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14 de março de 2005 |
O jogo das reinvenções
Sophia Beal
Mia Couto é um dos mais importantes representantes da Literatura Moçambicana e Africana. A sua imaginação e a sua habilidade de captar os ecos de uma cultura riquíssima e complexa, fazem dele um escritor invulgar que contribui para o alargamento e desenvolvimento da Língua Portuguesa. Sophia Beal, uma jovem Bolseira, a residir neste momento em Maputo, Moçambique, entrevistou-o para a Storm.
Sophia Beal: Você trabalha como biólogo e como escritor. Como organiza seu tempo para fazer as duas coisas? Mia Couto: Se calhar não são duas coisas; se calhar é uma coisa só. Assim, na maneira que eu vejo, acho que na minha vida há momentos que eu estou escritor. Estou a usar o verbo "estar" e não o verbo "ser" e faço isso de propósito. Os momentos que eu "estou" escritor são os momentos na minha vida em que tenho uma relação com o mundo, com os outros, com as coisas, com os seres, que é uma relação em que me permite ser criativo, me permite estar num estado de infância e em que estou olhando o mundo como alguém que ainda está se surprendendo com ele. Esses momentos eu tenho quando estou biólogo, também. A biologia, para mim, não é uma profissão, é uma espécie de uma janela para olhar o mundo. A maior parte das vezes permite o sentimento de irrealidade que, se calhar, uma outra profissão não me permitiria . A biologia também permite que eu visite o interior de Moçambique, trabalhe com pessoas e recolha histórias. Quando estou nas zonas rurais principalmente, para mim, não é um trabalho. É uma espécie de uma ponte para eu estar desse outro lado em que eu sou escritor. SB: Mesmo que a biologia seja, para você, uma janela e não um trabalho, influencia muito sua obra escrita? MC: Imagino que sim. Quando eu leio o que eu escrevi- é raro, quase nunca leio as minhas obras depois de publicadas - quando releio as coisas que eu fiz, eu encontro alí coisas que eu descobri através da biologia. Particularmente aquilo que é a percepção de outras linguagens, a forma como eu posso estar próximo de uma árvore ou de um animal. Consigo isso através daquilo que a biologia me deu, que é uma maneira de olhar o mundo com outros entendimentos. Quer dizer, estou disponível. Isto é muito pouco científico no fundo. É muito pouco rigoroso no sentido da ciência biológica, mas a biologia permitiu mostrar que estas coisas que são seres vivos são construções que estão ainda em movimento, que estão inacabados; são uma espécie de pequenos brinquedos. Isso aparece nos meus escritos. Eu acho. SB: Em "Uma nação sem Mitos?", lê-se na edição do dia 17 de Setembro de 2004 do jornal Savana. "A história de uma nação assemelha-se à épica literária: há que produzir uma narrativa sedutora que nos faça ter orgulho numa imagem, numa identidade que, sendo inventada e produto da História, nos pareça da ordem da Natureza. O mito tem essa função de converter o que é processo histórico numa espécie de essência." Como você vê seu papel como autor dentro do este projecto de criar e promover os mitos moçambicanos? MC: Vejo com bastante humildade. Acho que a escrita literária tem uma função na criação daquilo que são os mitos fundadores de uma nação, o chamado sentimento nacional. Houve casos de nações que se construiram muito na base daquilo que são as intervenções literárias em casos de países em que a tradição da escrita está muito presente. E eu não imagino que esta idéia, o sentimento de ser-se português, por exemplo, fosse a mesma coisa se não houvesse Luís de Camões. Eu não sei, mas talvez no caso dos Estados Unidos não haja uma coisa tão presente como Camões que é, para uma pequena nação que tem aquela epopéia dos descobrimentos, como um dos seus grandes mitos. Não sei se autores como Walt Whitman ou Mark Twain não compriram também esse papel daquilo que foi, num certo plano, numa certa dimensão, a construção e a invenção de alguns mitos nacionais americanos. Talvez, no caso dos Estados Unidos, o cinema tenha cumprido também muito essa função que foi a criação de uma "Americanidade" nesse sentido que é a conversão de uma narrativa numa epopéia. É claro que foi reescrita; está sendo corrigida. Quando eu era mais menino, não era politicamente incorrecto matar os índios ou ter essa idéia do "cowboy" como um grande construtor da nação americana. Hoje isso está revisto a partir de alguns "landmarks", marcos do cinema como o filme "Pequeno Grande Homem", [Little Big Man] e os outros filmes que puseram em causa essa idéia de que o homem branco está se construindo e afirmando contra os índios. Hoje, essa idéia é refeita, mas é uma prova de que os mitos não são definitivos. Estão sempre em reconstrução, e em nosso caso, de Moçambique, um país que está a começar, está tudo no início. Eu creio que os escritores vão ter um papel aqui importante principalmente para fixar aquelas que são as propostas que estão nascendo. SB: Ao longo de sua carreira quem foram os autores ou quais foram os livros que mais o inspiraram? MC: Na minha carreira não diria, mas na minha vida. Por exemplo, uma coisa estranha, mas há um espanhol chamado Juan Ramón Jiménez que escreveu Platero e Eu [Platero y Yo]. Quando eu era menino, lia este livro, e tinha um fascínio por animais. Essa paixão foi uma das razões que me levou a ser biólogo. Eu queria trazer todos os animais para minha casa. O burro, Platero, que é descrito naquele livro, para mim foi o primeiro encontro:como a poesia podia converter um animal numa coisa que eu podia trazer para casa. Eu já não precisava do animal em casa, eu tinha aquele livro que me trazia uma idéia da relação entre o homem e o bicho. Isso marcou-me muito. Já não era uma coisa literária, não era só um livro bonito, mas foi uma maneira de eu ganhar o mundo. Isso é um caso. Depois, alguma poesia de brasileiros e de portugueses como Sofia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, me trouxeram a confirmação de que a poesia não era uma coisa bonita só, era uma coisa que era profundamente verdadeira e, que era bonita, porque era verdadeira. E era verdadeira, porque criava esses sentimentos da verdade, não é porque haja uma coisa verdadeira assim em abstracto. SB: Vejo ligações entre suas obras e as obras de João Guimarães Rosa em termos da aproximação à oralidade e à linguagem coloquial do povo. As narrativas dele muitas vezes têm base em acontecimentos verdadeiros e histórias orais resgatadas do sertão brasileiro. Encontra inspiração também nos acontecimentos verdadeiros ou é sua aproximação à tradição oral algo que vem somente de dentro de si? MC: Esqueci-me de falar de Guimarães Rosa, mas ele tinha, realmente, que surgir na resposta à pergunta anterior. Quando eu li pela primeira vez os contos dele (comecei pela "A Terceira Margem do Rio") foi uma fascinação; foi um momento importante na minha vida. Em relação à pergunta que estava a fazer, eu acho que não sei se existe isso de dentro e fora, essa fronteira que nós fazemos entre o acontecimento verdadeiro e o acontecimento inventado ou ficcionado. Eu acho que exactamente o segredo da inspiração é quando nós quebramos esta barreira. Quando aquilo que é a realidade (ou a verdade) passa a ser alguma coisa que é olhada como se fosse uma coisa inventada e visa-versa. Por exemplo, imagina alguma coisa que se passou concretamente: eu vi uma pessoa; eu vi um acidente; eu vi alguém chorando ou rindo. Quando isso me comove, me toca, imediatamente entro em estado de ficção, isto é, aquela pessoa, podendo ser real porque está ali e eu a vi, assisti, fui testemunha. Mas eu entro para o meu lado de escritor quando configuro aquela pessoa e aquele acontecimento numa ordem e num quadro ficcional. O segredo está exactamente nessa situação de delinear a fronteira enquanto olhamos o mundo, naquele momento que nem é dia nem é noite. Podemos andar nesse novo sistema, uma expressão que eu gosto muito é o "twilight zone", nesta zona de penumbra. Esse acho que é o segredo de olhar o mundo desta maneira, sendo escritor. SB: Muitos dos seus personagens são contadores de histórias que vivem em situações precárias, mas que conseguem ser actores na própria vida através de histórias que contam. O que o atrai neste tipo de personagem? MC: Vamos ver se eu entendi bem a pergunta. Vives aqui, em Moçambique, estás aqui há algum tempo, e acho que tu já entendeste. As pessoas estão sempre colocadas numa situação de viverem em diferentes mundos e têm que viver em diferentes mundos, têm que fazer alguma pose, alguma representação: se são do mundo rural quando estão no mundo urbano, têm que parecer urbanos. Têm que estar num território um pouco estranho, o que implica lidar com códigos que não são os seus de nascença, não são os seus mais profundos. Isto faz com que as pessoas estejam sempre recriando-se, reinventando-se. Esta situação é muito rica, porque se vive com mundos que atravessam o interior das pessoas. As almas das pessoas são atravessadas por este mundo. As pessoas estão sempre viajando de um mundo para outro. Quando casam, têm uma cerimónia num e noutro lado. Quando nascem, quando morrem é como se houvesse duas mortes, como se houvesse duas vidas. As pessoas vivem sempre nesta situação de se dividirem, distribuirem por diferentes registos, diferentes maneiras de se olharem e de olharem para os outros. Acho que isto é uma fonte de inspiração muito grande para qualquer pessoa, já não falo num escritor. Para gente que desconhece esta dupla dimensão, a conclusão pode ser pensar que aqui há uma mentira, um jogo de mentiras. E não é tão simples. Não é um jogo de mentiras, é um jogo de reinvenções. As pessoas têm que se recriar em diferentes teatros, diferentes cenários. SB: O tema de reinvenção aqui me fascina, porque a minha area é a literatura comparada, na qual o tema é central, mas num sentido puramente teórico, mas aqui não. Aqui a reinvenção tem o papel prático, também. MC: As pessoas vivem isso. Tu tens que ser duas Sophias, três Sophias no teu dia-dia, tens que ter uma maneira de ter uma espécie de fusível. De repente estás funcionando num registo que é o registo digamos europeu, por exemplo, e de repente passas para um registo mais africano, se é que isto pode chamar-se assim. SB: Estou muita inspirada com a sua capacidade de sempre pensar em novas narrativas. Poucos autores compartilham seu talento de escrever tanto. Sua inspiração para novas narrativas vem de onde? Vem à cabeça naturalmente ou de ler, de escrever ou de conversar, por exemplo? MC: De tudo, mas acho que vem do facto de manter dentro de mim uma disponibilidade de me apaixonar por coisas, me apaixonar por momentos, por livros, por pessoas, por canções. Por exemplo, uma coisa que tento passar aos meus filhos é que não se ouve música. Ouve-se música quando a música não é boa, mas quando a música é muita boa, e nos rapta a alma, o verbo "ouvir" já não é suficiente. Nós temos que viajar para aquele momento, emigrar para. Isso está se perdendo, porque hoje vejo que com esta nova geração das minhas filhas que fui acompanhando, ouve-se música para acompanhar qualquer coisa. Ouve-se música enquanto se está a fazer outra coisa, e eu acho isso estranhíssimo. Às vezes me interrogo sobre aquilo que poderia levar, por exemplo, a fumar. Eu quando fumasse, estaria só fumando. Eu estava sendo fumado pelo cigarro, digamos assim. Estamos a falar da inspiração; se estou com alguém, eu quero estar de maneira que esteja completamente naquele momento, naquela relação. E isso é, no fundo, talvez o meu segredo de poder ficar completamente possuído pelo momento, e esse momento pode ser desencadeado por uma frase, por uma pessoa, uma canção, uma mulher, qualquer coisa. SB: Quais são seus projectos literários actuais? MC: Acabei agora uma coisa chamada "A Chuva Pasmada". É um livro que começou por ser um livro infantil , mas não gosto dessa maneira de o chamar,e evoluiu para uma outra coisa. Já não é um livro para crianças, é um livro. Só que tem ilustrações. As ilustrações são muito bonitas. Estou trabalhando numa coisa de longo fôlego que é um romance, vamos chamar histórico, que estou convertendo em uma coisa anti-histórica e que tem a ver com visitas que se fazem no tempo: no tempo da escravatura. Tem a ver com pessoas que vêm dos Estados Unidos; tem uma história longa - não vou contar tudo, aqui - que me obriga a estudar documentação da época e de épocas diferentes. Faço algum jogo de esconde-esconde com esta que é a verdade histórica. SB: Dos prémios que já ganhou, tem algum, em particular, que é mais significante para si? MC: Talvez este prémio que eu ganhei, acho que não fui eu, foi o livro que ganhou, "Terra Sonâmbula". Foi tido como um dos doze melhores romances do século vinte de África. Eu não sei como se pode chegar até classificar assim um livro, desconheço os critérios, mas, de qualquer maneira, para mim foi muito gratificante sim, porque é um livro que me fez sofrer muito, foi num período sofrido, um período da guerra. Eu pensava que não era possível escrever um romance sobre a guerra enquanto a guerra durasse. Pensei que os grandes romances sobre a guerra fossem feitos depois, quando a paz já está estabelecida. Mas, aquela foi uma visitação muito intensa. Durante semanas, eu quase não consegui dormir. Era como se o livro me visitasse durante a noite, como um pesadelo quase. É um livro com desafios e relações que são atribuladas. Por isso, fiz as pazes de minha vida com aquilo que significa o livro, porque há uma carga simbólica para mim próprio. Aquele livro, para mim, é minha memória da guerra, e eu precisava de ficar em paz com ele.
Bibliografia
Couto, Mia. Cada Homem É uma Raça. Lisboa: Caminho, 1990. |
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