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La insignia
18 de junho de 2005


Ajuda fantasma


Tiago Soares
La Insignia. Brasil, junho de 2005.


Estudo da ONG ActionAid mostra como boa parte do "auxílio humanitário" dos países ricos serve, na verdade, para drenar ainda mais as riquezas do Sul do mundo.

O economista Milton Friedman é dono de um Nobel e de teorias controversas. Purista, ferrenho defensor da liberalização econômica e entusiasta de primeira hora dos supostos poderes mágicos do livre-mercado, Friedman notabilizou-se como pilar de um redivivo "laissez-faire" que, rebatizado "neoliberalismo", abriu caminho globo afora no fim do último século. A Friedman costuma-se, também, atribuir aquela que seria a cabal revelação sobre a natureza dos homens e das refeições, sintetizada na idéia segundo a qual "não existe almoço grátis".

Embora alguns defendam não ser do economista a autoria da frase, Friedman não perde o mérito de ter sido o primeiro a colocá-la em contexto. Num mundo de relações mediadas pelo mercado, a consciência moral torna-se artigo de luxo. E, às supostas bondades, acabam atrelados, sempre, objetivos algo nebulosos. Que o diga estudo recente da ONG ActionAid que, arrasador, desmascara como "fantasma" cerca de 60% da atual "ajuda" financeira disponibilizada pelos países ricos às nações pobres e em desenvolvimento.

Malabarismos contábeis

Escorado em minuciosa análise sobre quantias, condições e fluxo do que é disponibilizado como auxílio contra a pobreza, o relatório, intitulado "Real Aid" ("Auxílio Real", em português), mostra as brechas através das quais boa parte do dinheiro "cedido" aos países pobres pelas nações ricas acaba sumindo no meio do caminho. Não é incomum, por exemplo, que os países do Norte condicionem às verbas que oferecem a aquisição de produtos e serviços de suas corporações, bem como ao trabalho superfaturado de técnicos estrangeiros. Medidas que, pelo cálculo dos responsáveis pelo estudo, comeriam nada mais, nada menos, que 25% de todo o dinheiro doado. "Atualmente, é absurdamente grande o auxílio guiado por motivos comerciais ou geopolíticos, não levando em conta esforços em defesa dos direitos das populações pobres", lembram os autores do relatório, Patrick Watt e Romilly Greenhill.

Mas não páram por aí os dispositivos responsáveis pelo sumiço de um auxílio que, bilionário, teria alcançado em 2003 (ano esmiuçado no estudo) cerca de US$ 69 bi. Uma falta de foco claro, somada aos custos transacionais e administrativos das verbas de auxílio, seria responsável pelo desperdício de cerca de 21% de todo o montante. Como se isso fosse pouco, existe também o fato de cerca de 16% dessa suposta ajuda nunca ter sequer visto a luz do dia: tratar-se-ia, na verdade, do dinheiro do abatimento da dívidas de países pobres e de gastos com refugiados. Descontados todos os gargalos, apenas 39% do total oferecido para o combate à miséria chegariam, efetivamente, aos cofres dos países necessitados.

Quer dizer, chegam para logo ir embora. Essa quantia, já carcomida quando nas mãos dos países necessitados, volta de vez para o bolso dos doadores na maré de dinheiro que, a cada ano, segue do Sul rumo ao Norte. Enquanto, em 2003, a totalidade do auxílio do Norte para o Sul foi de US$ 69 bi (61% dos quais "fantasma", é bom lembrar), o capital a fazer o sentido contrário no mesmo período foi, somado o fluxo do mercado de capitais e as perdas com medidas comerciais injustas (dumping, barreiras tarifárias e não-tarifárias, etc), da exorbitante ordem de US$ 310 bi. Isso, sem levar em consideração a conta dos estragos ecológicos causados às nações pobres pela voracidade industrial e energética dos países ricos - US$ 400 bi, pelos cálculos da ActionAid. Uma matemática que, resvalando no inacreditável, acaba perigosamente próxima do cruel.

Enganando a ONU

Os dados presentes no relatório da ActionAid são especialmente importantes por jogar luz sobre atuais rumos da política de combate à pobreza capitaneada pela ONU. A agência, que, em 2000, exortou aos países ricos a doação anual de 0,7% de seu PIB num esforço global pelo desenvolvimento, ficaria bem pouco impressionada se confrontada com os reais números dessa suposta boa vontade. Livre das artimanhas contábeis, o dinheiro destinado para o auxílio contra a pobreza responderia por apenas 0,1% do PIB das nações desenvolvidas. No caso do G-7, é ainda mais grave, caindo para 0,07% do PIB de seus membros -- apenas um décimo do combinado.

É bem verdade que existe ainda entre os doadores certo receio quanto ao destino da verba que chega aos governos do Sul. Não são poucos os casos de desvio, por governantes corruptos, de dinheiro doado para o combate à pobreza. Fechar a torneira da redistribuição global de renda por conta disto, porém, faz muito mais mal do que bem. "O auxílio financeiro... não é uma 'bala mágica'", lembra o relatório. "Mas a experiência mostra que onde a ajuda é investida como parte de uma estratégia de desenvolvimento, ela é fundamental no esforço de conferir dignidade às populações carentes".

O grande desafio estaria, portanto, na implementação de instrumentos (por doadores e beneficiários) que garantam a apropriada contabilidade e administração dos bilhões necessários à redução da injustiça econômica global. Alguns, nem tão complicados assim: políticas mais claras sobre os critérios para a aceitação de ajuda financeira, o fim das clásusulas de condicionalidade, a criação, sob a tutela da ONU, de fóruns internacionais que proporcionassem um diálogo democrático sobre o assunto.

Estranhamente, o barulho causado pela publicação de "Real Aid" não ultrapassou a fronteira dos países endinheirados. Na Inglaterra, o Secretário de Desenvolvimento Internacional em pessoa, Hilary Benn, de pronto veio a público rebater as acusações. "Os dados da ActionAid simplesmente não batem", afirmou. Ao que, com peculiar lógica, prosseguiu: "Eu vi um bloco escolar em Gana construído com dinheiro do abatimento da dívida. Como isso pode ser auxílio fantasma?". Declaração que, sem entrar no mérito da eterna dívida do lado pobre do mundo com o lado rico, faz pensar no velho conselho de mães zelosas mundo afora: no fim das contas, é sempre bom desconfiar da bondade de estranhos.


Fontes

ActionAid - Real Aid, an Agenda for Making Aid Work
http://www.actionaid.org.uk/wps/content/documents/real_aid.pdf

Department for International Development/UK - site oficial
http://www.dfid.gov.uk/news/files/2005/aid-effectiveness.asp



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