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10 de março de 2005 |
Manuel Cesario e Raquel Rangel Cesario (*)
Uma doença praticamente desconhecida dos profissionais de saúde brasileiros está se aproximando de nossa fronteira, e seu impacto pode ser agravado pelo modelo de desenvolvimento adotado na Amazônia. A infecção em questão é a bartonelose, originária dos Andes, causada pela bactéria Bartonella bacilliformis e transmitida pelos mesmos mosquitos vetores da leishmaniose. Comum nos vales interandinos peruanos, na última década a bactéria atingiu áreas mais extensas do Peru, incluindo altitudes mais baixas. Em 2003, chegou ao Departamento de Loreto (fronteira com o estado do Amazonas) e, em 2004, infectou 19 pessoas em Madre de Diós, que faz fronteira com o Acre e a Bolívia. O receio é que, caso a bartonelose entre na Amazônia brasileira, sua disseminação seja acelerada pela falta de treinamento específico dos profissionais de saúde do país.
A construção de estradas, hidrelétricas e a expansão da agropecuária extensiva impulsionam o desmatamento, as queimadas e migrações, e tudo isso contribui para aumentar a ocorrência de doenças. Essa tendência tem sido observada, por exemplo, com relação à malária, mas poderia ser ainda mais grave no caso da bartonelose, dada a falta de experiência com a doença no Brasil. Estudos na África e na Amazônia já mostraram que o maior dano à saúde das pessoas e aos ecossistemas acontece ao longo das estradas, principalmente daquelas recentemente asfaltadas. A bartonelose, também conhecida como doença de Carrión, é originária dos altos vales inter-andinos do Peru, da Colômbia e do Equador. Causada pela bactéria Bartonella bacilliformis, é transmitida por mosquitos do gênero Lutzomyia, os mesmos vetores da leishmaniose. Após um período médio de incubação de 61 dias (que varia de dez a 210 dias) o doente com bartonelose apresenta inicialmente sintomas inespecíficos como mal-estar geral, sensação febril com calafrios leves e dores nos músculos, articulações e cabeça, podendo chegar a náuseas e vômitos. Em sua fase mais avançada, a doença causa fraqueza, febres e calafrios, e as vezes é confundida com a malária. O diagnóstico clínico diferencial se faz pela intensa palidez, resultante de forte anemia. O doente pode ainda apresentar a chamada bartonelose verrucosa. Esta se assemelha a tumores de pele, à leishmaniose tegumentar americana ou a algumas formas de hanseníase (lepra). O diagnóstico é firmado laboratorialmente quando são encontradas uma ou mais B. bacilliformis parasitando de 1% a 100% dos glóbulos vermelhos do sangue. No Peru, segundo Salvador Quispe, entre 1% e 17% dos pacientes morrem, dependendo do grau de pobreza local. O efeito das políticas tradicionais de desenvolvimento sobre as epidemias é observado há mais de cem anos na Amazônia sul-ocidental. A região -- noroeste da Bolívia, leste do Peru, Acre, Rondônia e sudoeste do Amazonas - ainda é considerada "fim-de-mundo" pelos países que a formam. No fim do século XIX, a valorização da borracha levou ao sudoeste amazônico legiões de nordestinos, dando início ao extrativismo seringalista. No início do século XX, foram retomadas obras da ferrovia Madeira-Mamoré, cuja construção havia sido abortada por ingleses e americanos. Essas duas empreitadas envolveram migrações maciças e alterações ambientais que resultaram, segundo o infectologista Erney Camargo, nas duas primeiras grandes epidemias de malária na Amazônia. Em 1910, Oswaldo Cruz relatava que o saneamento da região, considerada então "a mais doentia do mundo", era inviável, pois sairia duas vezes mais caro que a construção da própria ferrovia. Para a construção da "Ferrovia do Diabo" foram trazidos mais de 20 mil trabalhadores de diversas partes do mundo e mais de 6 mil deles sucumbiram à malária e outras doenças tropicais. Essa história deu origem à lenda de que cada dormente que sustentava os trilhos correspondia a uma vida perdida. Hoje, a Amazônia sul-ocidental está sujeita a alterações socioambientais sem precedentes: três novos eixos de rodovias a serem asfaltadas vão se somar a três usinas hidrelétricas (propiciando 4 mil km de hidrovias) e à expansão da agropecuária extensiva - um futuro pólo de produção e transporte de matérias-primas -, transformando uma região historicamente isolada em um corredor que ligará o centro-sul brasileiro ao oceano Pacífico. Mais de 20 milhões de pessoas, que vivem num raio de 1.000 km do Acre, devem ser afetadas pelas mudanças ambientais e migrações causadas por esses megaprojetos. A bartonelose também mudou de comportamento na última década, segundo informe recente de Salvador Quispe, autoridade sanitária peruana. No Equador tem-se encontrado casos procedentes da zona costeira, a oeste dos Andes e a apenas 150 metros acima do nível do mar. No Peru, há evidências laboratoriais de comunidades nativas da floresta amazônica infectadas a leste dos Andes, também a apenas 120 metros de altitude. A figura acima mostra como, desde 1995, a distribuição da bartonelose mudou, ampliando-se da Cordilheira dos Andes para altitudes menores. A Amazônia sul-ocidental brasileira reúne muitas das condições necessárias para que a bartonelose passe a engrossar a lista das enfermidades endêmicas na região, incluindo o mosquito vetor. Esses insetos são os mesmos que transmitem de 26 mil a 38 mil casos de leishmaniose tegumentar por ano. Os mosquitos podem mudar de hábitat e, provavelmente, passar a transmitir mais de um microrganismo - e mais de uma doença. Já estamos observando mudanças ambientais e fluxos migratórios crescentes na região, e os profissionais de saúde do Brasil não estão treinados para fazer frente à bartonelose. Para evitar e combater as doenças, principalmente aquelas intensificadas pela degradação do ambiente e pelas migrações associadas, seria preciso usar as ferramentas mais modernas disponíveis, como a modelagem de sistemas complexos e o desenvolvimento de sistemas de alerta precoce. (*) Sanitaristas e pesquisadores do Observatório da Amazônia Sul-Ocidental em Saúde Coletiva e Ambiente, Universidade Federal do Acre. |
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