Mapa del sitio | ![]() |
Portada | ![]() |
Redacción | ![]() |
Colabora | ![]() |
Enlaces | ![]() |
Buscador | ![]() |
Correo |
![]() |
![]() |
9 de abril de 2004 |
Rodrigo Gurgel (1)
I
Ele declamava Baudelaire em francês, ressaltando os mínimos segmentos dos versos, das palavras, despertando o significado adormecido nos morfemas. Poucos gestos acompanhavam a voz algo rouca, miúda, desprovida de qualquer veemência. A meia-voz, movendo delicadamente os dedos da mão direita, sem erguê-la demasiado, e olhando através de nós, fazendo leves meneios com a calva aureolada de cabelos muito brancos, ele instaurava em nosso meio o magnetismo do poema. Um, dentre os que compõem Les fleurs du mal, merecia sua preferência: À une passante (2). Ao declamá-lo, ele concedia vida à gratuidade das figuras, desenhando a mulher lânguida que enchia o espaço com o farfalhar sedutor do seu vestuário e vinha roçar nossa pele. O que nos fascinava mais - a imagem feminina ou os versos musicais? - é, ainda hoje, passados mais de vinte anos, um mistério para todos os que freqüentavam a pequena livraria. Domingos nos lançava ao abismo evocado pelo olhar - ciel livide où germe l'ouragan - e de lá nos erguia apenas para, logo depois, abandonar-nos à douceur qui fascine et le plaisir qui tue. Entretanto, o fim do soneto se aproximava; no início do último terceto, as três exclamações sucediam-se num prenúncio do fecho daquele encontro fugaz, e ele exprimia uma perturbadora tensão, parecendo querer retardar o final. Mas era impossível impedir a conclusão dilacerante - Ô toi que j'eusse aimée -, momento em que nosso amigo soçobrava, pronunciando a segunda metade desse último verso - ô toi qui le savais!- com uma dolorosa contorção da voz. Levantava-se, então, da poltrona, permitindo-se uma sucessão de arroubos, como se quisesse escapar da fatalidade do final ou de alguma triste lembrança evocada pelo poema. "É lindo! É lindo!", exclamava, tropeçando nas pilhas de livros amontoados no chão, tentando dar passos largos no pequeno cômodo que servia de cozinha, depósito e sala de estar. "Não é lindo?!", insistia, olhando para nós, extasiado por uma felicidade pueril. Como discordar do seu entusiasmo? E correspondíamos, declamando outros poemas de Baudelaire, mas todos destituídos daquela beleza. E ainda que nossas escolhas, nos primeiros minutos dos encontros, não recaíssem sobre o poeta francês, no transcorrer da tarde, em uma pausa para o chá ou quando algum poema evocasse certa figura feminina, Domingos lembraria um verso do seu À une passante, qual uma delicada observação, inocente nota ao pé da nossa tertúlia, sugerindo que Baudelaire fizera melhor. À parte essa agradável fixação, sua característica mais contagiante talvez fosse a alegria. Chegava timidamente, mas, minutos depois, já o escutávamos contar algum chiste, nunca grosseiro. Abominava o café. Atento aos detalhes, quando a roseira do jardinzinho de entrada começava a florir, detinha-se ali por algum tempo, aspirando o perfume e analisando as pétalas amarelas, manchadas de vermelho nas bordas. Solícito, amigável, irredutível apolítico, possuía rara erudição, perdido naquela cidade de província. Não poucas vezes declamávamos poemas seus - pertencera à chamada Geração de 45 - ou os que ele traduzira do francês e do alemão, como Georg Trakl, ao qual dedicamos, certa vez, as tardes de um inverno. II Assim que terminavam as festas de fim de ano, nosso grupo diminuía. Alguns saíam em férias com a família e outros se deixavam ficar em suas casas, intoxicados pelo torpor do verão. As vendas na livraria caíam e as tardes seguiam desperdiçadas em intermináveis partidas de xadrez ou, inútil passatempo, montando imensos quebra-cabeças. Domingos também se ausentava, preferindo nadar horas seguidas, em moderada cadência, num clube local. E ao reaparecer, metamorfoseado pela tez bronzeada, sempre vestindo calças e camisas de linho em tons bege, assemelhava algum magnata retornando das férias no litoral, e não o escritor que perdera grande parte da vida preso à contabilidade de um banco. Em um período incerto, contudo, suas ausências alongaram-se. Nenhum de nós poderia precisar a semana na qual notamos que esse comportamento, comum nos meses de verão, estendera-se até meados do outono. Sentíamos sua falta, cobrávamos sua presença, e ele respondia com evasivas, meios sorrisos, deixando as visitas rarearem. Certa tarde, nos fundos da livraria, enquanto eu preparava o chá, ele veio confidenciar-me, numa fala entrecortada, as consultas aos médicos e as dezenas de exames que o ocupavam nas últimas semanas. Salientou uma dificuldade para concentrar-se, sem dar um contorno definido a qualquer sintoma, e misturando às questões da saúde outros assuntos que me pareceram incompreensíveis. Interpretei aquela expressão desordenada como certa relutância em revelar sua vida íntima e, sutilmente, sem insistir nos detalhes, procurei demonstrar interesse pelos problemas. Mas, poucos meses depois, enquanto as visitas tornavam-se ainda mais esparsas e seu raciocínio começava a ser envolvido por um angustiante embotamento, compreendi: naquela tarde, eu presenciara os primeiros sinais da doença que o destruiria. A morte vagarosa dos neurônios e a inexistência de qualquer cura resumiam o diagnóstico, revelado por Domingos em algum momento da sua derrocada. Ele, entretanto, apegava-se à sombra de esperança concedida - numa atitude tão usual quanto falaz - pelos especialistas, acreditando que, se exercitasse de forma rigorosa o cérebro, poderia retardar o avanço da doença. Tentou fazê-lo, mas a tradução, antes um exercício de prazer, transformou-se em um esforço extenuante. O sentido das palavras parecia escapar-lhe e os versos não se concatenavam. Perdia-se, também, nas tentativas de leitura - nenhum autor prendia sua atenção -, e acabava passando horas a devanear, ouvindo Mozart. De repente, movido por um impulso, buscando, quem sabe, manter os últimos elos que lhe asseguravam o convívio da lucidez, retomou as visitas diárias à livraria. Carregava ao pescoço, em delicada corrente de ouro, uma pequena placa do mesmo metal, na qual constavam seu nome, telefone e endereço, pois havia o risco de esquecer-se do caminho de volta para casa. Baudelaire esvaíra-se de sua memória e, demonstrando certa aversão, ele se recusava a declamar qualquer poema. Buscava, com insistência, participar das conversas, mas seu discurso, agora despojado de sintagmas, transformara-se numa ansiosa colagem de vazios e alguns poucos conectivos. Parecendo saber o que pretendia expressar, os olhos iluminavam-se, ele gesticulava, apoiava-se à borda da poltrona, a boca ensaiava uma articulação... Mas o nome lhe fugia. Pacientes, íamos deduzindo sua fala e preenchendo-a com os termos que faltavam, enquanto ele, vendo suas idéias tomarem forma, sorria. Consciente ou não, passou a escapulir de casa, deixando a mulher e a filha em desespero. Elas saíam à sua procura pelas redondezas do bairro e, em certas tardes, acabavam encontrando-o na livraria. Acabrunhado, ele as seguia, despedindo-se de nós com um tímido aceno, para voltar na tarde seguinte ou dias depois, prosseguindo em sua inútil obstinação. Comportou-se assim até atingir o limiar da apatia, quando as palavras deixaram de existir para ele, restando-lhe apenas algumas poucas interjeições. Ainda conseguia sorrir. E, em certos momentos, demonstrava nítida tristeza. Vieram buscá-lo a última vez. Anoitecia. O movimento dos carros era intenso e as buzinas lamentavam-se em meio à lerdeza do trânsito. Três ou quatro de nós ficamos à porta da livraria, emudecidos, sentindo-nos inúteis, vendo-o partir no automóvel, cabisbaixo, como uma criança por algum motivo repreendida. III Depois desse dia, confesso ter feito a meu amigo uma única visita, impregnada do constrangimento que, certas vezes, se intromete entre nós e aqueles que amamos. - Como ele está? - perguntei à mulher cujas olheiras emolduravam a porta de entrada, tendo, ao fundo, as paredes pintadas de branco. - Você sabe... Do mesmo jeito... - ela respondeu, levando-me pelo corredor, os olhos baixos e as mãos apreensivas esfregando-se devagar. - Ele não vai nem perceber que é você quem está aqui... - e olhava-me sob o peso da lembrança de tantas outras tardes, nas quais ele me recebia, anunciando-me, com uma alegria infantil, o novo verso traduzido, sua mais recente vitória. Aguardei-o em seu escritório, circundado de livros, onde soava uma música tênue, cujos acordes, a princípio, não reconheci. Amparado pela mulher, ele veio, abúlico, despojado de qualquer expressão capaz de revelar uma nesga de raciocínio ou um mínimo sentimento. Colocado em uma cadeira de balanço, próximo da ampla janela aberta para o jardim-de-inverno, ali ficou, salvo da inércia absoluta apenas pelo sugestivo movimento das mãos, que se buscavam sem trégua. Mas fragmentos de Domingos ainda transpareciam naquele corpo. Uma certa brandura repousava nas mãos pequenas, ou nos lábios que também se mexiam instintivamente. Sim, agora reconhecia a música: o adágio do Concerto para clarinete, de Mozart, repete, contra a luz da janela que emoldura a silhueta de Domingos, os gestos tímidos de quando ele declamava Baudelaire. Vejo a consciência de meu amigo, reduzida, diminuir ainda mais a cada minuto, dissipando-se por seus poros, perdendo-se sem qualquer destino. Seu mundo se extingue, e entrevejo um halo translúcido a cobrir-lhe as mãos, a cabeça, o ventre, como se a luz que entra pela janela tentasse reter naquele corpo um tênue resíduo, uma insignificante lembrança do que Domingos fora; uma aura na qual lutam, tentando se adensar, os últimos sinais da lucidez. Meu amigo e eu, cercados de livros, temos os olhos presos à luminosidade intensa que rasga a janela. Estamos sós aqui, ele mais do que qualquer outro, acorrentado ao Nada onde sequer a poesia pode adentrar.
Notas
(1) Rodrigo Gurgel é escritor e editor. Presta serviços de consultoria editorial, além de preparar originais para editoras e particulares. Colunista de La Insignia (http://www.lainsignia.org) e de Novae (http://www.novae.inf.br). Saiba mais no site (http://www.rodrigo.gurgel.nom.br) e no blog (http://rodrigogurgel.blogspot.com/) do escritor. |
|