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20 de março de 2006 |
Felipe A. P. L. Costa (*)
Há pouco mais de três anos, o renomado sítio eletrônico Observatório da Imprensa (edição No. 204, de 25/12/02) publicou um extenso artigo em duas partes intitulado "Darwin: herói ou fraude?", de Gildo Magalhães, professor de filosofia da ciência da Universidade de São Paulo. Ao longo de 86 parágrafos (41 na Parte I, 45 na Parte II), o autor alinhavou o que para ele seriam comentários críticos à biologia evolutiva contemporânea, em particular ao chamado neodarwinismo (darwinismo ou neodarwinismo pode ser aqui definido como o corpo de conhecimento estruturado em torno da teoria de evolução por seleção natural, como apresentada originalmente por Charles Darwin [1809-1882] e Alfred Russel Wallace [1823-1913])
De lá para cá, jamais encontrei nas páginas do Observatório um segundo artigo que contestasse ou ao menos criticasse algumas das afirmações feitas no artigo do professor da USP. Isso não deixa de ser curioso, afinal, o que não falta ali são erros e mal-entendidos, alguns dos quais bastante grosseiros. Sem mencionar a deselegante insinuação de que Darwin seria ele próprio uma fraude ou um fraudador. Na ausência de contestação, temo que muitos leitores fiquem com a impressão de que boa parte ou tudo aquilo corresponderia mesmo aos fatos (a propósito, transcorrido pouco mais de um ano, o Observatório publicou em sua edição No. 262, de 03/02/04, o prefácio do livro A falácia do DNA, de Cláudio J. Tognolli, escrito pelo mesmo Gildo Magalhães e no qual reaparecem alguns erros e mal-entendidos contidos em seu artigo de 2002). Com o presente artigo, procuro mostrar ao leitor que o artigo "Darwin: herói ou fraude?" não funciona nem se sustenta como crítica ao neodarwinismo. A freqüência e gravidade dos problemas ao longo do texto são de tal magnitude que o artigo como um todo não resiste a um exame cauteloso e desmorona. Nesse sentido, deveríamos tratá-lo como uma falsa crítica ao darwinismo. Para facilitar o trabalho, numerei antes todos os parágrafos da versão publicada no Observatório, a saber: Parte I, do primeiro ao quadragésimo primeiro (o sétimo parágrafo inclui a lista de obras que aparece logo em seguida) e Parte II (1), do primeiro ao quadragésimo quinto parágrafo. No que segue, faço referência a essas duas seqüências de parágrafos. Sobre a Parte I Já no primeiro parágrafo, lemos: "O darwinismo, nas diversas formulações que recebeu desde sua proposição inicial por Charles Darwin em A Origem das Espécies, seja a do neodarwinismo, seja da versão sintética, ou da sociobiologia ou ainda outras, é uma teoria amplamente aceita por biólogos e não-biólogos. Dito da maneira mais simples, é a evolução por seleção natural regida pelo acaso, ou seja uma teoria que explica a evolução dos seres vivos através do surgimento de mutações ao acaso (das quais se originam variações com relação a um conjunto denominado "espécie") e subseqüente seleção de algumas dessas mutações pela ação do meio exterior (geralmente chamado de "ambiente", ou mais genericamente de "natureza"), aplicada a tais seres vivos. O resultado final se expressa na condição de indivíduos com tais mutações serem mais "adaptados" às hostilidades do ambiente e conseguirem ter mais descendentes do que as variações menos "adaptadas"." Não foi um bom começo. Primeiro, "versão sintética" e sociobiologia não são formulações do darwinismo; a primeira sim, mas a segunda é uma disciplina biológica - que, como tal, tem bases na evolução. Segundo, é sempre bom ter em mente que a grande maioria das novidades surgidas por mutação (digamos, alelo A muda para a) é deletéria e, portanto, nada adaptativa. Vários mutantes deletérios, no entanto, podem escapar da seleção natural (SN), persistindo indefinidamente na população. Um jeito de conseguir isso é agir como alelo recessivo, do tipo que só se manifesta em dupla dose - aa, por exemplo. Nesse caso, se os genótipos AA e Aa forem fenotipicamente equivalentes, a SN não tem como discriminar entre seus portadores e o alelo a persistiria, mesmo sendo deletério em dupla dose. Terceiro, a evolução por SN pode ser uma porção de coisas, menos um processo regido pelo acaso. Podemos entender a SN como um processo de discriminação, traduzida por chances desiguais de sobrevivência e reprodução entre os integrantes de uma mesma população. Em linhas gerais, trata-se de um processo fortemente dependente do contexto. Imagine o caso de uma única presa vivendo em uma ilha habitada por predadores. Para conseguir escapar, a presa precisaria correr mais do que todos os seus predadores. Todavia, se outras presas estivessem presentes na ilhas, seria possível escapar mesmo correndo menos do que os predadores; nesse caso, bastaria correr mais do que as outras presas... A idéia de que mutações ocorrem ao acaso também não corresponde muito bem aos fatos. Isso porque determinadas regiões do genoma são sabidamente mais instáveis ou propensas a sofrer mutações do que outras, que são bem mais estáveis e assim pouco mudam ao longo das gerações. Quando biólogos falam em mutações ao acaso, eles estão apenas usando uma figura de retórica. Na verdade, o que está por trás dessa expressão é a idéia de que as mudanças sofridas pelo genótipo não têm uma relação direta de causa e efeito com os desafios imediatos impostos pelas circunstâncias. Nesse sentido, poderíamos dizer que as mutações ocorrem independentemente das novas exigências impostas pelo ambiente (isso não quer dizer que a taxa de mutação dos genomas deva ser vista como uma conseqüência inerente à estrutura físico-química do material genético e não possa ela própria ser objeto de evolução por SN). No segundo parágrafo, temos: "Saudado como um pilar da ciência contemporânea, ocorre no entanto que um exame das bases e das aplicações do darwinismo revela um paradigma que vem sendo bastante questionado desde sua apresentação." Questionado por quem exatamente? E o que seria mais importante: essa contestação é apenas retórica ou vem acompanhada de evidências empíricas consistentes? Na frase seguinte, encontramos: "Trata-se de uma "revolução científica" em permanente crise, mas tão ferrenhamente defendida pela comunidade científica que se torna difícil contestá-la, sem o perigo de descrédito imediato, e quem o faz corre o risco de ser considerado não-científico ou irremediavelmente obsoleto." A idéia de evolução por SN é uma teoria científica bem-sucedida, não um dogma. E o sucesso tem aqui o seu preço: frente a uma teoria tão ampla e influente, os biólogos evolucionistas são cientistas profundamente "angustiados" (sensu Bloom, H. 1992. A angustia da influência. RJ, Imago). Isso porque o trabalho normal que eles fazem apenas acrescentaria adornos em um quadro cujo esboço geral foi traçado há quase 150 anos. Ao mesmo tempo, porém, a angustia pode se converter em insatisfação, o que poderia gerar uma pressão (permanente) em favor de inovações ou revoluções (sensu Kuhn, T. S. 1982. A estrutura das revoluções científicas. SP, Perspectiva). E a razão para isso é relativamente óbvia, embora não seja comumente referida pelos críticos: o prêmio a ser pago pela formulação de uma teoria alternativa ao darwinismo é um bocado grande. Imagine: retirar o neodarwinismo do trono e, em seu lugar, colocar sua própria teoria! Pressão semelhante ronda o universo de outras disciplinas científicas (para um exemplo envolvendo a física, ver Magueijo, J. 2003. Mais rápido que a velocidade da luz. RJ, Record). Ao contrário do que ocorre com teorias científicas de cunho e formulação bem mais abstratos (e.g., a teoria da relatividade e a teoria quântica), a teoria de evolução por SN desperta o interesse de quase todos nós. A aparente simplicidade lógica de sua formulação verbal torna o assunto facilmente acessível a qualquer leigo interessado. No fim das contas, isso dá a falsa impressão de que a teoria está aberta a palpites, a exemplo do que se passa com assuntos triviais do dia-a-dia (as condições do tempo, o noticiário da TV, as manchetes dos jornais etc.). Não é de estranhar, portanto, que vários "contestadores" do darwinismo se comportem meramente como palpiteiros. Ou como gente descontente ou irritada e que, por razões pouco ou nada científicas, cismem de sair bradando por aí, como se houvessem descoberto a roda... Ainda no segundo parágrafo, lemos: "A teoria vem conseguindo enfrentar várias críticas com aparente satisfação, mas acaba sendo remendada à moda dos epiciclos, apesar da complicação que representam os artifícios destinados a salvar essa teoria, cujos fundamentos filosóficos e ideológicos não são suficientemente explicitados para todos." Afirmação improcedente. Livros, revistas e artigos críticos estão disponíveis aos montes. O que falta entre nós, isso sim, são mais livros técnicos de qualidade (ver Futuyma, D. J. 1992. Biologia evolutiva, 2a edição. Ribeirão Preto & Brasília, Sociedade Brasileira de Genética & CNPq; e Stearns, S. C. & Hoekstra, R. F. 2003. Evolução: uma introdução. SP, Atheneu). No terceiro parágrafo, encontramos: "O debate em torno da questão existe, mas ele é meio "escondido" de nossos alunos de Ciências Biológicas, ou mesmo de história das ciências, devido ao propósito de se torná-los antes de tudo adeptos dos paradigmas vigentes, sem lhes dar oportunidade para explorarem as possibilidades contrárias a tais paradigmas." Confesso que não conheço o pessoal da USP envolvido com o ensino de evolução, por isso mesmo fiquei na dúvida sobre a origem desse comentário: seria paranóia, preguiça do autor ou malvadeza dos professores de biologia evolutiva da USP? No quarto parágrafo: "Um contra-exemplo da atualidade do debate, que raramente chega ao conhecimento público como aconteceu neste caso, é o número especial de Les Cahiers de Science et Vie (1991), significativamente intitulado "Darwin ou Lamarck, a Querela da Evolução"." É bom não esquecer: Darwin não foi o primeiro a propor uma teoria de evolução. E o mais importante: a exemplo de outros naturalistas de sua época, ele foi um lamarckista. A propósito, caberia aqui uma pergunta: por que será que tantos "revisionistas" do darwinismo são autores de origem francesa? Um pessoal que quase sempre brada contra Darwin, em favor de Lamarck - e não só para reafirmar o pioneirismo deste último. O que significaria isso? Coincidência ou fruto de um universo cultural tão tipicamente arrogante e autocentrado? Deixando o chauvinismo de lado, caberia indagar: qual teria sido a reação de Lamarck se tivesse lido A origem das espécies? Será que ele reconheceria Darwin como um seguidor e, ao mesmo tempo, um inovador de suas próprias idéias acerca da evolução orgânica? Do sexto ao décimo parágrafo, o autor faz considerações em torno da biografia e da produção literária de Darwin. Algumas dessas considerações, é bom que se diga, permanecem na mesma trilha de erros e mal-entendidos que começou a ser traçada nos parágrafos precedentes. Afirmações exageradas ou mesmo caluniosas em torno da primazia pela elaboração da teoria de evolução por SN, por exemplo, poderiam ter sido evitadas se o autor se desse ao trabalho de ler e refletir um pouco mais - e.g., sobre descobertas simultâneas, Brannigan, A. 1984. A base social das descobertas científicas. RJ, Zahar; sobre o caso Darwin-Wallace, Wright, R. 1996. O animal moral - Porque somos como somos: a nova ciência da psicologia evolucionista, RJ, Campus. No décimo primeiro parágrafo (seção "Bases ideológicas do darwinismo"), encontramos: "São conhecidas as soluções de Malthus para a "superpopulação" resultante desse suposto desencontro: epidemias, guerras, a fome e outras catástrofes se incumbiriam de estabelecer um equilíbrio, o que se casava bem com os ensinamentos de Adam Smith sobre a auto-regulação do mercado. Certamente no auge do imperialismo e colonialismo britânico, uma teoria evolutiva que defendia aspectos como uma inevitável luta pela vida, espécies mais favorecidas e uma seleção natural regida pelo acaso, tinha condições de atrair a seu favor a opinião pública da sociedade vitoriana, que se enxergou justificada pela "ciência" e ajudou a promover ideologicamente a teoria de Darwin." Não são as espécies que são ou não favorecidas pela SN, mas entidades individuais que se auto-replicam e interagem, como os organismos individuais. O autor também repete o erro de afirmar que a SN seria regida pelo acaso (ver comentário inicial). Um dos piores parágrafos, o décimo segundo, vem logo em seguida: "O darwinismo legitima assim a desigualdade das classes e das raças, bem como aceita a luta, e por extensão as guerras, como fator crucial para a civilização, pois determina quem é o mais apto (Ruffié, 1988). Esta é uma tendência peculiar e coerente com toda a corrente filosófica do empiricismo britânico, como por exemplo no conceito de sociedade apresentado por Thomas Hobbes, que concluiu pela afirmação de que "o homem é o lobo do homem". O neoliberalismo de hoje, especialmente depois da era Thatcher, e que chegou mais tarde ao poder no Brasil pelas mãos principalmente dos governos de Collor e Fernando Henrique Cardoso, admite os mesmos princípios que os similares do liberalismo da era vitoriana, apenas intensificados pela atuação global do capital." O parágrafo todo é um monte de bobagens; basta lembrar aqui duas coisas: a aversão moral que Darwin sentia pela escravidão (ficou horrorizado com o que viu no Rio de Janeiro, por exemplo) e o fato de sua família ser formada por antiescravocratas. Esse e inúmeros outros detalhes da vida de Darwin são relatados e contextualizados no livro de Adrian Desmond & James Moore, Darwin, a vida de um evolucionista atormentado (3a edição, 2000, Geração Editorial), que o autor cita, mas que parece não ter consultado com a devida atenção. No décimo segundo parágrafo, o autor muda temporariamente de alvo, passando a atacar a "demografia malthusiana" e o "ambientalismo". Os ataques, porém, continuam confusos e inconsistentes. No décimo quinto parágrafo lemos: "Recuperando uma agenda perdida na pregação romântica por um planeta mais "limpo", insistimos que a industrialização intensificada também é o único remédio adequado para problemas como a poluição das águas e o processamento do lixo. O uso de pesticidas (tanto industriais quanto naturais) não pode ser descartado para a produção de alimentos e eliminação da fome, tendo baixíssima correlação com doenças. Estudos mais desapaixonados também questionam que a variação do tamanho do buraco de ozônio seja função de efeitos de emissão causados pela industrialização (Maduro, 1990). Mesmo o aquecimento global tem sido contrariado por diversos especialistas em meteorologia, que em verdade apontam para a hipótese contrária, a de estarmos caminhando para uma nova era glacial (Hecht, 1994). O desflorestamento do planeta é certamente um problema, mas é localizado e a área cortada pode ser reflorestada, até mesmo se recuperando a diversidade vegetal e animal. Aliás, a propalada redução da biodiversidade em 40.000 espécies por ano (mesmo não havendo consenso entre os biólogos que permita saber exatamente o que é uma espécie) se revelou falsa, pois está mais perto de 200 espécies por ano - e a extinção pode ser desacelerada (Lomborg, 2001). Água e matérias-primas, inclusive os combustíveis não dão sinal de exaustão e novas tecnologias têm tornado possível tanto seu reaproveitamento quanto a descoberta de mais fontes energéticas. Em contrapartida, todas as propostas ambientalistas radicais têm um fundo na matriz malthusiano-darwinista." Toda crítica bem fundamentada, em qualquer circunstância, deveria ser vista como algo estimulante e, portanto, intelectualmente promissor. Por isso mesmo, valeria a pena ao autor se inteirar um pouco mais do que se passa pelo mundo. Por exemplo, (1) a instrutiva polêmica que houve entre Ehrlich e Simon (em quem Lomborg andou se inspirando); e (2) inúmeras análises feitas por Lomborg em seu livro têm sido não só contestadas mas também desmascaradas como embustes. Esse é o caso, por exemplo, da análise que ele apresenta sobre a perda de biodiversidade, lançando mão de dados inapropriados - para detalhes, ver Schneider, S. H. 1998. Laboratório Terra: o jogo planetário que não podemos nos dar ao luxo de perder. RJ, Rocco; e Pimm, S. 2005. Terras da Terra: o que sabemos sobre o nosso planeta. Londrina, Editora Planta. No décimo sétimo parágrafo, lemos: "Por outro lado, houve sérias objeções a que nem Darwin nem seus patrocinadores souberam responder na época, tais como a idade da Terra e a diluição pouco a pouco das características dos progenitores, e portanto das variações, ao longo das gerações (o chamado "paradoxo de Jenkin")." Talvez sem perceber, o autor está apenas revelando que o mecanismo exato da herança genética - particulada, como Mendel veio a mostrar, ou por mistura, como Darwin erroneamente acreditava - não era uma pré-condição necessária para a formulação de uma teoria de evolução por SN. Afinal, como o leitor dessas mal-traçadas já deve ter percebido, SN é um processo ecológico. A genética apenas ajuda a explicar a origem e a manutenção da variação entre as entidades que sofrem a ação da seleção. Já no trigésimo parágrafo, o primeiro da seção "Variações ao acaso", o autor volta a falar em seleção natural regida pelo acaso. Em seguida, emprega mal o cálculo de probabilidades para destacar o quão improvável seria a confecção aleatória de uma única molécula de proteína. Já no trigésimo segundo parágrafo, encontramos: "Acontece que muitos evolucionistas desde os darwinianos de primeira hora, como Thomas Huxley, não aceitaram a seleção natural como sendo o único fator importante na evolução (Morris, 2000). De toda maneira, um mecanismo (força da seleção natural) cuja ação é imprevisível (já que intervém sempre o acaso) é muito pouco útil na ciência." Mais uma vez, o autor repete a concepção equivocada de que a SN é um processo regido pelo acaso. E o que é pior: até agora ele não deixou claro o que entende exatamente por SN. E assim chegamos ao fim da Parte I, em meio a erros, mal-entendidos e imprecisões conceituais. Sobre a Parte II Os problemas continuam prosperando na Parte II, como nesse trecho do segundo parágrafo: "Faz parte da problemática da taxonomia e da evolução que variação e seleção sejam conceitos diferentes, mas que muitos biólogos costumam englobar num mesmo processo (Barbieri, 1987; Chauvin, 1999). As visões diferentes dos biólogos atuais sobre o conceito de espécie indicam que a questão permanece em aberto: a especiação ainda é um mistério, também do ponto de vista bioquímico (Barbieri, 1987)." A especiação não é propriamente um mistério; é apenas um assunto amplo e complexo, sobre o qual biólogos evolucionistas, ecólogos, geneticistas e outros cientistas continuam debruçados, pesquisando. No terceiro parágrafo, mais um deslize conceitual: "Como toda espécie apresenta polimorfismo (...)" Não é bem assim. O autor, ao que parece, está confundindo variação fenotípica com polimorfismo. Polimorfismo é um tipo de variação fenotípica com base genética. Seria mais apropriado afirmar que todas as populações naturais exibem algum grau de variação fenotípica, com ou sem base genética. (Para detalhes e exemplos de polimorfismo, o leitor interessado pode consultar o artigo "Seleção natural e auto-organização: fenômenos mutuamente excludentes?", Parte I e Parte II. A versão completa e impressa desse artigo, intitulada "Evolução biológica e auto-organização: apresentando, discutindo e exemplificando uma proposta teórica", foi publicada no volume 38 da Coleção CLE.) Os deslizes continuam no quarto parágrafo: "Note-se também que a teoria darwinista de variações graduais dificilmente explicaria o surgimento de divisões bem acima da especiação, como a dos reinos vegetal e animal." Há mais um amontoado de problemas no quinto parágrafo, onde lemos: "O fato é que os registros fósseis não demonstram as alterações graduais previstas, [...]. Seria assim relativamente rara a evolução, que se caracterizaria pelo aparecimento abrupto de uma espécie, o "saltacionismo", ou "evolução pontuada", [...]." É bom notar que nem o próprio Stephen J. Gould (1941-2002), co-autor da hipótese do equilíbrio pontuado, parecia mais levar a sério a importância generalizada de algum tipo de evolução não-darwiniana - i.e., que alguma outra força, que não a seleção natural, fosse o principal mecanismo responsável pelas mudanças evolutivas (ver Horgan, J. 1998. O fim da ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento científico. SP, Companhia das Letras). No mesmo parágrafo, o autor parece não entender o que seja a cladística, ao menos quando diz: "Acusações semelhantes cercaram a comemoração do centésimo aniversário da sede do Museu Britânico em 1981, [...] devido à apresentação de esquemas de classificação cladistas, que segundo os críticos apoiavam as transformações descontínuas das espécies (Thuillier, 1981)." Já no sexto parágrafo, encontramos: "Como referido atrás, a hipótese de seleção natural descreve um mecanismo que ajuda a conservar espécies (variações) existentes e não a criar novas espécies. A alegação de biólogos de que já se constatou em tempos relativamente muito curtos a criação in natura de espécies vegetais e animais é contestada por outros cientistas. Casos clássicos desta suposta evidência da seleção natural em ação direta (e há poucos), como o da mariposa da bétula têm sido contestados." O que seria pouco para o autor? Será que algumas dezenas de exemplos - pois é isso o que temos - ainda seriam assim tão insuficientes? Em todo caso, o autor não deveria escrever o que escreveu sem ter pesquisado um pouco mais - e.g., Weiner, J. 1995. O bico do tentilhão: uma história da evolução no nosso tempo. RJ, Rocco. No sétimo parágrafo, um outro mal-entendido grosseiro: "Em termos de biologia molecular, o darwinismo se defronta com este problema: como passar da microevolução à macroevolução?" O autor parece imaginar que a microevolução seja um problema próprio da biologia molecular. E não é bem isso. Microevoluçãomacroevolução, que lidaria com questões relacionados ao surgimento de grupos taxonômicos acima do nível específico (gêneros, famílias, ordens, classes etc.). A transição entre essas duas classes de fenômenos, porém, nada tem de misteriosa: o mesmo conjunto de forças que molda a evolução intra-específica, digamos a SN, pode no longo prazo resultar em "macro-eventos" - i.e., na separação de duas ou mais linhagens que daí por diante dão origem a grupos (gêneros, famílias etc.) de espécies distintos. De resto, é sempre bom lembrar que na definição de categorias taxonômicos superiores (i.e., acima do nível específico) há um certo grau de arbitrariedade, em dose bem maior do que aquela que comumente empregamos na caracterização de espécies. Na frase seguinte, temos: "Há neste campo dificuldades atuais em querer usar a seleção natural para explicar a vida que foram de certa forma antecipadas pelo próprio Darwin, quando se deparou com problemas em torno da evolução de um órgão complexo [...]." Outro deslize, pois a provável evolução gradativa de órgãos complexos tem sido cada vez mais detalhadamente estudada e descrita (ver Dawkins, R. 1998. A escalada do monte improvável. SP, Companhia das Letras). O nono parágrafo é uma coleção de bobagens, a exemplo do que ocorreu no décimo segundo parágrafo da Parte I (ver acima). Nos dois parágrafos seguintes, o autor joga para dentro do liquidificador conceitos importantes, como é o caso de "neutralismo" e "sociobiologia". Esta última, que já havia sido mencionada antes, é mais uma vez tratada como ideologia, e não como disciplina científica. (Faz uns 30 anos que ouço uma ala importante das ciências sociais brasileiras bradar contra a sociobiologia. Não sei se fazem isso por desconhecimento do assunto, má-fé ou medo de perder o emprego. Em todo caso, já passou da hora desse pessoal entender o seguinte: a sociobiologia é uma ciência que lida com fenômenos biológicos pertinentes a inúmeras outras espécies animais, e não apenas à espécie humana.) No décimo segundo parágrafo, encontramos: "Das teses sociobiológicas com tal fundamentação há algumas que caminham diretamente para conceitos de eugenia, como o "investimento parental", e outras que não caminham para lugar algum, como a coevolução, presumida como explicação do parasitismo e mimetismo (Chauvin, 1999)." Para escrever uma bobagem dessas, temo que o autor simplesmente desconheça o que significam os termos "investimento parental" e "co-evolução". Ambos são conceitos biológicos importantes, que nada têm de exclusivos em relação às particularidades de nossa espécie. Um caso familiar de investimento parental envolve as diferenças comumente observadas no tamanho das sementes de uma árvore. Já as intrincadas relações entre a árvore e seus polinizadores podem ser o resultado de co-evolução - processo de ajuste mútuo por meio do qual uma espécie influencia a evolução de outra e vice-versa. Para detalhes sobre esses dois conceitos, ver, respectivamente, Krebs, J. R. & Davies, N. B. 1996. Introdução à ecologia comportamental. SP, Atheneu; e Futuyma, D. J. 1992. Biologia evolutiva, 2a edição. Ribeirão Preto & Brasília, Sociedade Brasileira de Genética & CNPq. E assim o artigo prossegue: um problema atrás do outro, às vezes de modo irritante e repetitivo. Como quando o autor insiste com certos comentários de cunho, digamos, sociológico ou psicológico - e.g., Darwin e os darwinistas (ao menos os do século 19) seriam (inerentemente) racistas. Já no décimo nono parágrafo, voltamos a encontrar o uso inadequado de conceitos importantes, a saber: "O indivíduo e os processos individuais (inclusive episódios de luta pela sobrevivência) existem na história enquanto ao mesmo tempo se observarem regras dentro do todo, o que mais uma vez vai contra o puro acaso." Como disse antes, podemos descrever a evolução por SN de vários modos, menos como um processo regido pelo acaso. A densidade de erros e mal-entendidos aumenta de modo surpreendente no vigésimo parágrafo, onde encontramos o seguinte: "Apenas as espécies menos complexas parecem à primeira vista obedecer a teoria malthusiana que serviu de base a Darwin, em que há um número prodigioso de descendentes em cada geração, dos quais só poucos chegarão à fase adulta, e aonde a sobrevivência parece ser devida ao acaso e à maior aptidão." Para começar, não fica claro o que o autor quis dizer com a expressão "espécies menos complexas". Em todo caso, é bom notar o seguinte: entre os animais, a taxa reprodutiva (número de descendentes gerados por unidade de tempo) tem mais a ver com o tamanho do corpo do que com o nível de complexidade estrutural ou funcional. Além disso, vale lembrar que a perspectiva malthusiana (entendida aqui como a afirmação de que o potencial de crescimento numérico de qualquer população é enorme) continua cem por cento em forma, servindo como um dos alicerces da moderna ecologia de populações. Ademais, é bom notar o seguinte: em termos meramente numéricos, o que importa para o crescimento populacional não é tanto o número absoluto de descendentes que um casal gera, mas sim o número de descendentes que sobrevivem até a idade adulta, quando seriam então capazes de gerar seus próprios descendentes. Cabe ainda observar se este último número estaria ou não acima de um determinado valor crítico. Nas espécies que se reproduzem por via sexuada e tendem a formar casais, como é o nosso caso, esse valor crítico estaria próximo de dois. Essa seria a quantidade mínima de descendentes per capita necessária para substituir os pais na próxima geração, mantendo inalterado o tamanho populacional. Acima desse valor crítico, a população tenderia a crescer; abaixo, ela tenderia a diminuir (para detalhes, ver o artigo "BIDE: uma introdução à ecologia matemática"). No vigésimo segundo parágrafo, lemos: "A propósito da competição entre indivíduos, observamos que o cruzamento intra-específico ("inbreeding") [...]. Animais domesticados podem ser mais vantajosamente selecionados por cruzamentos misturados, inter-específicos ("outbreeding"), para maior versatilidade e vigor." Pelo jeito, o autor se atrapalhou no uso das expressões inbreeding (endocruzamento) e outbreeding (exocruzamento). A rigor, esses termos são usados de acordo com a proximidade genética (real ou presumida) de indivíduos co-específicos que cruzam entre si. Em função do tipo de cruzamento que predomina, o regime reprodutivo de uma população pode ser então descrito como endogâmico ou exogâmico, respectivamente. Entre nós, o cruzamento entre parentes próximos (digamos, primos) seria um caso de endogamia. O exemplo mais extremo de endogamia é a autofecundação, como ocorre quando grãos de pólen fecundam os óvulos da própria flor. Nos parágrafos seguintes, o autor lança mão de mais alguns conceitos biológicos importantes, como "ambiente" e "adaptação", mas o faz de modo igualmente inconsistente. Em seguida, tratando especificamente da evolução humana, os erros e mal-entendidos continuam a aparecer, como nessa passagem do vigésimo quinto parágrafo: "Do ponto de vista da seleção natural, o homem seria uma espécie pouco apta a sobreviver, sendo mais fraco e nu, mas na verdade é a espécie mais adaptada a condições ambientais instáveis, condição fundamental para a evolução e já referida no item precedente." O bom e velho chauvinismo antropocêntrico das ciências humanas... Em todo caso, o autor mais uma vez não deveria ter escrito o que escreveu sem ter pesquisado um pouco mais - e.g., Foley, R. 1993. Apenas mais uma espécie única: padrões da ecologia evolutiva humana. SP, Edusp. E assim o artigo prossegue até a última frase: uma sucessão de parágrafos inconsistentes, costurados com linha de segunda. O mosaico final é um bocado confuso e, na minha opinião, não se sustenta de pé. Coda Apesar de tantos problemas, sou de opinião que o artigo "Darwin: herói ou fraude?" pode cumprir um papel importante. Antes de tudo, porque é provocante e tem o potencial de agitar as águas malparadas de nosso universo acadêmico. Além disso, penso que o artigo serve como exemplo de algo ainda pouco visto entre nós: nem todas as pseudocríticas ao neodarwinismo partem de autores ou grupos obscuros ou obscurantistas. O assunto, aliás, é ligeiramente tratado no vigésimo sexto parágrafo da Parte I, onde lemos: "Muitas pessoas pensam erroneamente que criticar a teoria darwiniana da evolução significa defender o criacionismo religioso na sua forma fundamentalista, isto é, a que toma literalmente a interpretação das escrituras sagradas (no caso majoritário a Bíblia, especialmente no livro de Gênesis)." Em suma: embora escrever sobre evolução (ou qualquer outro tema ou disciplina científica) não seja privilégio de biólogos (nem de qualquer outro cientista), qualquer um que se disponha a fazer isso deve estar minimamente preparado para conduzir bem a sua empreitada. (A exemplo de qualquer outra empreitada que tenhamos pela frente.) O interesse do público e a facilidade de abordar o assunto (ao menos em linhas gerais) com freqüência resultam em doses elevadas de sensacionalismo - para uma discussão mais detalhada, ver artigo "Com quantos 'efes' se escreve 'evolução'?" (2). É por essas e outras que com freqüência aparecem nas bancas de revista ou nas prateleiras das livrarias textos (livros, revistas, jornais etc.) que prometem "esclarecer" ou mesmo "desmistificar" o neodarwinismo, quando não a própria biologia evolutiva. Em meio a tudo isso, no entanto, ainda é possível encontrar gente bem-intencionada querendo derrubar o neodarwinismo. Um dos problemas é que mesmo autores "revisionistas" bem-intencionados costumam fundamentar o conteúdo daquilo que escrevem em conceitos maldigeridos encontrados em obras de divulgação científica (e não em bibliografia técnica). Não basta, portanto, simplesmente empilhar uns tantos livros de divulgação e achar que está tudo ali, pois não está. E a razão para isso é relativamente simples: a literatura publicada em português ainda é uma amostra bastante acanhada, rarefeita e distorcida do que se passa nas diversas áreas da biologia evolutiva contemporânea.
Notas
(*) Biólogo (meiterer@hotmail.com), autor do livro Ecologia, evolução & o valor das pequenas coisas (2003).
(1) http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/ofjor/ofc251220021.htm |
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