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12 de junho de 2004 |
Fausto Wolff
Às duas horas da manhã do primeiro dia do ano de 2004 deu entrada no Hospital Rocha Faria com hematomas generalizados e lesões em duas costelas, a senhora Maria dos Santos, vinte e cinco anos, casada.,de cor parda quase branca, de profissão do lar, moradora à rua Mem de Sá, 257, fundos casa B, na Lapa.
Machadinho, antigo repórter policial de O Dia estivera festejando o ano novo no boteco Paulistinha, perto da TV Educativa até às três da manhã. Meio de porre, resolveu passar pelo Rocha Faria, hospital estranho onde segundo o famoso psiquiatra Aldir Blanc, um apontador de bicho entrara como Sandoval e saíra como Ana Maria, por pura negligência médica. Naquela noite, porém, os médicos não haviam capado ninguém. Machadinho leu na diagonal no livro de ocorrências, o caso de Maria e não se interessou. Esta era apenas umas das milhares de Marias esbolacheadas no Rio durante os festejos de fim de ano. Fazia parte da tradição cultural da cidade. Entretanto, como mais tarde confessaria ao padre José Bolchevique, “aquela notinha do livro de ocorrência ficou na minha cabeça dando porradinhas no meu inconsciente. Tanto isso é verdade que só no sonho juntei as peças. A mulher se chamava Maria, de profissão do lar, o marido que lhe dera uma surra no capricho se chamava José, crioulo, de profissão carpinteiro e moravam numa água furtada na Lapa.” O padre José Bolchevique costumava pregar a castidade nos prostíbulos do centro e arredores mas depois da terceira cana não resistia à tentação da carne e acabava na cama com alguma meretriz. Já tinha, portanto, os seus próprios pecados com os quais se preocupar. Disse ao repórter: - Esta eu não sirvo de testemunha. – Mandou pra dentro mais uma daquela que matou o guarda. – Comer puta já é pecado grave, imagine ficar espalhando a história que você está tentando me contar. – E voltou para a Igreja onde fora dispensado de rezar missa mas funcionava como coroinha e recebedor de óbulos. Quase às oito da manhã Machadinho acordou em seu apartamento de sala e quarto na Vila da Penha e disse para a mulher, professora primária: - Luzinete, me arranja o do taxi que vou fazer a reportagem da minha vida. - Que besteira é esta, Machadinho? Ainda não curou o porre? - Se as coisas aconteceram como no meu sonho vou ganhar o Prêmio Esso. Sou até capaz de ganhar o Prêmio Polícia. – Queria referir-se ao Pulitzer, o maior prêmio jornalístico dos Estados Unidos que, porém, só é concedido a gringo nato. – O Nobel de literatura. E a Academia Brasileira de Letras não estão fora de cogitação. Se bobearem, levo aquele que o Kissinger ganhou, o da paz. – Limpou a bolsa da mulher e se mandou. Quando chegou ao posto policial do Rocha Faria encontrou o detetive Perpétuo jogando porrinha com um enfermeiro conhecido como Fera Delicada porque nas horas vagas entubava. Fera era bom de briga mas na profissão tinha mão leve. Verdadeira dama. Estava com quase sessenta anos e sabia muito mais de medicina que muito médico veterano. Machadinho explicou ao policial o que queria e ele: - Machadinho, você não é mais aquele. A mulher levou uma surra do marido e até já teve alta. Casinho que não chama atenção nem de foca da PUC. Fera Delicada – mão fechada onde escondia os palitinhos – levantou o dedo mindinho manicurado e disse: - Se é aquela mulata boa que deu entrada ontem de madrugada com equimoses generalizadas, pode ser notícia mas vai te custar dez paus. - Se valer a pena te pago no fim do mês, Fala. - Pois dá-se que eu moro no Bairro de Fátima e às cinco horas da manhã do dia 25 de dezembro, semana passada, a parteira Martinha bateu na minha porta e disse: - Doutor Fera, minha vizinha Maria, está com um problema de parto que não consigo resolver. Nos mandamos para Mem de Sá onde encontrei a Maria quase morrendo de dor. Examinei a mulher e cheguei à conclusão de que ela não tinha nada. Cardecista que sou, vi a mão do diabo na história. Num canto do galinheiro, debaixo duma goiabeira estava um pastor da Igreja Universal que viera cobrar o dízimo. Expulsei o infiel a cascudos e logo as dores pararam e a criança nasceu. Um menino lindo. - E daí, Fera? Essa notícia não vale nada – disse o detetive Perpétuo ainda de mão fechada. Criança nascendo no dia de Natal e pastor vigarista tem a dar com os pés. - E daí que apressado come cru – gritou o Fera. – Mal o menino bebeu do leite da mãe, ficou de pé na lapinha improvisada e disse com voz de homem maduro: - Desta vez não vou dar colher de chá para tirano nenhum. – Voltou a mamar nos seios de Maria e adormeceu. - Mas ele falou isso mesmo, Fera? – quis saber o Machadinho, nervosaço. – Todo mundo ouviu? - Olha, se todo mundo ouviu eu não sei, porque na hora entraram os Trigêmeos Vocalistas. - Esse trio já acabou há muito – exclamou o Machadinho. - São três irmãos ali da Glória que cantavam roque e usaram o mesmo nome do trio de samba. Estão velhinhos mas cantam até hoje. São tios da Maria e trouxeram os presentes: um frasco de leite de rosa, um rum carta D’Oro e uma cerveja italiana, birra. Senti um arrepio no corpo e me arranquei. Desde aquele dia parei com o vício e já vou informando pra vocês, o primeiro filhodaputa que me chamar de fera vai ver o que é delicadeza. Meu nome é Daniel Tulipa. Aliás, doutor Daniel Tulipa. Três paus, ô Perpétuo. - Deu quatro disse o detetive mostrando um palito. - Acontece que deu três – disse o dr. Daniel abrindo a mão com os dois palitos. – E virando-se para Machadinho. – Então, gostou da notícia? - Olha, dr. Daniel, por enquanto só tenho a sua palavra. Vou investigar. Se for verdade vais ganhar muito mais do que dez paus. Onde está o agressor? - Está em cana no distrito da Lavradio – disse Perpétuo. Na delegacia deixaram o Machadinho falar num reservado – lugar dos corretivos – com o carpinteiro José dos Santos, um mulato escuro, bonito, todos os dentes na boca, musculoso e sem antecedentes criminais. O homem de mais de dois metros de altura e 100 quilos de peso chorava de fazer gosto. - Eu sou um patife doutor. Sou um covarde, como pude acreditar no República e machucar minha Mariazinha, a flor mais linda da Lapa? - República? Você quer dizer republicano? - Não, republicano sou eu, aliás era por causa do meu pai mas o Partido Republicano acabou. Estou falando do pastor República. Quando fui dar as boas novas para ele, insinuou que eu era corno. Logo eu que casei com uma santa, corno! Devia ter dado uma surra naquele urubu mas as palavras não me saíam da cachola. Era o diabo do pastor berrando dentro da minha cabeça “corno”, “corno”. “corno”. Quando vi o menino se fez um escuro dentro de mim, na minha frente, do meu lado e chapuletei minha Mariazinha. Devia ter ouvido o Pombão. - Que Pombão? – perguntou o Machadinho. - O senhor nunca ouviu falar do Sandoval Gabriel? - Que Sandoval Gabriel? - Um que levaram para o Rocha Faria Era para retirar o apêndice e retiraram os documentos dele com bolas e tudo. Até começaram a chamar ele de Ana Maria. - E o que é que tem o Ana Maria? - Se senhor chamar ele assim está arriscado a levar umas porradas, pois ele mesmo despirocado é macho pacas. Minha Maria já tinha ficado grávida uma porção de vezes mas era gravidez histérica, pelo menos isso disseram os médicos. Pois o Pombão, deram esse apelido para ele porque depois que foi capado começou a engordar e andar como um pombo gigante. Além disso o nome de verdade dele é Sandoval Gabriel Espírito Santo da Silva. Mas, como eu estava dizendo, o Pombão encontrou comigo no Capela depois do trabalho e me disse que Maria ia ter um filho que viria ao mundo para acabar com a tirania dos ricos mas que eu não me preocupasse porque esta era a vontade de Deus. Ora, eu sempre confiei na Maria, muito amiga do Pombão mas dele, sem documentos, é que eu desconfiaria ainda menos. - E daí? – quis saber o Machadinho já pensando no aumento que receberia no jornal e no Prêmio Esso. - Há alguns meses Maria me disse que teria um filho no dia de Natal. “Como é que você sabe?”, perguntei. E ela: “O Pombão me disse.- Também me falou que é um presente de Deus”. Ela fez uma pausa e disse muito séria: “O nome dele vai ser Jesus Nazareno de Belém dos Santos” Eu concordei. Fiquei até feliz. Quando o doutor Fera fez o parto, não é que me nasce um menino louro, de olhos azuis, a cara daquele ator sueco que fez o papel de Jesus Cristo no cinema? - Max von Sidow? - Este mesmo. Mas eu estava preparado para isso. A Maria, embora socialista por causa de um primo que mataram durante o golpe militar, só acredita em Jesus. Para ela não tem santo nenhum, é só Jesus. E ela cismou que Jesus tinha a cara do artista. Andou até procurando um curso de sueco por correspondência para se corresponder com ele. Escreveu várias cartas em português para Hollywood mas nunca recebeu resposta. Machadinho não queria perder a reportagem. Bateu no ombro de José e disse: - Meu bom José. Isso é muito comum. Tem mulher que sonha com morango e a criança nasce com uma manchinha parecendo um morango. A Maria pensava no Von Sidow, mas como Jesus, sem maldade. O menino nasceu com a cara dele. É claro que o guri é o Cristo que voltou como prometeu que voltaria. Machadinho estava repassando a fita no gravador para ver se não havia perdido nada quando o cabo Piranhão bateu na porta: - O delegado mandou dizer que dona Maria retirou a queixa. O prisioneiro já pode ir embora. Na frente da delegacia havia uma multidão que se espalhava pelas ruas Mem de Sá, Riachuelo, pela Lapa inteira. Machadinho e José pegaram a avenida Chile e foram caminhando até o Bar Luiz na rua da Carioca onde Machadinho tinha conta. Bebiam dois chopes quando Machadinho perguntou ao mulatão: - Quer dizer que você é republicano, a Maria Socialista e o menino o que será? - Comunista – disse José. – Isso o Pombão já havia me dito e a Maria confirmou. - Machadinho cantou mentalmente a famosa canção do 5º Regimento da guerra civil espanhola “San José Republicano y la Virgen Socialista com su niño Jesus Cristo del Partido Comunista.” - PPS ou PCdoB? - Nem um nem outro – disse José.- Partido Cristão Comunista. Que furaço de reportagem, pensava Machadinho. Beberam mais dois chopes e tomaram um taxi até a redação do O Dia que era na rua do Riachuelo. Quando chegaram Machadinho levou um esporro do Miranda, velho secretário: - Que repórter de polícia, você é Machadinho? Jesus nasceu na Lapa no dia do Natal e você não sabe de nada? Rapidamente, Machadinho explicou a situação para Miranda que, excelente jornalista, compreendeu o trunfo que tinha na mão. Mandou fotografar o José e Machadinho ganhou um vale para alugar uma limusine e cinco leões de chácara. À esta altura, graças às informações do Machadinho, havia mais de dez repórteres no caso entrevistando todos os personagens. Os leões de chácara abriram caminho entre quase um milhão de pessoas que tomaram conta de todo o espaço da Lapa. Colocaram Maria e Jesus na Limusine e rumaram para o Hotel Glória, onde O Dia já havia mandado reservar a suíte presidencial para um casal de diplomatas da Costa do Marfim e seu filhinho. Machadinho notou a beleza e a candura de Maria e notou também que o bebê sorridente, grande para os poucos dias de idade, não era tão louro quanto o pai dissera. Lembrava o Max von Sidow, é verdade, mas os cabelos estavam mais encaracolados. - Engraçado – comentou José com Machadinho. – Quando nasceu tinha os cabelos quase brancos e os olhos dum azul como só se vê no mar em dia de sol. Os fotógrafos tiraram mais de mil fotos e no dia seguinte enquanto outros jornais falavam em rumores em notas de uma coluna, O Dia vinha com a manchete Jesus Nasceu na Lapa. Tiraram mais de dez edições e venderam quase dois milhões de exemplares. Jesus, porém, não abrira a boca. Nos dias que se seguiram continuaram as suites “Eu recebi a mensagem num sonho” disse Pombão. “ABI cria Prêmio Especial de Jornalismo para Machadinho”. “Maria se declara socialista”. “Daniel Tolipa diz que a expulsão do pastor foi fundamental para o nascimento de Jesus”. No quinto dia Pombão apareceu na redação do O Dia e informou a Machadinho que Jesus queria dar uma entrevista coletiva e mandara chamar o monge Jonas do Mosteiro São Bento, um dos poucos especialistas em aramaico. Duas horas da tarde do dia 6 de janeiro de 2004. O salão de conferências do Hotel Gloria está apinhado de jornalistas, correspondentes de todas as partes do mundo. Machadinho sobe no palco e diz o que Maria lhe informara: - Senhoras e Senhores, o menino Jesus não responderá pergunta alguma. Dará uma declaração em aramaico que será traduzida pelo monge Jonas do Mosteiro de São Bento. O menino Jesus, agora com pele mais morena, sai do colo da mãe que está sentada à frente de uma grande mesa. De pé sobre a mesa, o menino fala com voz grave e suave, dispensando o microfone que Machadinho colocara a sua frente. O silêncio era gritante. Um alfinete que caísse no chão soaria como um tiro: - Senhoras e senhores - disse Jesus em aramaico - Vim para vingar o que fizeram comigo há quase dois séculos. Vim para vingar o que fazem com os pobres, os desamparados, os fracos. – Pacientemente esperava que o velho monge traduzisse suas palavras. – Vim ao Brasil porque aqui há a maior desigualdade social do mundo; porque aqui os que se diziam trabalhadores mostram-se mercadores. Vim para lhes dizer que ainda podem se arrepender. Vim para informar que o inferno existe e é para sempre. Arderão nas brasas do inferno os corruptos e os corruptores, os tiranos, os déspotas, os religiosos hipócritas que roubam dos pobres, todas as igrejas mercenárias, os latifundiários, os industriais e banqueiros, os fabricantes de armas, aqueles que negam teto, terra, cultura, educação, transporte, saúde, alimentação, conforto e carinho aos meus filhos. Ái dos torturadores, ái dos seus mandantes, ái dos governadores, ái dos donos das pompas do mundo. Mandei-lhes um dos meus mais queridos discípulos, Karl Marx mas fizeram mau uso dos seus ensinamentos. Tremei capitalistas, pois as fossas ardentes do inferno esperam por vocês. Ái do anti-Cristo cuja foto está estampada em todos os jornais. Um repórter americano gritou: - Sadam Hussein.? - Não – continuou o menino Jesus em Aramaico. - Não o prisioneiro. Este é apenas um canalha, mas o seu captor. O Homem que é uma moita mas que esconde entre suas folhas todos os vermes da terra. O repórter do New York Times – enquanto Jesus esperava que o monge Jonas traduzisse suas palavras – disse que tinha uma declaração a fazer. Jesus fez um sinal positivo com a cabeça. - É óbvio que as forças do mal montaram um circo. Entretanto, temendo pela sorte deste menino inocente, o embaixador dos Estados Unidos e sua senhora oferecem-se para adotá-lo e criá-lo com todo o carinho e conforto na fé cristã. - Vade retro Satana! – disse o menino. – Não me compraste no deserto, pobre palhaço, pobre verme rastejante, como ousas tentar aqui em meio aos meus filhos? Arrependei-vos enquanto podeis, adoradores do ouro e do poder. Minha vingança começa agora e terminará no ano 2036 quando finalmente os pobres herdarão a terra já não mais como pobres mas como felizes filhos da terra. Neste momento nuvens cobriram o sol e um cheiro de carniça e excrementos invadiu o salão. Todos viram o falso correspondente do New York Times sair voando como um urubu de mil cabeças. Quando acabou o alvoroço os presentes notaram que Maria, José e seu filho não estavam mais no palco. Haviam simplesmente evaporado. No dia seguinte, jornais do mundo inteiro falavam da fraude, do circo, do menino anti-Cristo. O governo dos Estados Unidos oferecia um bilhão de dólares pela captura de José, Maria e Jesus. No mundo inteiro foram revistadas as casas de meninos nascidos no dia 25 de dezembro de 2003 mas Jesus não foi encontrado. No mesmo dia da entrevista coletiva, com passaportes cubanos, viajaram para Havana... |
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