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La insignia
25 de maio de 2006


Hegemonia neoliberal e trabalho no mundo contemporâneo


Rossana Rocha Reis (*)
Gramsci e o Brasil / La Insignia. Brasil, maio de 2006.


No último dia primeiro de maio, mais de um milhão de imigrantes, legais e ilegais, e de simpatizantes, saíram às ruas nos Estados Unidos para protestar contra um projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados em dezembro de 2005 que prevê, entre outras medidas, a criminalização da imigração ilegal e a construção de um muro de mais de 1.100 quilômetros na fronteira que separa os Estados Unidos do México. O chamado "Dia sem Imigrantes" incluiu também a paralisação dos trabalhadores ilegais e o boicote aos produtos e serviços norte-americanos, não apenas dentro do país, mas em outras partes do mundo. Atualmente, estima-se em 12 milhões o número de imigrantes ilegais nos EUA, a maioria de origem latina. Eles têm uma presença importante em vários setores da economia, principalmente na agroindústria e no setor de serviços.

Um pouco antes, em março de 2006, na França, estudantes e sindicatos paralisaram o país ao protestar contra a lei que instituía o "Contrato Primeiro Emprego" (CPE), que pretendia flexibilizar os direitos trabalhistas dos jovens entrantes no mercado de trabalho. Entre outras coisas, a lei permitia que trabalhadores com menos de 26 anos fossem demitidos sem justa causa nos dois primeiros anos de trabalho. A justificativa do governo para o CPE era a necessidade de aumentar a oferta de empregos para a juventude. A taxa de desemprego atual no país gira em torno de 9%, mas sobe para 25% entre os jovens, e 40% entre os jovens de origem imigrante.

A eclosão de demonstrações envolvendo milhões de pessoas nesses dois países em torno de temas como legislação trabalhista e imigração foi recebida com surpresa por boa parte da opinião pública e dos analistas políticos. No caso norte-americano esta se deve, em parte, à inesperada capacidade de articulação e de mobilização dos imigrantes, que fizeram do primeiro de maio, tradicionalmente não celebrado nos Estados Unidos, uma data com significado político. No caso francês, a disposição dos jovens de lutar (e da população em apoiar essa luta) pela manutenção de direitos trabalhistas parece nunca deixar de incomodar aqueles que confiam nas virtudes do mercado, sempre queixosos do conservadorismo e da irracionalidade dos franceses, supostos defensores da manutenção de um modelo social e político que impõe limites às leis do mercado.

Em ambos os casos, a surpresa também parece estar relacionada à percepção de que a ação coletiva ainda faz sentido para muitos indivíduos e, mais do que isso, ainda faz diferença, apesar do processo -amplamente analisado pelos cientistas sociais de várias correntes- de despolitização que vem atingindo as sociedades afluentes. Contudo, talvez o aspecto mais interessante da luta dos imigrantes ilegais e dos jovens é que a emergência de protestos de um lado e de outro do Atlântico expõe, cada um à sua maneira, os limites e as contradições da hegemonia da lógica de mercado construída ao longo dos últimos anos. O caso norte-americano revela em que medida a liberalização dos mercados é complementada pela defesa de barreiras contra a livre-circulação de pessoas, ao passo que a situação francesa demonstra a dificuldade em conciliar lógica de mercado e participação política em um mundo globalizado.


A globalização e o mundo do trabalho

Como bem observa o cientista político francês Pierre Rosanvallon, o conceito de mercado não pretende ser apenas uma ferramenta para explicar o funcionamento da economia, mas sim um princípio regulador da ordem social: "A lei do valor regula as relações de trocas entre as mercadorias, e as relações entre as pessoas são entendidas como relações entre mercadorias, sem nenhuma intervenção exterior", diz ele [1]. Partindo desta perspectiva, quanto menos interferência externa houver nas relações sociais, mais satisfatórias elas serão para os que nelas estão envolvidos, e mais eficientemente os bens serão distribuídos dentro da sociedade.

A crença no mercado como princípio organizador mais adequado para o gerenciamento da vida humana se tornou dominante em meados da década de 1980. No mundo desenvolvido houve um "renascimento das idéias liberais", motivando "tentativas de resistência e ou mesmo reversão de curso, em termos de crescimento do setor estatal" [2]. Tais idéias foram rapidamente difundidas pelo mundo por meio das organizações internacionais, e absorvidas, mais ou menos voluntariamente, pela grande maioria dos países em desenvolvimento. Thomas Biersteker chamou esse processo de "triunfo da economia neoclássica".

Entre as medidas do receituário neoclássico, a flexibilização do mercado de trabalho - isto é, a diminuição dos custos de contratação e demissão de mão-de-obra, a diminuição dos encargos trabalhistas - é um elemento estratégico do sucesso da adaptação dos Estados ao competitivo mundo de economia globalizada. Diminuir os custos associados ao trabalho tornou-se um objetivo central de vários países. Ao mesmo tempo, mudanças no processo produtivo e na organização do trabalho incidem na natureza da oferta de empregos no mercado. Grande parte das vagas geradas pelo crescimento econômico dos últimos vinte anos, não apenas na França e nos Estados Unidos, mas em muitos outros países do mundo desenvolvido, se caracterizam pela exigência mínima de qualificação, baixos salários, e quase nenhuma estabilidade. Em muitos casos, estes postos recém-criados foram ocupados por imigrantes.


A imigração e a questão do trabalho nos Estados Unidos

Do ponto de vista desses trabalhadores, a maioria vinda de países pobres e instáveis, a possibilidade de viver em uma democracia liberal e rica é tentadora. Do ponto de vista da economia receptora, o uso da mão-de-obra imigrante é vantajoso -sua vulnerabilidade legal, sua premente necessidade de sobrevivência, etc.-, levam freqüentemente os imigrantes a aceitar empregos que quase sempre são recusados pelos nativos.

Nessa direção, vários setores da economia norte-americana são hoje dependentes dessa força de trabalho legal e ilegal, e muitos empresários desses setores apoiaram o movimento nesse primeiro de maio. Os imigrantes, por sua vez, buscam legitimar sua presença no país em função da sua participação na economia e da sua contribuição para o seu crescimento. We demand because we produce é um dos principais slogans dos ativistas imigrantes no país.

Do ponto de vista dos críticos, os "hispânicos" concorrem com os trabalhadores norte-americanos de baixa renda, sobretudo com a população negra, e contribuem para deprimir o nível dos salários. Para tais críticos -que provavelmente tomam os sintomas pelas causas e não percebem que brancos pobres, trabalhadores negros e imigrantes compartilham a mesma situação de crescente vulnerabilidade-, o foco deve ser a defesa de uma política de imigração restritiva e uma ação dura do Estado contra os ilegais.

Não é preciso pensar duas vezes para perceber que em um país que possui a maior zona de contato físico entre o Primeiro e o Terceiro Mundo, uma política desse tipo está fadada ao fracasso. Fracasso não somente porque o fosso que separa esses mundos continua crescendo - o que contribui para aumentar a pressão imigratória do lado mexicano -, mas também porque os próprios norte-americanos têm interesse em estreitar relações e consolidar a zona de livre comércio com o México. Resta saber quem se beneficia do endurecimento da política em relação aos imigrantes. É pouco provável que sejam os norte-americanos de baixa renda, que vão continuar a concorrer com indivíduos em situação cada vez mais precária.


A questão do trabalho e a participação política na França

A mobilização dos estudantes franceses contra a aprovação do "Contrato Primeiro Emprego" levou o governo a desistir da nova lei ainda em abril desse ano. A dificuldade dos sucessivos governos em aprovar reformas de cunho liberalizante é apontada pelos entusiastas do mercado como uma das principais razões do alto nível de desemprego e do baixo nível de crescimento do país. Desse ponto de vista, a ação dos estudantes teria sido conservadora e visava a manutenção de privilégios insustentáveis. Para os estudantes, ao contrário, trata-se da manutenção de direitos sociais conquistados ao longo de uma história de lutas políticas, hoje ameaçados pelo avanço da chamada hegemonia neoliberal. O que para alguns é uma questão de redução do papel do Estado na economia, para outros é uma questão de redução de direitos.

Dito de outra forma: independentemente dos eventuais méritos da proposta liberal, o nó da questão é que a participação política é vista como um entrave à racionalidade econômica e, portanto, considerada sob um prisma fundamentalmente negativo. A desqualificação da população como incapaz tanto de compreender a complexidade da economia global dentro da qual a França está inserida, como de, em conseqüência, fazer as escolhas corretas e adequadas, revela na verdade a dificuldade do pensamento liberal diante de determinadas questões e demandas sociais.

De fato, para a ortodoxia liberal, os problemas sociais derivados da adoção de políticas de flexibilização do mercado de trabalho são problemas que podem ser resolvidos "racionalmente", por meio de soluções "técnicas". Nesse sentido, a participação política é vista como desnecessária e ineficaz. A tendência é que, no longo prazo, o próprio mercado se encarregue de corrigir as eventuais distorções geradas pelas mudanças políticas, e acabe produzindo uma maior igualdade dentro da sociedade.

Seja qual for o elemento de verdade contido nessa visão, ela parece não ter seduzido os franceses. Ao longo de sua história recente, a população tem se manifestado de maneira intermitente contrária à adoção de um rumo mais liberal na política do país. Mesmo a vitória do "Não" no plebiscito sobre a "Constituição da Europa" em maio de 2005 foi atribuída por vários analistas ao descontentamento da população diante da forma como a questão dos direitos sociais e econômicos estaria sendo ignorada no processo de consolidação da União Européia. Por outro lado, esse descontentamento não foi até agora capaz de impulsionar o surgimento de uma proposta alternativa ao conceito de mercado como princípio regulador da ordem social.

Seja como for, tanto as manifestações na França como a dos imigrantes nos Estados Unidos podem ser consideradas motivos para otimismo - na medida mesma em que revelam uma vitalidade, disposição para a crítica, discussão e envolvimento com a política que pareciam ter sido perdidas pela evolução recente das democracias liberais avançadas.


Notas

(*) Rossana Rocha Reis é professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e autora de Construindo Fronteiras: Políticas de imigração nos Estados Unidos e na França. São Paulo: Editora Hucitec (no

[1] Rosanvallon, Pierre. O liberalismo econômico. História da idéia de mercado. Bauru: Edusc, 2002.
[2] Fukuyama, Francis. Construção de Estados. Governo e organização no século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p. 18.



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