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La insignia
5 de agosto de 2006


Peabiru, histórias e plantas


Victor José Mendes Cardoso (*)
La Insignia. Brasil, agosto de 2006.



A história de um lugar evidentemente está associada à história de seu povo, ou de seus povos, e vice-versa. Em 1500, os colonizadores portugueses encontraram aqui povos que já habitavam as terras brasileiras. Os primeiros nativos contatados pelos portuguêses, pertenciam ao tronco lingüístico Tupi, que por sua vez seria dividido em famílias, como a Tupi-Guarani, que reunia grupos Guaranis da bacia do Prata com grupos Tupis (tupinambás, tupiniquins) do litoral brasileiro 1 .

A cultura arqueológica associada a esses grupos pode ser denominada Tupiguarani 1 . A ocupação Tupiguarani, por sua vez, sofreu forte influência de fatores do ambiente físico, particularmente fatores climáticos. Assim, não se adaptaram a regiões secas e frias ("jamais ficaram onde há mais de cinco dias de geada noturna por ano"), e praticamente não são encontrados em altitudes superiores a 400 m acima do nível do mar. Por sua vez, era comum a presença desses índios nas proximidades de rios navegáveis, em zonas florestadas. Desse modo, a ocupação pela cultura Tupiguarani segue aproximadamente a rede hidrográfica principal, sendo que sua impressionante extensão pode ser explicada em parte por sua vocação de navegadores, particularmente fluviais.

Alem das vias fluviais, os caminhos terrestres também representam uma importante via de comunicação e penetração, colocando em contato as terras do litoral com o interior do continente. No caso da cultura Tupiguarani, essas estradas eram provavelmente reservadas a expedições militares ou "diplomáticas" entre diferentes tribos 1 .

Na gênese dos caminhos, uns se sucedem aos outros, muitas vezes se aproveitando do traçado mais antigo. O caminho original muitas vezes não passava de um trilho de pedestres, criado ao sabor dos passos dos primeiros viajantes. Conta-se que Tagore (1861-1941) - escritor, músico e filósofo indiano, laureado com o prêmio Nobel de literatura de 1913 - confessou-se surpreso ao ver os ziguezagues descritos por um caminho ao longo de um campo perfeitamente plano. Considerando-se que um caminho não é traçado pelo capricho de um só pedestre, "poder-se-ia acreditar que quase todos os caminhantes são dotados de excentricidades idênticas, pois traçaram caminhos tão estranhamente sinuosos. A causa disso está, entretanto, nas sugestões vindas da terra, às quais nossos pés respondem inconscientemente" 2 .

Na escolha de locais para abertura de caminhos, os mateiros guiam-se muito pelas características da vegetação e pela topografia. No Ceará, por exemplo, a presença de carnaúba (uma palmeira) indicava um vale ou terreno alagável; uma vegetação raquítica, carrascal (formação vegetal rala e enfezada) ou caatinga indicava um chapadão; ao passo que vegetação alta indicaria serra. Uma boa sugestão também seria acompanhar as veredas abertas pelos animais que, instintivamente, buscam "os caminhos de menor declive, de menor distância e de menor tropeço", ou seja, o caminho ideal para um engenheiro construtor de estradas 2 . No Brasil, o colonizador branco, buscando a penetração no interior do continente, seguiu, além das vias fluviais, os primitivos caminhos indígenas e, posteriormente, as trilhas do gado, evitando-se, na medida do possível, as serras abruptas, as florestas densas e emaranhadas, bem como os terrenos alagados e brejosos 2 .

O Peabiru

O mais famoso desses caminhos, conhecido como Peabiru, ia do litoral paulista até Assunção (Paraguai), cruzando o atual estado do Paraná. Na verdade, é provável que o Peabirú consistisse de uma rede de caminhos interligados colocando em contato o sul/sudeste brasileiro e a região andina. Acredita-se, por exemplo, que os índios guaianases de Piratininga mantinham relações contínuas com os habitantes do litoral através de vias de comunicação terrestres, "abertas e praticadas pelo gentio, pondo em relações de comércio e amizade as tribos do litoral e suas vizinhanças com as do mais remoto interior do país" 3 .

Algumas evidências e conjecturas fazem supor que o Peabiru tenha sido uma rota muito antiga, quiçá de origem incaica, construída no sentido leste-oeste. O arqueólogo André Prous, por exemplo, menciona o encontro de um machado de cobre em um sítio arqueológico localizado em Cananéia (SP), cuja análise demonstrou que a matéria prima usada na sua confecção era proveniente da região da Cordilheira dos Andes 1 .

Seu traçado preciso ainda é motivo de conjecturas, entretanto, com base em diversos trabalhos, pode-se estabelecer um roteiro geral (e parcial) da malha em território brasileiro: o tronco principal ia de São Vicente (SP) até São Paulo, daí acompanhava o curso do rio Tietê em direção a Itu (SP), passando pelos atuais municípios de Santana do Parnaíba e Pirapora do Bom Jesus; virava a sudoeste, passando por Sorocaba, Araçoiaba da Serra e Itapetininga, acompanhando então a rota aproximada da atual rodovia SP 258 (Francisco Alves Negrão), passando pelos municípios de Capão Bonito, Itapeva e Itararé (SP); adentrava o atual estado do Paraná, cruzando Jaguariaíva, Piraí do Sul e Castro. Nesse ponto, devia encontrar um ramal que vinha desde o litoral de Santa Catarina, junto à barra do Rio Itapocu, passando pelos municípios de Jaraguá do Sul (SC), São Bento do Sul (SC), Rio Negro (este já no estado do Paraná), Lapa, Palmeira e Ponta Grossa.

Um outro ramal, partindo de Castro, dirigia-se a leste, cruzando os atuais municípios de Açungui (PR), Cerro Azul, Adrianópolis, Iporanga (já no estado de São Paulo) e Jacupiranga, finalizando em Cananéia, no litoral sul paulista. Do entroncamento na região de Castro, a via principal seguiria em direção oeste, através do atual estado do Paraná, cruzando os atuais municípios de Tibagi, Reserva, Cândido de Abreu e Pitanga; daí acompanhava aproximadamente o rio Cantu - passando, entre outros, por Palmital, Laranjal e Campina da Lagoa - até a desembocadura desse no rio Piquiri, o qual era margeado até sua foz, no rio Paraná, onde existiria a povoação espanhola de Ciudad Real del Guairá. Da região de Cândido de Abreu, um ramo do caminho seguiria em direção nordeste, passando por Campo Mourão e rumando para os lados de Apucarana (PR), de onde acompanhava o rio Pirapó até sua foz no Paranapanema, na divisa dos atuais estados de São Paulo e Paraná. A partir desse ponto, devia seguir rumo nordeste, de acordo com um traçado mais ou menos correspondente ao da atual rodovia SP 425, interceptando uma outra via do Peabiru, que acompanhava a margem esquerda do rio Tietê, desde sua desembocadura no rio Paraná, em um trajeto que corresponderia aproximadamente ao da atual rodovia SP 300 (Marechal Rondon), passando por Botucatu e interceptando a via principal na região do Itu 4-6 .

Aspectos históricos

Após a chegada dos portugueses, um dos primeiros centros de penetração foi a capitania de São Vicente (capitania de São Paulo, a partir de 1681), tendo as vilas de São Vicente e São Paulo como focos iniciais de irradiação 2 . Nos primórdios do século 16, São Vicente era para os espanhóis o principal ponto de partida para a via terrestre entre o Atlântico e o Paraguai, e daí rumo aos altiplanos do Peru, no coração do império incaico recém-conquistado. No sentido inverso, representaria o caminho mais curto para os que, vindos de Assunção, demandavam a Europa.

Assim, o Peabiru evitaria, para os espanhóis que demandavam o Peru, a circunavegação de quase metade da América do Sul, com todos os riscos associados a uma empreitada dessa magnitude. Naquela época, São Vicente seria um importante entreposto comercial da costa americana no qual, a cerca de 500 km do limite meridional estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas, portugueses e espanhóis conviviam à custa do tráfico de índios e aprovisionamento de embarcações. Entre as expedições que ali fizeram escala de reabastecimento destacam-se as de Cristóvão Pires (1511), Nuno Dias de Solis (1515), Fernão de Magalhães (1519) e Sebastião Caboto (1525). Em 1532, Martin Afonso de Souza, reconhecendo a importância estratégica do povoado, lavraria o ato formal de seu reconhecimento pela coroa portuguesa. Assim, o "fundador" de São Vicente não teria encontrado um local bruto e selvagem, mas um porto e uma vila com um comércio estabelecido e uma história atrás de si. Acredita-se que esse porto já existiria, mesmo antes do desembarque de Cabral na costa da Bahia, sob os nomes de Upanema, Maraipion, Tumiaru ou Tumaiaru, e que o Peabiru seria a razão do rápido florescimento do povoado nos alvores no século 16 5 .

A partir dessa época, ao que parece, Portugal passaria a ver com desconfiança cada vez maior a presença espanhola em suas terras, tratando de adotar medidas no sentido de exercer uma maior vigilância e mesmo coibir (e, mais tarde, proibir) o trânsito pelo Peabiru. Uma das medidas seria a implantação de povoações no planalto - com o auxilio dos jesuítas, liderados pelo Pe. Manoel da Nóbrega -, que funcionariam assim como sentinelas avançadas da colônia portuguesa, cortando a principal via de ligação terrestre com os territórios pertencentes à coroa espanhola. Basta lembrar a localização estratégica da vila de São Paulo, em uma acrópole que dominava a várzea do Peabiru e impedindo assim o avanço espanhol em direção à costa Atlântica 5 .

Sugere-se também que um dos motivos que levaram os jesuítas, em particular Nóbrega, a se interessar pelo Peabiru, teria sido o desejo de evangelização dos indígenas no oeste, no Paraguai. O então governador geral do Brasil, Tomé de Souza, por sua vez, viu-se em meio a um dilema: se liberasse o caminho para os jesuítas, também se sujeitaria ao avanço castelhano pela mesma via, só que no sentido inverso. Na verdade, um conflito surdo entre Assunção e São Vicente já se desenhava, tendo em vista, por exemplo, a exibição em São Vicente, em 1553, de amostras de prata colhida por vicentinos em território paraguaio. Isso levaria a corte espanhola a tomar providências no sentido de proteger as minas de eventuais investidas de colonos portugueses. Esse fato, por sua vez, teria irritado Lisboa, que liberaria o governador-geral para tomar medidas que protegessem os interesses portugueses e hostilizassem os castelhanos 5 . Assim, questões político-estratégicas locais, associadas à política de hostilidades e mútua desconfiança entre as metrópoles (Portugal e Espanha), levariam Tomé de Souza, em 1553, a lavrar um ato proibindo o trânsito, seja de portugueses, seja de espanhóis, através do Peabiru. Logo em seguida, em janeiro de 1554, os jesuítas edificariam nos campos de Piratininga, no planalto, o prédio que abrigaria o colégio e a capela de São Paulo.

Assim, o comércio e o intercâmbio entre as colônias - onde a densidade de povoamento mais as aproximava - sofreu um duro golpe, provavelmente com prejuízos para ambas as partes. Os espanhóis passariam a acessar o Peabiru a partir de vias situadas mais ao sul, no litoral de Santa Catarina, à altura da linha divisória oficial entre as possessões espanhola e portuguesa. Essa foi a rota tomada por Alvar Nunez Cabeza de Vaca que, em 1541, vindo da Espanha com destino a Assunção, desembarcou em Santa Catarina e adentrou o continente na altura da barra do rio Itapocu (cerca de 35 km ao sul de Joinvile), seguindo uma rota no sentido noroeste até interceptar o tronco principal do Peabiru, na região dos atuais municípios de Ponta Grossa e Castro (PR), seguindo então rumo ao Paraguai pelo caminho original.

A "redescoberta" do Peabiru

Evidentemente, a proibição oficial de circulação pelo velho caminho, não significou seu imediato abandono, como atestam alguns relatos descritos por Ernani Donato, em seu livro "Sumé e Peabirú: mistérios maiores do século da descoberta". Todavia, embora longos trechos do Peabiru tenham se metamorfoseado em caminhos de tropeiros e, posteriormente, em estradas e rodovias, o traçado original se perdeu, em muitos casos de maneira irreversível. Vários pesquisadores, debruçados sobre documentos antigos, e com o auxílio de modernas técnicas de levantamento aerofotogramétrico, têm procurado recuperar o traçado e a memória dos velhos caminhos, tataravôs de muitas das modernas rodovias que cruzam as regiões Sul e Sudeste do país.

Estudos arqueológicos têm encontrado vestígios de caminhos antigos, entre eles o Peabiru, que sobreviveu em pequenos trechos, principalmente no atual estado do Paraná. Os primeiros vestígios foram encontrados nas proximidades do município de Campina da Lagoa (PR), em 1970, sendo que, no decorrer das pesquisas, novos trechos do caminho foram sendo encontrados. De acordo com os pesquisadores, "nos trechos de mata, os vestígios do caminho eram perfeitamente visíveis. A trilha media 1,40 m de largura por 0,40 m de profundidade. Os seus restos desapareciam completamente nos terrenos desmatados ou lavrados, para novamente aparecerem nos trechos protegidos pela vegetação" 7 . Nessa pesquisa, não foram constatados quaisquer tipos de revestimentos em seu leito, cujo piso apresentava-se compactado. Ao longo do caminho foram encontrados sítios arqueológicos, contendo aterros, casas subterrâneas e galeria subterrânea.

Como seria praticável um sistema de caminhos, como o Peabiru, que atravessava regiões ocupadas - segundo fontes históricas - por tribos indígenas portadoras de culturas diversas, desde muito antes da chegada dos europeus? 7 . Ou então: por que indígenas diferenciados em suas culturas iriam construir uma estrada unindo povos tão distintos? Esse poderia ser um argumento a favor da pré-existência do caminho, antes mesmo do estabelecimento das tribos. Os antigos habitantes do Peru (os "incas") teriam o costume de depositar, ao longo das estradas, pedras em homenagem aos manes de seus antepassados, o que acarretava o surgimento de vários montículos de pedrinhas ao lado dessas estradas 8 .

Em um texto do etnólogo Telêmaco Borba, o autor afirma que: "...em nossas excursões pelos campos e fachinais deste município (Tibagi - PR), sempre nos despertara a atenção certos montículos de forma cônica, que encontrávamos nos pontos mais elevados das cochilhas, principalmente nas imediações das grandes florestas de pinheiros; pela forma, traziam-nos à memória os túmulos dos caingangues". O relato prossegue com a conclusão, baseada em escavações, de que tais montículos seriam realmente túmulos ou sepulturas "de uma nação ou tribo que usava a cremação de seus mortos" 7 . Indícios como esse sugerem uma origem comum de tradições ou costumes de povos de culturas aparentemente distintas, no caso, os incas e tribos indígenas do Sul e Sudeste do Brasil. Seria então o Peabiru o elo de ligação entre todos eles?

Peabiru e as plantas

Um outro elemento, este de natureza botânica, também poderia servir de apoio à hipótese da origem incaica do Peabiru. Ernani Donato refere-se a uma hipótese segundo a qual as estradas incas eram semeadas com certas gramíneas selecionadas que impediam o surgimento de outras plantas 5 . Assim, em certos trechos, o Peabiru seria forrado por uma cobertura vegetal implantada, atividade essa que, em tese, fugiria das concepções e costumes dos índios que habitavam o território brasileiro à época do descobrimento. Sobre essa cobertura vegetal, os relatos falam de uma "erva miúda" que crescia até cerca de 0,70 m de altura e, mesmo que se queimassem os campos, ela sempre brotava novamente.

Em um trecho do livro "Historia de la Conquista del Paraguay", do Pe. Pedro de Lozano, o autor assim se refere ao caminho: "Por esta provincia Tayaoba, junto às cabeceiras do Rio Piquiri corre el camiño nombrado por los guaraníes peabirú y por los españoles de Santo Tomé (...), y tiene ocho palmos de ancho, en cuyo espacio se le nace una yerba muy menuda que le distingue de toda la demás de los lados, que por la fertilidad crece a media vara, y aunque agostada la paja, se quemen los campos, nunca la yerba del dicho camiño se eleva más" 9 . O jesuíta Nicolas del Techo, em seu "Historia de la Provincia del Paraguay de la Compañía de Jesús" também destaca a cobertura vegetal do lendário caminho: "(conserva-se) igual todo el año, sin más que las yerbas crecen algo y difieren bastante de las que hay en el campo, ofreciendo el aspecto de una vía hecha con artificio; jamás la miran los misioneros del Guairá que no experimenten grande asombro" 9 . Cabe ressaltar que, nessa planta que nem o fogo conseguia destruir e que não crescia além do necessário, os religiosos viam um fato milagroso que corroborava a crença de que o Peabiru seria obra do apóstolo Tomé. Nesse aspecto, parece que os padres apenas interpretavam uma antiga tradição oral indígena que falava de uma figura mitológica, Zumé ou Sumé, cujos equivalentes (Manco Capac, Zemi, Kukulcan, Viracocha, e outros) são reconhecidos em diversas culturas ameríndias, e mesmo no oriente 5, 9 .

Embora os jesuítas destacassem a existência de uma cobertura vegetal de natureza incomum e até certo ponto miraculosa, segundo tais relatos, os textos não fornecem informações ou pistas adicionais que permitam ao leitor identificar essa tal "yerba muy menuda" que cobriria o leito do caminho. Do livro "La Antigua Provincia de Guairá y la Villa Rica del Espíritu Santo", de Ramon I. Cardoso, transcrevemos o seguinte trecho: "Lozano cuenta que por la provincia de Tayaoba cruzaba el camino de los guaranies llamado Peabirú (...). Respecto a los caminos dice el Dr. Bertoni Moisés S. Bertoni en su 'Prehistoria e Protohistoria' que los guaraníes abrían picada en el monte y después de limpiarla con cierta proligidad, la sembraban de trecho en trecho con semillas de dos o tres especies de gramináceas, una especialmente cuyos brotes se propagaban con suma facilidad, y plantas que nacían, pronto cubrían completamente el suelo y podían impedir el crecimiento de los árboles y de los yuyos, que sin eso hubieran ocultado la picada. Estas gramíneas tan bien escogidas, tenían la especialidad de tener semillas glutinosas o sedosas que se pegaban espontáneamente a los pies y a las piernas de los viajantes. Sobraba con plantarlas o sembrarlas a grandes distancias, de legua a legua, por ejemplo, para que, al poco tiempo, uno o dos años tal vez, resultare tapízalo el camino por una alfombra que impedía el crecimiento de los arbustos y otras malezas que hubieran podido obstruirlo. Una de estas vias... pasaba del Guairá a la costa del Brasil; otra salía de la costa de Santa Catarina y llegaba al Salto Iguasú; otra del Salto Iguasú pasaba por la región del Guairá" 10 .

Assim, o texto de Ramon Cardoso - que se refere ao Peabiru como "caminho dos guaranis" - informa que os índios abriam picadas e nela semeavam gramíneas que formavam um "tapete verde" por sobre a trilha, impedindo inclusive a germinação de outras espécies (efeito alelopático?). Uma característica importante dessas gramíneas seria a presença de diásporos que grudavam nos pés e pernas dos passantes, o que asseguraria sua dispersão ao longo do caminho. Luis Galdino, referindo-se a um possível trecho do Peabiru na região de Pitanga (PR), descreve-o como uma valeta "forrada com um certo tipo de gramínea nativa, conhecida na região pelo nome de 'puxa-tripa'" 4 .

A partir da sugestão de que essa planta pudesse ser a "yerba mui menuda" à qual se referiam os jesuítas em seus relatos sobre o Peabiru, fomos a Pitanga e, com a inestimável orientação do Sr. Clemente Gaioski - funcionário aposentado do IBGE e pesquisador do Peabiru - coletamos algumas amostras desse capim vegetando em propriedades na zona rural do município. Quando as plantas foram identificadas, constatou-se a presença de duas espécies: Homolepis glutinosa (Sw.) Zuloaga & Soderstr. e Panicum pilosum Sw. A primeira espécie, H. Glutinosa, apresentava unidades de dispersão pegajosas, que aderiam à pele. Aliás, o nome vulgar da planta "puxa-tripa" derivaria do fato do que seus diásporos aderiam ao pé ou à pata de um animal, e este, ao deslocar-se, levava consigo também partes da inflorescência e a própria raquis, que seriam então arrastadas como se fosse uma longa "tripa". Quanto à segunda espécie, P. Pilosum, essa característica pegajosa não nos pareceu evidente, embora isso provavelmente possa variar dependendo do estágio de maturação dos frutos.

Seriam essas as espécies assinaladas pelos cronistas do Peabiru? Em caso negativo, quais seriam as espécies? Quanto a H. Glutinosa, de acordo com a "Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo", trata-se de uma planta perene, decumbente (ramos prostrados), radicante (capacidade dos ramos de emitirem raízes adventícias), com altura variando de 0,6 m a 2 m, ocasionalmente estolonífera, distribuída desde o México até a Argentina, ocorrendo em campos, restingas e borda de florestas. P. Pilosum, por sua vez, é descrita como perene, sem rizomas, estolonífera, às vezes decumbente, radicante nos nós inferiores, medindo de 0,2 m a 0,85 m, distribuindo-se da América Central à Argentina, vegetando em locais sombreados de beira e interior de florestas, menos comum em campo aberto, preferindo solos úmidos 11 .

Homolepis glutinosa, pelas características descritas, é uma planta que merece estudo mais aprofundado, especialmente pelas propriedades "adesivas" de suas unidades de dispersão, o que a tornaria uma candidata em potencial ao rol das espécies possivelmente usadas pelos guaranis como revestimento dos caminhos que cortavam suas terras. Todavia, sua eventual preferência - diferentemente de P. Pilosum - por lugares abertos, como campos e bordas de florestas, poderia eventualmente comprometer a propagação da espécie em trechos onde o Peabiru cortasse florestas fechadas. Vale lembrar que, como mencionado anteriormente, não foi encontrado nenhum tipo de revestimento digno de destaque, nos vestígios de velhas trilhas indígenas preservadas em meio à floresta.

Seria possível associar o traçado original do Peabiru à cobertura vegetal hodierna? Um cuidadoso trabalho de coleta e levantamento da flora poderia eventualmente contribuir para a resposta a essa questão. O pesquisador José Francisco M. Valls, da EMBRAPA/CENARGEN, destaca a importância do estudo, sob o enfoque arqueológico, da ação humana no transporte de sementes e mudas. No caso de espécies do gênero Arachis (amendoim), diversas populações tem sido coletadas vegetando próximo a sítios arqueológicos, como é ocaso de A. Stenospermae, que ocorre junto a ruínas do século 16, no município de Peruíbe (SP) 12 . De acordo com o autor, "pareceria apropriado investigar-se as associações desta espécie, disjunta no Mato Grosso e Litoral, com o traçado do lendário caminho Peabiru...".

Na "Flora Fanerogâmica do Estado de São Paulo", notou-se que os locais indicados de coleta de espécimes de Homolepis glutinosa - Cachoeira Paulista, Cananéia, Iguape, Itararé, Paraguaçu Paulista, São Carlos e São Paulo - acompanham em geral o suposto traçado do Peabiru ou de outras rotas indígenas, como a antiga trilha dos Guaná, que se transformaria no Caminho Velho do Ouro 4 . Seria isso uma mera coincidência? Independentemente da resposta, acreditamos que a Botânica possa ser um instrumento a mais no sentido de se esclarecer pontos obscuros da história da ocupação e conquista do território brasileiro pelos povos que aqui habitaram e habitam.


Notas

(*) Professor adjunto victorjc@rc.unesp.br, Departamento de Botânica, Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (Rio Claro, SP).

1. Prous, A. 1991. Arqueologia brasileira. Brasília, Editora da UnB.
2. Silva, M. M. F. 1949. Geografia dos transportes no Brasil. RJ, IBGE/CNG.
3. Pinto, A. A. 1903. História da viação pública de S. Paulo (Brasil). SP, Vanorden & Cia.
4. Galdino, L. 2002. Peabiru: os incas no Brasil. BH, Editora Estrada Real.
5. Donato, E. 1997. Sumé e Peabiru: mistérios maiores do século da descoberta. SP, Edições GRD.
6. Maack, R. 1968. Geografia física do estado do Paraná. Curitiba, UFPR/IBPT.
7. Chmyz, I. & Sauner, Z. C. 1971. Nota prévia sobre as pesquisas arqueológicas no vale do rio Piquiri. Dédalo 13: 7-36.
8. César, G. 1975. Crendices: suas origens e classificação. RJ, MEC.
9. Holanda, S. B. 1977. Visão do paraíso, 3ª Edição. SP, Companhia Editora Nacional.
10. Cardoso, R. I. 1918 La antigua província de Guairá y la Villa Rica del Espíritu Santo. Buenos Aires, Librería y Casa Editora.
11. Longhi-Wagner, H. M.; Bittrich, V.; Wanderley, M. G. L. & Shepherd, G. J. 2001. Poaceae, In Wanderley, M. G. L., Shepherd, G. J. & Giulietti, A. M., orgs. Flora fanerogâmica do estado de São Paulo, vol. 1. SP, Editora Hucitec.
12. Valls, J. F. M. 1996. O gênero Arachis (Leguminosae): importante fonte de proteínas na pré-história sul americana. Anais da VIII Reunião da Sociedade de Arqueologia Brasileira, vol. 2. Porto Alegre, EDIPUCRS.



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