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4 de janeiro de 2004 |
Urariano Mota
O pássaro belo e arisco da alvorada veio ao meu encontro.
Linhas que me ouvem, perdão pelas trombetas. Estou feliz. Aqui neste momento abre-se a luz, um jorro invade o sombrio destas páginas. Linhas que me ouvem, não me peçam por favor sobriedade, nem muito menos, por favor, sob nenhuma hipótese, objetividade. Indivíduo que escreve estas linhas, daqui a muitos anos numa releitura, não as corte, não as mate, não as rasgue. Deixe-as, esconda-as se lhe parecerem feias, elas são o seu instantâneo. Os seus cinco minutos de amor. Os seus cinco minutos de felicidade. Luz, luz, e mais luz. É dia, é verão, o sol incandesce. Folhas e palmeiras se movem. Cinqüenta e cinco anos depois vem ao meu encontro. A princípio como um anúncio, depois como um foco, mais adiante como um jato, depois como um frevo de alvíssaras de metais altos e abrasantes, uma luz tem um nome, e melhor que um nome tem uma pessoa, a pessoa amada e rica, única, de Elma. Melhor que manga e sapoti na manhã. Melhor que o gosto e desejo de todas as frutas. Melhor que o sonho e a idéia de toda e imaginada fruta. Porque Elma é a idéia e o sonho concretizados em rosto de menina. Com o frescor da raridade de menina. A beleza que não se toca, beleza de que se tem medo de tocar porque se desvanece, a beleza que assusta, porque se tocada é mais que arisca, é feroz, porque nos morde a mão, como aquele cachorro bonito na infância, a beleza da qual nos acercamos, cautelosamente, Elma possui esta beleza. No entanto, nela esta beleza intocável e que se deseja tocar, como uma aparição tocamos com os olhos, pois farta e generosa nos é concedida. Leva-nos a uma profana comunhão. É uma comunhão em que somos, num só corpo, hóstia e crente. Ela está na hóstia, nós estamos na hóstia, ela é fiel, nós somos e estamos fiéis. Ao seu mistério somos erguidos. Deus está conosco, Deus está nela e com ela, Deus está em mim e comigo também. Alma, corpo e espírito em carnalíssima trindade. Alma e espírito que não se envergonham nem rechaçam o que é corpo. Corpo tão confortável que nele cabem e se realizam a alma e o espírito. Corpo corpo. Corpo que mija, defeca, chora, ri, canta e santa. O primeiro beijo no escuro. Na ruazinha de canteiro de obras, de um edifício em construção, dos rádios vem a ave-maria. Minha Elma pecado, finalmente eu cravo. Foste e agora ouso dizer o que nem em pensamento eu ousava, foste a boceta que busquei na santíssima e pura Virgem Maria. A boceta que me foi um tormento nas minhas orações. A boceta que me comprimia esmagando-me os olhos, quando eu dizia, "Ave Maria cheia de graça", a boceta que eu reprimia e por isso mesmo imprimia no fundo da alma, na lembrança do primeiro beijo à hora do ângelus. E agora eu digo, sem dogma, numa blasfêmia, porque sei ser uma raizante e fundamental transgressão: Boceta de Virgem Maria, boceta de Virgem Maria, boceta de Virgem Maria, dá-me a paz. Boceta de Virgem Maria, abre-te sobre mim. Boceta de Virgem Maria, abre tuas asas de liberdade sobre a minha cabeça. Boceta de Virgem Maria, faz com que te penetre a pomba do Espírito Santo. Boceta de Virgem Maria, deixa-me a doçura perene do teu cheiro de mar. Agora que eu já disse, agora que já transgredi, agora te compreendo: és a boceta na terra que eu buscava no céu. Boceta que transferi. Subvertes. Na terra, e continuas altíssima. Sobre ti eu me debruço como um monge se debruçaria sobre a sua santa, ao fim de longa solidão e clausura. Cuido de ti como se deve cuidar de tudo que é vivo e delicado. Não és jóia, pedra, preciosidade mineral, que se pisa e se pega brusco e continua jóia e preciosidade. A ti é preciso tocar com sutileza de velho e delicadeza de dedos recém-nascidos, para que não se enruguem tuas pétalas nem se embarace o teu perfume. Exiges descoberta de criança na experiência madura e refletida de velho. És minha. És a minha posse. És o meu troféu. Fui cuspido, execrado, derrotado. Isto foi nada para te obter como prêmio, que é meu e me compete, ao fim dos meus desastres. És minha por direito não escrito. Que me importa que estejas casada, que estejas cercada de filhos, que te babujem a boca em caricatura de beijos? Que te apresentes nas festas, nas ruas, como esposa de fulaninho? Medíocre, cego, burro, falto de estudo lido e sofrido, oco fulaninho, que me importa? Como podes ser, Elma, de quem não te compreende, de quem não sabe que te ergues numa prece suplicada ao céu da japaranduba? És virgem de carinhos, santa sem brilho e cintilações de metal. Não és santa de andor da igreja de Santo Antônio. Teu gênero de santidade é bem mais claro e profano. Se das santas que estão nos céus antevêem a paz, que diremos das delícias das santas na terra? És minha, ainda que de meu sentimento sequer desconfies. És minha, e és minha, Elma, com tal pudor, que em nenhum momento desta minha oração eu disse que te amo. Amo-te, no fim e por fim. (Da novela "Japaranduba, 49") |
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