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La insignia
20 de agosto de 2005


Trabalho infantil

«É proibido, mas as crianças estão trabalhando»


Italo Nogueira
Rits. Brasil, agosto de 2005.


Considerado uma vitória de entidades de defesa da infância e da adolescência, o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece 16 anos como idade mínima para o trabalho - a partir dos 14 anos o jovem pode atuar como aprendiz, seguindo as regras da Lei da Aprendizagem. Diversas ações do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT) vizam eliminar o trabalho infantil. No entanto, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) 2001, o Brasil ainda possui mais de três milhões de trabalhadores com idade abaixo da permitida.

Em tese de doutorado defendida este ano no Departamento de Ciências Sociais da Pontífica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a pesquisadora Martha de Carvalho defende a elaboração de regras que permitam o trabalho infantil, embora se declare contra ele, a príncipio. De acordo com ela, a proibição pura e simples deixa vulnerável as crianças que trabalham por necessidade. Carvalho entrevistou 200 crianças entre sete e 14 anos que estudam, dos bairros de Parelheiros e Cidade Tiradentes, em São Paulo (SP).

A pesquisadora afirma que a melhor forma de elaborar estas regras é envolvendo os próprios trabalhadores - crianças e adolescentes -, através do protagonismo infanto-juvenil. Cita como experiências deste tipo o Movimiento de Adolescentes y Niños Trabajadores, Hijos de Obreros Cristianos (Manthoc), do Peru, e o Bureau International Catholique de l'Enfance (Bice), da Comissão Européia.

Nesta entrevista, a doutora explica melhor seu ponto de vista.


Rets - Após a elaboração de sua tese, a senhora acha que o trabalho infantil deve ser regularizado?

Martha de Carvalho - Na verdade, eu não cheguei a tocar na questão da legislação, mas pretendo começar a discutir este fator. Eu acho complicado dizer que a criança não deve trabalhar, enquanto nós temos quase quatro milhões de crianças trabalhando. A questão da legislação eu não sei como analisar.

Aliás, faço questão de dizer que sou contra o trabalho infantil. Sou a favor de tudo que venha a ajudar, como a [a proposta de estabelecer uma] renda mínima e o Bolsa Escola. Mas por enquanto - talvez por programas como esses serem muito novos - ainda não foi possível pôr fim ao trabalho infantil. Nós não devemos universalizar essa questão, mas sim regionalizar, e verificar onde existe este tipo de atividade, e de que forma ajudar. Mas essa busca não deve ser tutelada por nós [adultos], mas pelas crianças.

A minha idéia é o protagonismo infanto-juvenil. Não podemos ter uma atitude paternalista, e sim fazer com que as crianças sejam protagonistas. Em caso de impossibilidade de não trabalhar - porque a miséria é muito grande - como nós podemos assessorar? Pego um pouco a linha do Manthoc [Movimiento de Adolescentes y Niños Trabajadores, Hijos de Obreros Cristianos, do Peru] e do Bureau International Catholique de l'Enfance (Bice), do programa Daphne, da Comissão Européia. Eles trabalham com a seguinte idéia: "seria ótimo se as crianças não trabalhassem, mas onde existe trabalho infantil, como podemos ajudar?" Pensando concretamente: implantando uma prática educativa, contribuindo para a formação permanente, propondo ações de cultura e lazer ou mesmo de trabalho, para uma atividade menos penosa. Tudo isso a partir deles. Sentar com eles, nessas comunidades, ver quais são os desejos, os anseios, e como eles gostariam de resolver essa questão.

Rets - A questão, para a senhora, não é discutir a legislação do trabalho infantil, mas sim de que forma ajudar às crianças que estão trabalhando?

Martha de Carvalho - Por príncipio eu sou contra o trabalho infantil. Ao invés de ajudar, prefiro construir, a partir das crianças, alternativas. Por exemplo: chegamos em uma comunidade onde há crianças trabalhando. Este trabalho poderia ser menos árduo? Digamos que o problema seja a miséria absoluta e por isso não podem parar de trabalhar. Então veremos como podemos trabalhar junto com essas crianças.

Nunca estudei o lado da legislação, mas vejo que neste ponto as crianças são totalmente desamparadas. Porque de fato - e eu falo de pelo menos quatro milhões de pessoas - elas trabalham. Pelo lado da lei, não há nenhum amparo. Ela diz apenas que as crianças não podem trabalhar.

Rets - Durante a pesquisa, a senhora trabalhou com essa questão do protagonismo?

Martha de Carvalho - Também.Como é uma camada extremamente pobre, eu não queria que elas dissessem que gostavam de trabalhar, mas via de regra era o que respondiam. Já permeia o imaginário dela essa questão do trabalho. Quando perguntava sobre brincadeiras e outras atividades, eles respondiam: "Isso a gente pode fazer no fim de semana". Era uma resposta que eu, pessoalmente, não gostava. Perguntava se o trabalho não atrapalhava a lição, a escola. Eles respondiam: "Ah, mas se não dá para fazer a lição, não tem importância porque a professora sabe que a gente trabalha, então ela não briga". Eles sempre tinham uma resposta que de fato não era o que eu gostaria de ouvir, mas o universo do trabalho já era algo muito próximo.

Em geral, esses trabalhos não ajudam no futuro, além de serem muito duros. São trabalhos pesados, como carregar sacos.

Rets - Como era o desempenho escolar das crianças entrevistadas?

Martha de Carvalho - Eu venho estudando o trabalho infantil há bastante tempo. Antes, quando havia repetência, existia um elemento que era mais fácil de ser analisado. Geralmente [as crianças que trabalhavam] eram reprovadas de duas a quatro vezes na mesma série. Agora não existe a repetência. Mas muitos estavam na quinta série e mal sabiam escrever. Muitos dos meninos querem ser jogadores de futebol e as meninas, modelo e atriz. As outras profissões, em geral, precisam de curso superior. Cursos estes que eles dificilmente conseguirão fazer.

Outra coisa que para mim foi muito assustadora foi o fato deles desconhecerem a existência de universidade pública, não sabiam que há faculdades não-pagas. Eles não podem pleitear uma coisa que eles não sabem nem da existência. E muitos diziam: "Tenho que trabalhar para pagar a minha faculdade".

Rets - Qual o peso do que as crianças de sua pesquisa ganham na renda da família?

Martha de Carvalho - Em geral, ele é grande. Muitos dos pesquisados ficam com metade do dinheiro, dando o resto para a família, outros dão todo para a família, e uma pequena parte fica para uso próprio. E mesmo aquele que ficavam com o dinheiro, quando eu perguntava como eles usavam, respondiam: "Para comprar caderno, livro, tênis, roupa". Ou seja, de qualquer forma compravam coisas para a sobrevivência.

Rets - Quais são os maiores problemas apontados pelas crianças?

Martha de Carvalho - Em geral elas falam que gostam de trabalhar, mas dizem que ficam muito cansadas na escola, alguns acabam faltando bastante. Reclamam bastante da incompreensão dos professores. Muitos se queixam também da violência na escola. Daria até uma outra tese discutir isso, mas não entrei na questão. A minha discussão não cobriu a parte escolar, privilegiei o protagonismo juvenil.

Rets - Que tipos de trabalhos essas crianças faziam?

Martha de Carvalho - Os mais novos carregam sacos de caminhões, outros trabalham em feiras livres. As meninas, como empregadas domésticas ou [como antendentes] em bares.

Há uma coisa que choca, mas eles nem percebem. Perguntei a uma menina como os patrões a tratavam. Ela dizia assim: "Ah, ele me chama de paraíba e baleia, mas é só brincadeira". Quer dizer, são extremamente agressivos e violentos e eles não se dão conta. Outra falava: "Eu trabalho num bar. Meu patrão não reclama, mas as pessoas que freqüentam o bar são agressivas". Outros: "Minha patroa é maravilhosa, me trata como se eu fosse um filho, me paga R$ 50 e eu posso até brincar com o filho dela".

Rets - Pelo que a senhora relata, existem várias violações de direitos.

Martha de Carvalho - Isso acontece porque, em tese, nós temos uma legislação que nos defende: "criança até 16 anos não trabalha, entre 14 e 16 só como aprendiz". Mas veja que trabalhei com São Paulo, capital. Não estou falando do rincão do país. Para conseguir 200 crianças foi facílimo. Todas entre sete e 14 anos, estudando e trabalhando.

O Manthoc tem um grupo chamado Nats, em que meninos e meninas fazem este tipo de trabalho que eu proponho. Esse grupo, assim como o Bice, é contra o trabalho infantil, mas eles dizem: "Frente à realidade imposta - que pode ser econômica, por miséira absoluta, ou cultural - como nós podemos nos posicionar". Enquanto os programas que existem hoje não dão conta, devemos descobrir como trabalhar com essas crianças que efetivamente trabalham atualmente, como podemos intervir. Esta é a minha proposta.

Rets - A senhora não teme que, com essa assistência, se esqueça que o trabalho infantil é prejudicial?

Martha de Carvalho - Essa é uma faca de dois gumes. Quando você fala assistência, não acredito que deva ser um trabalho assistencialista. É uma coisa de protagonismo. Você vai trabalhar junto dessas crianças para que elas se articulem e assumam comportamentos que permitam o exercício de seu protagonismo. Dizer o que pode e o que não pode, como deve ser... É possível começar de forma localizada, em regiões e comunidades, e depois partir para todo o país.

No Peru eles fazem isso. Vão tirando delegados regionais, depois estaduais, e então nacionais. Onde as crianças mostram o seu protagonismo falando sobre si mesmas.

Rets - O conselheiro consultivo da Fundação Abrinq Oris Oliveira escreveu um artigo para a Folha de São Paulo falando que diversas iniciativas conseguiram diminuir o número de crianças trabalhando, afirmando que é melhor investir neste tipo de ação. Qual sua opinião sobre isso?

Martha de Carvalho - Eu acho a questão do protagonismo muito mais avançada. Mas não devemos descatar outras propostas. Devemos trabalhá-las, mesmo que sejam uma forma de assistência. Mas acho que a tendência - e penso aqui também em termos de Europa -, é o protagonismo infato-juvenil. Fiz meu doutorado parte aqui no Brasil, na PUC [Pontifícia Universidade Católica], e parte na França. Em 2000 e 2001, quando estive lá, esta discussão era o que havia de mais novo em relação a criança e adolescentes.

O Bice tem projetos, não com crianças nascidas lá, mas com crianças que vieram de outros países ou em países de fora da Europa. E lá a idéia do protagonismo tem muita força. Duas idéias: protagonismo versus assistencialismo, e o fim da idéia universalizante - até 16 anos não trabalha - uma vez que a realidade não é essa. É proibido, mas as crianças estão trabalhando.

Rets - Mesmo não tendo trabalhado com a questão da legislação, como deve ser, na sua opinião, a legislação do trabalho infantil?

Martha de Carvalho - Francamente, prefiro não falar, pois não entendo. Mas acredito que devemos pensar em algo para as crianças que estão trabalhando, mas não sei o quê. Sei que tem um pessoal do Cedeca [Centro de Defesa da Criança e do Adolescente], de Fortaleza (CE), que trabalha mais com essa questão da legislação. Quero me aproximar disso.



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