Mapa del sitio Portada Redacción Colabora Enlaces Buscador Correo
La insignia
26 de maio de 2004


Hugo Gonçalves e o seu


Helena Vasconcelos
Storm. Portugal, maio de 2004.


«O Maior Espectáculo do Mundo» de Hugo Gonçalves (Ed. Oficina do Livro, Lisboa, 2004) começa como a abertura de um telejornal. A acção é rápida, brutal e condensada, dando a visão de um mundo caótico, desavergonhadamente corrupto, caricato e perverso, uma realidade que nos acompanha de manhã à noite e se tornou tão familiar como o ciclo das estações o era para os nossos antepassados.


Surpreendente - ou talvez não - para um escritor português de 27 anos que escreveu este livro em Nova Iorque, deixando-se contaminar pelo ambiente de uma América em colapso. Na sua qualidade de jornalista, H. G., 27 anos, é um observador nato mas possui a inteligência fulgurante de tudo apreciar através das lentes distorcidas da imaginação contemporânea, completamente infectada pelo universo da imagem. Para compreender a deslocação brutal do "eu" interior para a órbita de uma sociedade em tumulto e em estado de promíscua vivência à distância de um botão ao alcance de um dedo, é interessante recrear a (possível) trajectória deste inequívoco talento que vem rasgar uma tradição intimista e incontrolavelmente reprimida na Literatura Portuguesa.

Hugo Gonçalves e a sua escrita revelam um encontro surpreendente com uma tradição romanesca que já tem os seus pergaminhos e que se revitaliza, no jovem português, com maturidade e criatividade. Em 1985 Tom Wolfe concluiu o seu primeiro romance, astutamente intitulado "A Feira das Vaidades", onde contava a história de Sherman McCoy, jovem banqueiro e investidor que se vê envolvido nas áreas mais diversas do mundo nova-iorquino, fervilhante de movimento, tensão, agressividade, corrupção e duro materialismo. Wolfe, um jornalista brilhante, colaborador habitual da revista Rolling Stone, autor de alguns livros imprescindíveis para a compreensão da segunda metade do século XX, foi um dos papas do New Journalism e conferiu ao romance a energia de uma experiência directa, musculada e vertiginosa que a América emulara através da obra e da personalidade de Ernest Hemingway. A agilidade narrativa de Hugo Gonçalves e a sua capacidade para prender o leitor poderão, também, ter origem na sua actividade como jornalista ( um outro exemplo em Portugal é o de Miguel Sousa Tavares com "Equador") mas a sua destreza tem as suas raízes em autores como Bret Easton Ellis - principalmente no "American Psycho" com a sua orgia de celebração do vazio - na obra de Jay Mc Inerney e de outros representantes do Brat Pack. Mas enquanto estes autores afirmavam o seu niilismo com bases psicológicas - enraizando-as na inexperiência da juventude e na negligência dos progenitores - Hugo Gonçalves aproxima-se mais de um autor como Martin Amis, com o seu humor corrosivo e delirante visão da sórdida vida moderna - claramente impressa em "Money. A Suicide Note" (1984), a história de John Self, egocêntrico consumidor compulsivo de cultura Pop, drogas, pornografia e adorador de Baal - e de Don deLillo com o seu actualíssimo "Cosmopolis" , este sim, num registo muito mais sombrio e apocalíptico.

Em "O Maior Espectáculo do Mundo" , Hugo Gonçalves utiliza deliberadamente uma linguagem que vai buscar as suas fontes à representação visual, essencialmente cinematográfica. Na "Apresentação" desenham-se as figuras emblemáticas da história que o autor se prepara para nos contar. É o universo da geometria fractual, no qual o acto de "bater de asas de uma borboleta na China tem repercussões a milhares de quilómetros de distância e pode afectar todo um sistema". Aqui, todos os actos de toda a gente que participa no "espectáculo" a que o título, com as suas implicações circenses, se refere ironicamente, estão relacionados entre si, não de uma forma poética a que a ciência ultimamente nos habituou mas em um registo que a globalização e a rapidez de comunicação implementaram nos relacionamentos e nos actos. O coronel Lorenzano, Joseph, Aimee Ruby, o Presidente de uma República Africana e outros figurantes fazem acrobacias num mundo de esplendor de hotéis de luxo, residências faustosas, aviões privados, sexo, bebidas e drogas coabitando com a violência, o desprezo pela vida e o niilismo de uma pobreza insidiosamente infiltrada e instalada. O capítulo "Documentário" começa com a seguinte frase: "Se as pessoas não te reconhecem na rua significa que não existes" o que remete imediatamente para a noção de invisibilidade, para um reduto de sombras de que apenas poderão ser "resgatadas" pelo selo de autenticidade dos média. Entra em cena Michael, um ser virtual em rápida trajectória para o espaço das revistas "glossy" e para a televisão, com ponto de chegada no cinema. Michael manipula tudo: as doenças, os sentimentos, as emoções, o aspecto físico. O seu objectivo é estudar, analisar e aperfeiçoar o estatuto de celebridades numa selva de emboscadas em que o erotismo e o consumo de alucinogéneos rimam com "autenticidade" e "existência". Michael desenvolve os seus dotes de charlatão sob as fortíssimas luzes da fama a caminho da santidade, da certificação segura num mundo em movimentação demasiado rápida. É o seu seguro, a sua marca de "qualidade", o passaporte para uma fugaz permanência que lhe é outorgada pelo caminho das estrelas, o espaço nos ecrãs cinematográficos. Michael submete-se a uma intervenção cirúrgica - torna-se dador de órgãos - com a mesma facilidade e desfaçatez com que se fazem operações plásticas ou se amputam membros de desgraçados do terceiro e último mundo. Aliás, refugiados, artistas porno, "socialites" convergem num espaço em que "as pessoas são mais bonitas quando estão imóveis. Os sentimentos que expressam ficam congelados e inalteráveis" (pág. 69) .Neste lugar de representações paralisadas no tempo e encarceradas no instante de um clique de máquina fotográfica ou de um "paralítico" em cinema ou televisão, o que interessa é o processo de eliminação do passado - memória - e do futuro - antecipação, movimento. Lúcia, Gabriel, David, Pupo são outros tantos zombies que revolvem no tempo sem sair de nenhum lugar. Na realidade - se é que a realidade existe - estão todos mortos, continuando a evoluir no palco, cumprindo o seu número de trapézio, de argolas, de prestidigitação como animais amestrados, inconscientes de o serem.

A inclusão do guião de um filme a meio do livro é como a ficção de uma ficção, o inevitável corolário de uma época pós-pós-moderna em que a intervenção de um narrador se aproxima da função do coro das tragédias gregas que anuncia um tempo fracturado e disforme em que pragas, pestes e destruição maciça - do homem, do tempo, da polis - é a única realidade. Joseph diz que "tudo o que vive é inventado, tudo o que experimenta é planeado" (pág. 161), num momento de lucidez e intolerável clarividência. Há no seu discurso algum desejo de resgate, uma ânsia de salvação. O tempo continua a sua marcha inexorável e os anos zero (ano menos 02 no início, ano menos 01 no final) aproximam-se do final apoteótico no ano zero, dia zero, hora zero; tal como no filme de Wim Wenders que mostrava um relógio que dá as horas ao contrário num bar lisboeta, a acção converge para um grau nulo e o autor empurra-nos para esse momento de implosão.

No "Maior Espectáculo do Mundo" a ideia de divindade ficou definitivamente enterrada sob os escombros do 11 de Setembro e nas ruas de Kabul ou de Bagdade e foi entregue ao esquecimento nas valas comuns da Europa, África e Ásia. Há quatro décadas, o poeta inglês John Davies escreveu : "nós , que conhecemos todos os lugares do mundo e contemplamos os pólos, quando chegamos a casa não nos conhecemos a nós próprios e quedamo-nos no desconhecimento das nossas próprias almas". Neste livro já não existe o caminho de volta a casa e as almas há muito que não contêm a sua substância, as tais 21 gramas que o corpo perde no momento da morte.



Portada | Iberoamérica | Internacional | Derechos Humanos | Cultura | Ecología | Economía | Sociedad Ciencia y tecnología | Diálogos | Especiales | Álbum | Cartas | Directorio | Redacción | Proyecto