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La insignia
11 de fevereiro de 2007


Brasil

Ferrar com «H» os criminosos hediondos


Mário Maestri
La Insignia. Brasil, fevereiro de 2007.


Nos anos 1818-1833, jurados porto-alegrenses condenavam acusados de crimes tidos então como hediondos à pena de morte acrescida de até mil e quinhentas chicotadas. Os condenados, cativos do sexo masculino, em geral eram acusados de atos de sangue contra seus proprietários e feitores. A pena era ministrada, cinqüenta golpes por dia, como previa a legislação, à exceção dos domingos e dias santificados, não para permitir descanso ao infeliz, mas para que o carrasco não incorresse em pecado maior, trabalhando em dias santos.

A violência da justiça sulina, semelhante à das outras províncias, foi analisada pelo historiador Solimar Oliveira Lima, em Triste pampa: resistência e punição de escravos em fontes jurídicas no RS, distinguido com o prêmio Açoriano, na rubrica ensaio, em 1995. No estudo, reapresentado em 2006 na coleção Malungo da UPF Editora (www.upf.com.br), Solimar interroga-se se os açoites sem fim não pretendiam garantir, além de pena terrível e exemplar, condenação imediata à morte. As penas à forca deviam ser confirmadas pelo Rio de Janeiro, onde os processos perdiam-se ou eram reformados por galé perpétua.

Mesmo não obtendo confirmação documental de mortes dos apenados devido ao castigo, Solimar assinala que, sobretudo na época, possivelmente poucos sobreviveriam às mil e quinhentas chicotadas, ministradas ao longo de mais de um mês. Primeiro, teriam a pele aberta em feridas, a seguir, os golpes cairiam diretamente sobre as carnes desprotegidas. Após o chicoteamento, voltavam para as já infectas prisões brasileiras, descritas em detalhes pelo autor. Destaque-se que era habitual curar as feridas dos golpes com vinagre, salmoura, pólvora, urina.

Apesar do esforço de historiadores revisionistas em mitigar o cenário social terrível, os mais de três séculos de escravismo colonial constituíram rosário doloroso de castigos físicos e infamantes com os quais os proprietários e o Estado, com a bendição da Igreja, procuraram manter a disciplina do trabalho e reprimir a resistência, surda ou gritante, do trabalhador e da trabalhadora submetidos à existência feitorizada.

Não houve violência ou ato de sangue que constrangesse as chamadas elites de então, na tentativa de domesticação dos subalternizados. Para reprimir o trabalhador cansado, faminto e esfarrapado, que fugia impulsionado pelo aforismo popular de que, "se deus é grande, o mato é maior", alvará real de 1743 ordenou que as municipalidades marcassem, como animais, os quilombolas com a letra "F", de fujão, e, no caso de reincidência, cortassem suas orelhas. Tudo sem julgamento. Em obediência à determinação, a câmara municipal do Porto Alegre encomendou, em abril de 1793, o ferro necessário para tal. Em janeiro, comprara dois "anjinhos" para esmigalhar os dedos dos cativos interrogados.

As classes proprietárias e as autoridades públicas da Colônia e do Império jamais compreenderam a situação de violência em que viviam como resultado de sociedade estruturalmente despótica. Ao contrário, concordavam quase sem exceções que os atos criminosos deviam-se essencialmente à malvadeza inata ou congênita de indivíduos de qualidade inferior, com destaque para os africanos e afro-descendentes escravizados, o sopé desqualificado da proposta hierarquia racial. Indivíduos que deviam ser brutalmente castigados.

Para prevenir-se dos atentados, os escravistas trancavam-se nas moradias rurais; habitavam os andares superiores dos prédios urbanos; cercavam-se de serviçais alienados; praticavam justiça doméstica e pública despótica e, sobretudo, gritavam histericamente por maior rigor na execução das penas terríveis, como ocorreu, após as grandes revoltas servis da Bahia, através da Lei Imperial de 10 de junho de 1835, que determinou que os atentados mortais ou mais sérios de cativos contra proprietários, familiares e representantes fossem punidos com a pena de morte, sem direito à recurso. Tudo, diga-se de passagem, sem resultados tangíveis.

As classes proprietárias brasileiras não prosseguiram por cegueira ou inconseqüência na escalada repressiva que jamais obteve resultados reais. Compreender a situação de violência endêmica como resultado de relações sociais despóticas, e agir sobre elas, comprometeria suas formas de existência social e material. Optaram, portanto, conscientemente, pelo mito tranqüilizador da maldade social pré-determinada e de seu controle através da pena de morte, legal e extra-legal, e de castigos barbáricos impostos com os bacalhaus, palmatórias, anjinhos, troncos, gargalheiras, calcetas, correntes, ferros de queimar, etc. Uma cultura, uma tradição e um saber que seguem magnetizando as chamadas elites de hoje, pelas mesmas razões de seus ancestrais sociológicos.


(*) Mário Maestri, 58, é historiador e professor do PPGH da UPF. É autor de O escravo no Rio Grande do Sul: trabalho, resistência, sociedade. 3 ed. ampliada. Porto Alegre: EdiUFRGS, 2005. E-mail: maestri@via-rs.net



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