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16 de janeiro de 2004 |
Luís Nassif
Foi em uma das apresentações do Festival Sete Cordas, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, que ouvi a moça. Cheguei um pouco atrasado, mas a tempo de ouvir o Jorge Simas e o Luizinho solarem.
Mas quando a moça entrou no palco e começou a cantar uma canção romântica, admito que não caí de joelhos por uma questão de compostura. Foram duas ou três canções, poderiam ter sido doze, e eu não conseguiria sair da posição catatônica em que fiquei, a ponto de ser chacoalhado por minha filha quando o show terminou. Foi minha amiga Consuelo de Paula, ela própria cantora excepcional, doce, talentosa, generosa, que me contou o nome do fenômeno -- Fabiana Cozzi.-e depois a levou em um dos saraus que costumamos fazer periodicamente em casa. A sensação de todos os convidados foi a mesma do dia em que Renato Braz, ainda pouco conhecido, antes de vencer o prêmio Visa, ainda mantendo a timidez caipira encantadora, abriu a boca para cantar "Beatriz". Todos constataram de imediato estar frente a um cantor diferenciado. Aconteceu o mesmo com Fabiana. Comentei sobre ela na lista M-Música de discussão pela Internet, e o grande compositor Sérgio Santos, de Belo Horizonte, admitiu ter tido a mesma sensação no dia em que Fabiana, depois de ter pedido composições para gravar, telefonou e cantou uma delas pelo telefone. Fabiana tem pouco mais de trinta anos, formada na PUC, às segundas-feiras mostra seu talento no "Ó do Borogodó", ali perto da Cardeal Arcoverde. E nem gravou ainda seu primeiro CD. O trabalho é independente, construído passo a passo, dentro das limitações financeiras de quem tem que se virar sozinha. A voz é aveludada, tem um vibrato especial, disponível apenas às grandes intérpretes. E Fabiana o utiliza com um discernimento que nada fica a dever a Elizeth e às grandes cantoras românticas. Sua voz tem o poder de comover como tinha a voz de Inhana, de Nana. Quando transita pelo samba, seu balanço e divisão são estupendos, não apenas a voz, mas a musicalidade capaz de decifrar a música na primeira audição, e transformá-la, fazendo a síntese, mudando o andamento, de uma maneira que não ouvia há muito tempo. Sua experiência de teatro a dotou de um domínio de palco que parece mesclar a majestade de Mônica Salmaso com o balanço de Virginia Rosa. Não cometeria o exagero de dizer que existem muitas Fabianas por aí, cantando na noite ou nos shows menores, à procura de espaço nas gravadoras ou nos circuitos maiores. E digo isso porque daqui a algum tempo, quando seu CD for lançado e seu nome mais veiculado, Fabiana será consagrada rapidamente como uma das grandes intérpretes contemporâneas. Mas que existe gente boa de dar com o pau, existe. Quem já ouviu André Mehmari? É um Yamandú Costa do piano, com o mesmo virtuosismo e uma formação musical imensamente superior, um dos maiores talentos que esse país já abrigou. E o eremita erudito da Paraíba, Vital Farias? Há algumas semanas fui a João Pessoa, consegui seu telefone, liguei, ele me pegou no hotel, me levou a uma casa simples, de três andares, perto da Bica, que ele construiu com as próprias mãos. Há alguns anos descobriu a tecnologia e montou um pequeno estúdio com três computadores. No violão começou a me mostrar sua "Epopéia Negra", uma peça sinfônica em fase final, em que misturará cantores líricos e cantadores nordestinos. E me mostrou um violão carregado de Tárrega e Barrios, de Villa e de Lauro, e me mostrou arranjos feitos em sintetizadores, com uma sofisticação, uma capacidade de mesclar o erudito e o popular nordestino, à altura do aluno que ele foi de Radamés Gnatalli. Eu olhava da varanda o bairro humilde, o entorno daquele sobrado perdido, vizinho da Bica. E na minha frente o Vital construindo sua epopéia maravilhosa, que conquistaria qualquer platéia culta do planeta. Daí concluí que há alguma coisa errada com essa indústria cultural brasileira. Não é possível tanta jóia de valor solta por aí, sem espaço para difundir sua obra. |
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