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La insignia
19 de junho de 2004


Crônica familiar*


Fausto Wolff
La Insignia. Brasil, junho de 2004.


Meu irmão Urbano foi o melhor ser humano que conheci. Foi também a pessoa que mais amei na vida. Era seis anos mais velho do que eu e de profissão vendedor. Trabalhava para uma multinacional e recebeu todos os prêmios que algum vendedor poderia almejar. Tinha uma mesa em sua casa modesta coberta de estátuas, medalhas e faixas. Apesar disso jamais o convidaram para vir ao Rio de Janeiro, jamais lhe deram um prêmio em espécie. Tal qual o Willy Loman de A Morte do Caixeiro Viajante, de Arthur Miller (uma das duas tragédias escritas por um americano; a outra foi Longa Jornada de um Dia para Dentro da Noite, de Eugene O'Neill) envelheceu esperando uma recompensa. Quando achava que seria promovido aparecia um garoto dos Estados Unidos -seu chefe- a quem ele ensinava tudo e que depois de alguns anos voltava à matriz. Meu irmão que sempre me apoiou em minhas aventuras teatrais e jornalísticas era um homem simples, um bom pai de família casado com uma professora. Tiveram quatro filhos. Quando adoeceu, depois de mais de vinte e cinco anos de firma, deram-lhe um pé na bunda e um relógio folheado a ouro. Isso não o tornou uma pessoa amarga. Partiu para outros empreendimentos que naturalmente fracassaram como fracassam os empreendimentos de qualquer micro-empresário honesto. Achava estranho eu ser comunista pois acreditava no sistema. Acreditava como hoje em dia acreditam, por exemplo, os motoristas de taxi que trabalham 16 horas por dia e se irritam quando vêem um menino fazendo malabarismos com laranjas no meio da rua para ganhar alguns trocados: trabalhar esses vagabundos não querem. Como se ter um emprego no Brasil fosse uma questão de querer. No Brasil quem trabalha é escravo e quem não trabalha é miserável ou corrupto. Mas meu irmão Urbano acreditava no sistema como Willy Loman, o vendedor de selas de cavalo acreditava no American Way of Life e morreu quando o filho do dono da firma que ajudou a criar o mandou embora com um relógio folheado a ouro. Meu irmão morreu de câncer aos 61 anos.

Não creio, porém, que tenha sido o câncer o maior agente provocador da sua morte. Certa vez, tentando vender seus produtos pelo interior do Rio Grande do Sul entrou com seu carrinho numa estrada secundária. Numa curva, um menino de quatro anos soltou-se das mãos dos seus pais camponeses e surgiu à frente do carro do meu irmão e morreu na hora. Os pais do menino o absolveram imediatamente e na delegacia quem mais chorava era o meu irmão. Enquanto viveu mandou dinheiro todos os meses para o casal. A morte deste menino o transformou. Tornou-se um homem calado, taciturno, triste, muito triste. Quando alguém lhe falava no assunto lágrimas brotavam espontaneamente dos seus profundos olhos azuis. Jamais se perdoou por um crime que não cometera. Vivia se perguntando "Que idade teria o menino hoje?" "O que estaria fazendo se eu não tivesse me metido por aquela maldita estrada" Para homens honestos -e existem muitos no Brasil, apesar dos nossos políticos, dos nossos banqueiros, dos nossos latifundiários, dos nossos homens de negócios- a morte é um tabu. E foi assim que vi meu irmão ir definhando cargas gigantescas de quimioterapia até tornar-se um velhinho careca de trinta e poucos quilos. Quando não havia mais esperanças sua mulher e filhos decidiram acabar com o tratamento. Sua mulher do qual ele foi o primeiro namorado, disse-me: Quero ver meu marido bonito como sempre foi no tempo que lhe resta de vida. Ele voltou a engordar e morreu bonito cercado pela família. Eu que sou um covarde que não suporta dores morais -imaginem as físicas- teria gritado, implorado, chorado e talvez até mesmo me suicidado. Ele morreu como viveu: acreditando na vida. Para ele lhe bastaram os filhos, as duas viagens que fez ao Rio de Janeiro e uma à Alemanha, a grande aventura da sua vida, como assistente técnico do time de handebol da Sociedade Ginástica de Novo Hamburgo. Antes de morrer me disse: Fui um homem feliz e além disso me realizei vivendo tudo o que você viveu. Pobre Urbano: tinha orgulho do irmão mais moço, o jornalista mais estigmatizado do Brasil. Mas isso eu não lhe contei pois ele não entenderia como um homem que lutou tanto para escrever bem, não podia trabalhar nos grandes jornais e nas grandes redes de TV.

Lembrei-me do meu irmão Urbano e do mais velho Osvino que trabalhava de dia e estudava de noite para formar-se advogado e acabou se formando com mais de quarenta anos, o único doutor da família depois de muitas gerações. Morreu de câncer aos 47 anos. Lembrei-me porque no dia 1º de novembro vai se casar minha sobrinha, Karina, filha da minha irmã caçula, a Sarinha. A mais jovem foi também a última a casar. São todos meus filhos como as minhas duas filhas. Não vou poder ir ao casamento porque não tenho dinheiro para a viagem até Lajeado, no interior do Rio Grande do Sul. Pensei muito nisso tudo ontem à noite e custei a dormir apesar das cinco ou seis doses de uísque. E chorei. Chorei por meus dois irmãos que se foram, chorei pelo que fizeram do nosso país e chorei principalmente por mim pois, como creio que já escrevi aqui, a vida do homem ignorante e eu sou um homem ignorante se resume em vaidade e autoridade. Comecei a pensar na morte e compreendi profundamente a tristeza do Urbano depois do acidente. Matar alguém -mesmo que acidentalmente- transforma o homem para sempre. O homem que mata transgride o tabu que ainda se mantém o mais forte da humanidade. Tirar a vida de um homem é tirar a vida de um deus. É sentir-se pária como Caim, é marcar na própria testa, dentro do próprio coração uma marca que dói para sempre; que nos distinge para sempre dos outros homens. Se o homem não existisse quem poderia criar algo mais maravilhoso capaz de enunciar mais pensamentos num momento que todos os computadores do mundo, capaz de escrever peças como Shakespeare, filosofias humanistas como Marx, romances como Cervantes, esculturas como Rodin, quadros como Van Gogh, poesias como Mário Quintana, sinfonias como Mozart, filmes como John Cassavetes. Esses homens que não citei ao acaso aproveitaram a vida que lhes foi concedida e a louvaram através da sua arte. Se existe algum deus além do homem, esses que citei, certamente quando chegaram diante dele puderam dizer com orgulho: Eu fiz a minha parte. E entretanto Shakespeare morreu pobre e quase nada se sabe além disso da sua vida, Cervantes quase morreu na prisão, aliás no mesmo dia em que Shakespeare embora jamais houvessem sabido da existência do outro, Marx morreu na mais extrema penúria num quartinho de um bairro pobre de Londres, Rodin morreu de frio esmolando ao governo um lugar para morar, Mozart morreu numa vala comum, Van Gogh enlouqueceu e se suicidou, Mário Quintana morreu pobre num quarto de hotel, despesas pagas por amigos. Por duas vezes essa feira senil de vaidades burguesas que é a Academia Brasileira de Letras (onde estão Sarney, Maciel e Paulo Coelho ) lhe negou o ingresso. E Quintana que pouco se importava com as glórias do mundo, queria mesmo era o jeton que os acadêmicos recebem para viver um pouco melhor. Finalmente, Cassavetes, morreu jovem e estigmatizado por Hollywood por querer fazer filmes que falavam da vida, do homem e de como é ser homem e estar no mundo. São seres como esses que dão um sentido à vida e não os reis, os generais, os presidentes, os tiranos de um modo geral. Os verdadeiros heróis -como Jesus Cristo cujo mais belo milagre foi acreditar-se filho de Deus- só são louvados depois que estão definitivamente mortos; depois que os canalhas têm certeza de que não retornarão.

E foi pensando na morte que cheguei à conclusão de que em momento algum da humanidade, a vida foi tão desvalorizada. Jamais a humanidade se apresentou como se apresenta hoje: como uma patética meretriz, cheia de lantejoulas, rindo o riso fácil dos mercadores. A maior parte da humanidade hoje em dia não vive para a vida, para o milagre que é a vida, mas vive apenas para evitar a morte. E jamais a morte foi tão vulgarizada. Jamais se matou tanto na História do Mundo. As mortes que mais sentimos, entretanto, as que nos fazem chorar estão na TV e nas telas dos cinemas e é natural que nos comovam pois as histórias são prisioneiras de um tempo de ficção: em duas horas vivemos a vida dos personagens e nos comovemos com elas. Mas mesmo essas mortes fictícias não mais nos comovem porque nelas -principalmente no cinema americano, esse moedor de carnes e de ilusões- elas são tratadas como coisas banais. Um palhaço metralha quinhentas pessoas de uma só vez e depois assopra a metralhadora e esse canalha é o herói dos nossos filhos; esse palhaço -para citar apenas um mas outros virão- é o novo governador da Califórnia. Descrente da política -que mais e mais vai se tornando empregada doméstica do poder econômico- os americanos resolveram eleger um herói de mentira, um produto de marketing, um idiota.

E, entretanto -que entretanto sangrento, meu Deus!-no Brasil a situação é mil vezes pior. De 1964 para cá permitimos que roubassem a nossa cultura, a nossa música, o nosso teatro; permitimos que roubassem as nossas estatais, as nossas riquezas, as nossas terras, a nossa identidade. Há mais sentimento de justiça no coração de um menino de cinco anos do que nos corações de todos os juizes do mundo e entretanto nós matamos nossas crianças de fome, de tortura, através do trabalho escravo, da falta de educação, higiene, saúde e até mesmo através da prostituição. Tratadas como ratos as crianças que sobrevivem e reagem, depois de cristalizadas na mendicância, na miséria e na marginalidade, quando não são assassinadas, são presas em cubículos onde são exploradas, sodomizadas, torturadas e finalmente mortas. O ministro chefe da Casa Civil da Presidência da república, sr. José Dirceu sabe disso pois declarou isso em alto e bom som. Passou, entretanto, a impressão de que não tem nada a ver com a situação; quem deve tratar desses problemas é a ONU, uma instituição a serviço dos nossos algozes, os Estados Unidos. Não estou querendo dizer com isso que a ONU (e todas as organizações que assim o entenderem) não deva investigar o que se passa nos calabouços da justiça, muito pelo contrário. É triste, porém, ver o ponto a que chegamos.

Estive em algumas guerras e ouvi o testemunho de jovens soldados que mataram outros jovens soldados,. Todos me declararam que jamais seriam os mesmos. O que mais me impressionou, entretanto, foi uma cena do filme Cidade de Deus (uma extraordinária e reveladora obra de arte como Carandiru) foi a cena em que um menino de menos de dez anos mata várias pessoas com um revólver e o faz se divertindo; como se aquelas pessoas, tal qual atores de cinema, depois de baleadas fossem se levantar e tirar a maquiagem de quetechupe. A este ponto chegou a associação do crime organizado de direita com um poder político e econômico cuja única ideologia é a ganância. Crianças pobres matam antes mesmo de intuírem o que é a morte.

A pior combinação, a mais terrível e cruel que possa existir é a do poder com a ignorância. Bush representa esta combinação. Se a classe dominante mundial não se regenerar (não falo em ONGS sem fins lucrativos) e se der conta que o mundo não pode viver sem uma filosofia humanística (estou falando do marxismo sim e da sua adaptação aos diversos contextos geográficos e sociais) estamos marchando para a barbárie e o suicídio. Desta vez não sobrará uma barata para contar a história da nossa espécie que pôs tanta destruição no ato de existir.

Lula e o PT -mas principalmente Lula por ser um filho do proletariado como eu e a maioria dos seres humanos- eram minha última esperança. Lula, embora trilhando o mesmo caminho do grande delinqüente, do campeão mundial da vaidade, Fernando Henrique Cardoso, quer que tenhamos fé. Não sou um homem religioso e sei que não se pode servir a dois senhores ao mesmo tempo. Meu negócio é acabar com os senhores.

PS: Como não sou nenhum segundo secretário do Itamaraty – talvez por isso, nem mesmo O Pasquim jamais tenha ousado fazer uma entrevista comigo – aí vai o nome da firma para a qual meu irmão trabalhava: 3M. Nunca soube que houvesse construído uma pracinha para cachorros no Brasil.


(*) Crônica Familiar. Belo e comovente filme de Valério Zurlini que no Brasil passou com o título de Dois Destinos.

Copacabana, Rio de Janeiro



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