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17 de junho de 2004 |
Márcia Pimentel (*)
Meu filho adorava o Hulk, mas eu ainda tinha bem marcado na minha memória o filme O Médico e o monstro. Que angústia me provocava aquela experiência que o tal do Dr. Jekill fazia com o seu próprio corpo, apesar da sensação retrô que aquelas imagens produziam em mim. Comecei a perceber algum prenúncio de choque com o tempo, quando o pimpolho não me deu mais trégua enquanto não comprei aquele boneco horroroso, que sempre me trazia à tona a imagem do obscuro Mister Hyde. Até então, para mim, monstro do bem só a Fera da Bela, mas como para ele o verdão era um herói e tanto, me esforcei para aprender as novas lições de estética e de crença moral.
Quem está beirando, ou ultrapassou, os 50 anos também deve se lembrar do Dr. Moreau, aquele cientista sombrio e do mal que fazia experiências genéticas com os animais. Produzia seres híbridos numa ilha esconderijo. Quando o Dr. Moreau saiu da sombra e tomou a cena das luzes, também mudou de identidade. Virou uma celebridade desde que produziu Dolly. Foi quando entendi que já não podia mais ver o tempo apenas passar, mas também tinha que refletir na maneira como ia passar nele dali pra frente. Malditas marcas de O médico e o monstro, pois até hoje, por mais que eu já tenha mudado, continuam me dando calafrios as experiências com o corpo. Vou confessar. Fiquei horripilada com as milhares de mulheres que viram ir para o ralo o sonho de ter seios que nem o da musa do videogame, Lara Croft, por causa do revertério do silicone. É, o tempo passa. O que era temível virou desejável. As experiências científicas com o corpo não produzem mais monstros. Produzem heróis e musas. Mas como será que ficaram as pretendentes a mamas perfeitas depois da vingança do silicone? Na minha época, a Bela, é verdade, não tinha mais quase nenhuma virtude d'alma, mas tinha que ter, forçosamente, uma beleza agraciada pelas mãos da natureza. Se o problema fosse só um nariz, o Dr. Ivo Pitanguy até podia dar um jeito. Se fosse muita coisa mais, já era. Só ia poder posar de Bela em outra encarnação. Minha filha acha ótimo essa história de não existir mais só a beleza do tipo 'fenômeno da natureza'. Disse que está se sentindo horrorosa, mas que já está alinhavando seu plano de transformação. A primeira coisa que reclamou foi da barriga que, aliás, ela não tem. Não entendi nada, mas quando me pediu para pagar uma academia, a ficha caiu. Como se não bastasse sua intenção de modelar o ventre em padrões físico-matemáticos, ainda maldisse as medidas não-digitais de seus seios, como também a natureza não-tecnológica deles. Mas seus planos haverão de mudar a sina de não lhe terem crescido tetas avantajadas e naturalmente formatadas em cone à prova da lei da gravidade. "Tudo bem, mas mamãe paga só a academia, tá?", disse a ela, que me chamou de pão-dura e me acusou de fazer pouco caso da felicidade dela. Foi no meio do estresse provocado por tais acusações que me lembrei, então, daquela miss com vinte e três plásticas que ganhou o primeiro lugar no concurso de beleza do Rio Grande do Sul. Decidi começar a me convencer que eu devia ter algum trauma de infância provocado por Dr. Jekill e sua sombria sociedade vitoriana. Por quê a minha recusa em ver o corpo como um objeto, fruto do planejamento, da opção e do gosto soberano da minha mente? Ou melhor, dos desejos do meu eu, em comunhão com o saber racional, científico e tecnológico, e os atualíssimos conceitos do belo? Achei que este era o caminho da luz! Iluminada, percebi como esses novos pensamentos eram bonitos. Mais que isso. Eram tão filosóficos, tão metafísicos, tão contemporâneos! Ainda não consegui entender direito essa mistura da razão com o desejo, mas só sei que comecei a sentir o gostinho de ser poderosa e ter os homens novamente a meus pés. Pensei em rejuvenescer uns 25 anos, em triplicar o tamanho das mamas, pintar os cabelos de loiros, aplicar um megahair e dar um toque oriental aos meus olhos (azuis ou verdes? fiquei em dúvida) para ficar com um ar misterioso. Já estou malhando com minha filha, marquei lipoaspiração para mim e para ela e até comprei toda a discografia do Michael Jackson. Estou me sentindo bem mais jovem! O problema é que a vingança do silicone não me sai da cabeça. (*) Jornalista e mestranda da Pós-graduação em Comunicação, Informação e Imagem da Universidade Federal Fluminense (UFF). |
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