Guilherme Mota (org.), Viagem Incompleta. A experiência brasileira (1500-2000). Formação: histórias. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 1999.
(43) Em Formação do Brasil Contemporâneo (1942). São Paulo: Brasiliense, 5ª. ed., 1957, p. 5. No caso de Caio há, sem dúvida, diferenças de ênfase na periodização, com Evolução Política do Brasil acentuando a descontinuidade e a Independência como revolução, e Formação acentuando a continuidade, como mostra Wilma Peres Costa em seu balanço sobre "A Independência na Historiografia brasileira", publicado em István Jancsó (org.), Independência: História e Historiografia. São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2005, pp. 76-81. Convém, entretanto, não extremar a diferença, como o próprio texto citado indica. De fato, e como adverte Wilma, o que interessava a Caio era mostrar, contra a historiografia conservadora, que a colônia não podia gerar nação, a emancipação política foi processo que se estendeu de 1808 a 1831 e mesmo a 1848 e que não coincide com a criação da nacionalidade. Nesse sentido, a descontinuidade no plano da política não nega, mas se articula com a continuidade no plano das estruturas profundas. Posto isto, é de justiça reconhecer que ele não tem esse cuidado quando analisa processos contemporâneos, o que acaba por levar - provavelmente pela necessidade de radicalizar no combate à tese feudal sobre as relações agrárias, pelo modo estreito como concebe a permanência do colonial na nação incompleta, pela subestimação das modificações induzidas pela industrialização, ou mesmo pela escassa capacidade de analisar processos políticos in fieri - água para o moinho da imagem do Brasil continuísta. Talvez seja o caso de assinalar, por isso, que a tentativa mais radical de romper com a "história imóvel" que afeta a maioria das interpretações da trajetória brasileira da colônia para cá, é a de Ignácio Rangel, desde o notável Dualidade Básica da Economia Brasileira (Rio de Janeiro: ISEB, 1957) até "A história da dualidade brasileira", artigo publicado na Revista de Economia Política 1 (4), jan.-mar. 1981, em que refina suas hipóteses.
(44) Embora a problemática subjacente seja a de toda e qualquer história intelectual de país de economia reflexa e subordinada aos fluxos do capitalismo e da cultura mundial, foi Sérgio Miceli, salvo engano, quem usou de maneira mais sistemática o conceito (ou analogia?) de "substituição cultural de importações", especialmente em Intelectuais e Classes Dirigentes no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979, republicado em Intelectuais à Brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Como o leitor terá percebido, estou retomando-o com ênfase, digamos, menos "infra-estrutural", da formação de um público leitor, mercado editorial, institucionalização das atividades intelectuais, iniciativas empresariais voltadas para a produção e consagração de bens culturais, etc., que Miceli explorou consistentemente, e mais "superestrutural", compreendendo a destilação de teorias, conceitos, ideologias, problemáticas intelectuais enfim que vão sendo compartilhadas, de um conjunto de problemas e soluções teóricas, de tal modo que ao longo do tempo se vai formando uma tradição, um processo pelo qual o "mercado interno de idéias" acaba por funcionar como um filtro, selecionando por mil ensaios e erros o que absorver, transformar ou rejeitar do mercado de idéias mundial. Talvez possamos enfatizar "substituição de importações culturais" para o primeiro caso, e "substituição cultural de importações" no segundo. Ampliando a analogia, é evidente que a maturidade intelectual de um país terá a ver com sua conversão num pólo de desenvolvimento, capaz não apenas de oferecer matéria prima para consumo e industrialização pelos intelectuais dos países centrais, mas também de produzir teoria e inovações metodológicas à altura dos padrões científicos universais.
(45) Cf. Ângela Alonso, Idéias em Movimento. A geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra/ANPOCS, 2002, p. 32 e, em geral, toda a introdução.
(46) Em Aspectos da Literatura Brasileira, op. cit., p. 8. Sublinhado pelo próprio autor.
(47) A Revolução Burguesa no Brasil, op. cit., p. 302. Ou como dizem István Jancsó e João Paulo G. Pimenta, "a identidade nacional brasileira emergiu para expressar a adesão a uma nação que deliberadamente rejeitava identificar-se com o corpo social do país, e dotou-se para tanto de um Estado para manter sob controle o inimigo interno". Op. cit., p. 174. Exploro um pouco mais esta tese de Florestan em "Democratização e desenvolvimento: um programa de pesquisa", in Raquel Kristch e Bernardo Ricupero, Força e Legitimidade: novas perspectivas? São Paulo: Editora Humanitas/NADD, 2004.
(48) Cf. "A reação centralizadora e monárquica", cap. IX da 1ª. ed. e do vol. 1 da 2ª. ed. de Os Donos do Poder, op.cit.
(49) Cf. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983, 3ª. ed. Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Mandonismo Local na Vida Política Brasileira e outros estudos. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1976, 2ª. ed. Oliveiros S. Ferreira, Nossa América: Indoamérica. A Ordem e a Revolução no pensamento de Haya de la Torre. São Paulo: Pioneira/Edusp, 1971. Sobre as aproximações e distâncias de boa parte da sociologia política uspiana dos anos 1950-1970 com os pensamentos de Oliveira Vianna e de Raymundo Faoro, ver meu texto sobre Oliveiros como "O Revolucionário da Ordem", in Lua Nova, n. 48. São Paulo: CEDEC, 1999. Os intelectuais que compunham o ISEB - Hélio Jaguaribe, Guerreiro Ramos, Nelson Werneck Sodré, etc. - estavam mais conscientes do que deviam aos seus predecessores.
(50) Cf. Vicente Barreto (org.), O Liberalismo e a Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. E Bolívar Lamounier, "Rui Barbosa e a construção institucional da democracia brasileira", op. cit. Talvez se deva acrescentar a interpretação do Brasil contida nos trabalhos de José Murilo de Carvalho sobre o Império e a República, na qual é central a oposição entre estadania e cidadania, e que pode ser lida como expressão de um liberalismo democrático revigorado e em franco dissídio com o neoliberalismo. Dele, ver Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, de 1987, e Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil, de 1990, ambos publicados em São Paulo pela Companhia das Letras.

(*) Gildo Marçal Brandão é colaborador de La Insignia e Gramsci e o Brasil, professor associado do Departamento de Ciência Política da USP e coordenador científico do Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Democratização e Desenvolvimento (NADD-USP).



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