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La insignia
9 de outubro de 2005


Zoofobia


Felipe A. P. L. Costa (*)
La Insignia. Brasil, outubro de 2005.


O ensino de zoologia entre nós tem um acentuado enfoque antropocêntrico. Para chegar a essa conclusão, basta freqüentar a escola ou então folhear algumas de nossas coleções didáticas de Ciências (Ensino Fundamental) e Biologia (Ensino Médio). Fixando nossa espécie no centro de todas as preocupações, o viés antropocêntrico parece querer dividir o restante do reino animal em duas metades: de um lado, os animais benéficos, muitos dos quais nós criamos (incluindo "as abelhas que nos dão o mel", "o bicho-da-seda que nos dá a seda" e "os animais domésticos que nos dão a carne, o leite, a lã e os ovos"); de outro, os animais nocivos (incluindo pragas agrícolas e vetores de doenças), muitos dos quais nós queremos exterminar [1].

Como a ênfase dada em sala de aula aos animais nocivos costuma ser exagerada e distorcida, os alunos tendem a concluir que a natureza é um lugar extremamente hostil, habitado por criaturas horripilantes e perigosas. Mal-entendidos como esse perduram pelos anos afora, até porque após a conclusão dos estudos pré-universitários a maioria dos alunos deixa de ter contato com quase todas as disciplinas cursadas no Ensino Médio. Em outras palavras, como a maioria de nossos alunos deixa de ter qualquer tipo de contato com a zoologia após ingressar na universidade, as impressões grosseiras e profundamente distorcidas recebidas durante o Ensino Médio e o Fundamental tendem a se solidificar ao longo da idade adulta. Ao invés de promover a aquisição de uma postura científica esclarecida, interessada e respeitosa, estaríamos assim colaborando para disseminar um certo sentimento de zoofobia - entendido aqui como uma aversão crônica aos animais selvagens e a tudo que eles representam [2].

A origem dessa cadeia de problemas não está, claro, nos livros didáticos, mas no enfoque antropocêntrico adotado pelos próprios programas oficiais de ensino [3]. Por sua vez, editoras e autores de livros didáticos, preocupados em atender às demandas governamentais, apenas reproduziriam as distorções programáticas. O problema vem de longe, embora as aberrações tenham adquirido ao longo dos anos uma nova roupagem. Três décadas atrás, por exemplo, durante meus anos de estudante pré-universitário, aprendíamos que certos animais eram úteis porque do corpo deles podíamos extrair a matéria-prima para a confecção de coisas como botões de camisa, pentes e tonéis de tinta. Mesmo sem incorrer em grosserias desse nível, o discurso atual não é tão diferente assim - é só trocar os produtos do passado (botões, pentes, tintas etc.) pelos "sofisticados" produtos moleculares do presente (DNA, proteínas, fármacos etc.).


Inimigos naturais, vetores, animais peçonhentos

O viés antropocêntrico costuma apresentar os animais nocivos em três pacotes principais: inimigos naturais, vetores de doenças e animais peçonhentos. Além de bastante heterogêneos, no entanto, essas categorias não são mutuamente exclusivas, isso porque um mesmo animal pode ser classificado em mais de uma delas. Por exemplo, um inseto pode ser classificado como inimigo - digamos, porque se alimenta de nosso sangue - e, ao mesmo tempo, se comportar como vetor, pois durante o repasto ele é capaz de nos transmitir agentes patogênicos.

Entre os inimigos naturais, encontramos parasitas, patógenos e predadores, além de um variado elenco de competidores. A despeito dos avanços tecnológicos, ainda servimos de hospedeiro para inúmeros parasitas (carrapatos, lombrigas, tênias etc.) e micróbios patogênicos (amebas, bactérias, fungos etc.) em todo o mundo. É verdade que muitos parasitas representam um transtorno apenas momentâneo, notadamente no caso de ectoparasitas (carrapatos, piolhos etc.), embora às vezes possam causar doenças ou problemas mais graves. Por sua vez, estamos relativamente a salvo da ação de predadores naturais. Os poucos animais selvagens que ainda poderiam ser classificados como nossos predadores, como ursos e grandes felinos, são relativamente raros ou vivem confinados em áreas mais ou menos restritas. Por fim, entre nossos competidores, encontramos animais que consomem ou tentam consumir os mesmos recursos que nós exploramos. Seria o caso dos insetos herbívoros que se alimentam de plantas cultivadas e o de alguns vertebrados carnívoros que atacam nossos animais de criação.

Já o grupo dos vetores é formado por animais que involuntariamente transmitem parasitas ou micróbios patogênicos aos seres humanos. Ainda que por si só não representem um problema grave, esses animais são responsáveis pela disseminação de muitas doenças em populações humanas. Trata-se de um grupo bastante heterogêneo, no qual reencontramos muitos de nossos ectoparasitas que se alimentam de sangue. Todavia, além de certas semelhanças na dieta (vetores comumente são hematófagos), muitos têm uma outra característica em comum: trocam de hospedeiro com freqüência, um comportamento particularmente apropriado (do ponto de vista do parasita, claro) para um candidato a vetor. Pense, por exemplo, na eficiência dos pernilongos como vetores: além de hábitos hematófagos e da troca constante de hospedeiros, eles são insetos de hábitos tipicamente noturnos. E à noite, não custa lembrar, quase sempre estamos dormindo e aí pouco ou nada podemos fazer contra eles.

Por fim, temos o grupo formado pelos temidos animais peçonhentos, às vezes também chamados (erroneamente) de animais venenosos. Vale notar que, embora peçonha e veneno sejam termos relacionados, há bons motivos para não confundirmos um com o outro: peçonha é inoculável, veneno é ingerível [4]. Quer dizer, animais peçonhentos são aqueles capazes de inocular ativamente substâncias venenosas em outros seres vivos - por exemplo, substâncias paralisantes em suas presas. Aranhas, escorpiões e serpentes são exemplos de animais peçonhentos, não de animais venenosos, pois estão munidos de estruturas especializadas para inocular peçonha: quelíceras, no caso das aranhas; aguilhão, no caso dos escorpiões; presas, no caso das serpentes.


Atirando no próprio pé

Se houvesse um ranking da zoofobia entre os brasileiros, os animais peçonhentos provavelmente ocupariam as primeiras posições. É difícil conhecer alguém que encontre uma serpente no campo, por exemplo, e não queira simplesmente vê-la morta, ou mesmo tente matá-la. Algo semelhante ocorre com os escorpiões e, em menor grau, com as aranhas. Em todos esses casos, no entanto, as reações usuais são quase sempre injustificáveis. Primeiro, porque é perfeitamente possível se livrar ou se afastar desses animais com certa facilidade, sem correr riscos desnecessários. Em segundo lugar, porque estamos diante de uma generalização grosseira, já que são raros os animais peçonhentos que de fato representam algum risco para nós: uma ou duas espécies de escorpiões, duas ou três espécies de aranhas e três ou quatro espécies de serpentes [5]. Quer dizer, mesmo os grupos de animais mais "perigosos" - e que, por isso mesmo, poderiam gerar as reações justificadamente mais zoofóbicas - são formados em sua grande maioria por espécies inteiramente inofensivas para nós.

O que dizer então da zoofobia observada em relação a grupos de animais sabidamente inofensivos, mas sobre os quais pairam pesadas nuvens de desinformação e preconceito? Veja, por exemplo, o que ocorre com morcegos e lagartixas. Qual o grau de tolerância que populações humanas urbanas ou mesmo da zona rural têm em relação à presença desses animais? No caso dos morcegos, em particular, penso que a resposta vá colocá-los bem ao lado das serpentes no ranking da zoofobia. Pouco ou nada justificaria isso, no entanto.

De quase mil espécies de morcegos conhecidas em todo o mundo, apenas três são hematófagas, das quais apenas uma (Desmodus rotundus, o vampiro ou palha-seca) pode eventualmente se alimentar de sangue humano. Nesse caso, em especial, a maior preocupação estaria voltada para o papel que os vampiros desempenham como vetores de doenças, notadamente do vírus da raiva [6]. Aqui onde moro, por exemplo, na zona rural de um município da Zona da Mata mineira, o último ataque conhecido de um morcego hematófago foi há cerca de duas décadas, em um cavalo, de acordo com a declaração de um vizinho amigo nosso, que mora aqui há 30 anos. Ele diz não se incomodar com a presença de morcegos (frugívoros, insetívoros etc.), mas não sei se essa mesma tolerância seria encontrada entre os nossos outros vizinhos.

Na verdade, é provável que o patamar de tolerância à presença de morcegos na zona rural só não esteja em níveis mais baixos por uma questão relativa, pois aqui as serpentes tendem a ocupar uma posição mais à frente no ranking da zoofobia. Já nas cidades, onde as chances de encontrar uma serpente são bem menores que as de encontrar um morcego, seria de esperar que estes últimos assumissem a dianteira do ranking. Em todo caso, estamos mais uma vez diante de uma reação exagerada e injustificada [7], embora existam exemplos ainda mais insensatos.

Um desses exemplos envolve a conhecida lagartixa doméstica ou lagartixa-de-parede, Hemidactilus mabouia. Embora esteja amplamente difundida pelo país, principalmente em áreas perturbadas, como aquelas onde prosperam edificações humanas, trata-se de uma espécie de origem africana [8]. São animais de hábitos noturnos, alimentando-se principalmente de insetos (baratas, mariposas, moscas etc.) e aranhas. Diferentemente dos animais citados até aqui, a lagartixa-de-parede não caberia em nenhum de nossos pacotes antropocêntricos usados para classificar um animal nocivo, já que a sua presença não representa qualquer risco ou ameaça real aos seres humanos. Vejamos: lagartixas não são nossos inimigos naturais (ao contrário, em muitas casas, lagartixas deveriam ser reconhecidas e condecoradas como o "faxineiro do ano"), também não são vetores de doenças (embora haja quem pense que elas transmitem o "cobreiro"), nem são peçonhentos. Mesmo assim, no entanto, lagartixas diariamente são mortas a vassouradas.

Nesse ponto, fechamos o ciclo da zoofobia: começamos com a suposta precaução, que leva muitos de nós a desferirmos golpes mortais contra uma serpente (quase sempre inofensiva), e terminamos encontrando a mais genuína insensatez, quando sacrificamos animais sabidamente inofensivos que estão nos prestando um serviço amigável gratuito. A conclusão não poderia ser outra: estamos atirando em nosso próprio pé.


Notas

* Biólogo (meiterer@hotmail.com), autor do livro ECOLOGIA, EVOLUÇÃO & O VALOR DAS PEQUENAS COISAS (2003).

1. Poderíamos, claro, pensar em categorias adicionais; como a dos animais selvagens bonitos, intrigantes ou bem-comportados, que vivem enclausurados em zoológicos, para nosso próprio e exclusivo deleite.
2. Para uma discussão sobre os fenômenos da biofilia e da biofobia, ver Wilson, E. O. 1989. Biofilia. Ciudad del México, Fondo de Cultura Económica; e Orians, G. H. 1998. Human behavioral ecology: 140 years without Darwin is too long. Bulletin of the Ecological Society of America 79: 15-28.
3. Nem é necessário ir muito longe; procure conferir, por exemplo, o conteúdo do programa de zoologia dos exames vestibulares de alguma universidade próxima. Meu palpite é que para cada grupo de dez questões de zoologia que caem em uma prova de vestibular, ao menos uma trata de verminoses, outra fala sobre insetos transmissores de doenças e uma terceira pergunta algo relacionado a animais peçonhentos.
4. Para uma discussão detalhada, ver Amaral, A. 1976. Linguagem científica. SP, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo. De outro modo, diz-se que um organismo (planta, animal ou fungo) é venenoso quando partes do seu corpo contêm substâncias que provocam efeitos negativos (envenenamento ou intoxicação) em quem tenta abocanhá-lo. Muitas rãs, por exemplo, possuem o corpo recoberto por substâncias tóxicas, cujo potencial de ação pode ser percebido por animais que tenham abocanhá-las. Em certo sentido, as rãs permanecem passivas, elas não tentam injetar o veneno em outros animais. Nesse caso, portanto, dizemos que as rãs são venenosas, e não peçonhentas.
5. De quase 80 gêneros de serpentes que ocorrem no Brasil, apenas seis abrigam espécies peçonhentas (tanatofídeos): Micrurus (coral verdadeira), da família Elapidae; Bothrops (jararaca), Crotalus (cascavel), Lachesis (surucucu), Bothriopsis (jararaca cinza) e Porthidium (jararaca-bicuda), todos da família Columbridae. A imensa maioria dos acidentes registrados no país envolve serpentes do gênero Bothrops (jararacas). Para detalhes técnicos, fotos e guias de identificação dos tanatofídeos brasileiros, ver Amaral, A. 1978. Serpentes do Brasil. SP, Melhoramentos & Edusp; e Borges, R. C. 1999. Serpentes peçonhentas brasileiras. SP, Atheneu; ver ainda Campbell, J. A. & Lamar, W. W. 1989. The venomous reptiles of Latin America. Ithaca, Cornell UP. No caso de escorpiões, a grande maioria dos acidentes no país envolve exemplares da espécie Tityus serrulatus, o escorpião amarelo; uns poucos envolvem o escorpião preto, T. bahiensis. Entre centenas de espécies de aranhas encontradas no Brasil, apenas umas poucas são motivo de preocupação, a saber: aranhas dos gêneros Latrodectus (viúva negra), Loxosceles (aranha marrom), Lycosa (tarântulas) e Phoneutria (armadeira). Para detalhes técnicos, fotos e guias de identificação de escorpiões e aranhas, ver Bücherl, W. 1980. Acúleos que matam. RJ, Kosmos; Schvartsman, S. 1992. Plantas venenosas e animais peçonhentos, 2a edição. SP, Sarvier; ver ainda Polis, G. A., ed. 1990. Biology of scorpions. Stanford, Stanford UP: Lourenço, W. R. 2002. Scorpions of Brazil. Paris, Les Editions de L'If; e Foelix, R. F. 1982. Biology of spiders. Cambridge, Harvard UP.
6. Sobre morcegos hematófagos, ver Bredt, A. & outros 10 co-autores. 1998. Morcegos em áreas urbanas e rurais: manual de manejo e controle, 2a edição. Brasília, Funasa.
7. Afirmar que se trata de uma posição injustificada, não significa dizer que se trata de algo inexplicável. A própria zoofobia é objeto de estudo; cabe investigar, por exemplo, a origem e a manutenção de tantas reações humanas extremadas.
8. Para detalhes técnicos e um guia de identificação da lagartixa-de-parede, ver Vanzolini, P. E.; Ramos-Costa, A. M. M. & Vitt, L. J. 1980. Répteis das caatingas. RJ, Academia Brasileira de Ciências.



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