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La insignia
27 de julho de 2003



Urariano Mota
La Insignia, julho de 2003.


As pessoas às vezes perguntam por que a gente escreve desta maneira.

Por enquanto sinto que sigo, pois vejo o rendilhado das ondas. Por enquanto sinto que me movo, pois vejo o rastro branco que deixo no mar. Por enquanto sinto que vou, com vaguíssima noção de para onde, mas o que sei mesmo, como algo sabidamente certo, é que estou a bordo de um navio. O mar e o céu se confundem no azul, o do mar mais escuro, o do céu com uma claridade que ofende os olhos. Sinto e não digo a ninguém, sinto como uma mágoa que não se expressa, sinto e não sei dizer que Pernambuco é um céu de luz que deixei para trás. Vem comigo, e ainda não sei dizer, como um feto que sente e não sabe, como um feto que sobe e entra na corrente,como um feto que apenas flutua, vem comigo e me toma um cheiro de vida, de sal, de peixe e de sol. O chão onde piso agora parece estável, tamanha foi a minha adaptação a seu balanço. Já não vomito. E isto não é somente uma adaptação ao ir e vir das ondas. Apesar da náusea, respiro fundo, engulo o engulho, porque eu quero ser um homem, quero ser esperto, forte, experiente, quero ser isto tudo, ainda que seja esta formação de ser, ainda que seja um jovem, nestes angustiados 17 anos.

No entanto sigo, sinto, e não consigo dizer o magro mundo que sou. Perdido neste azul, em meio a tanto ruído a bordo, a tudo estranho. Odeio a tudo e me sinto expulso. Quero dizer, e ainda não sei: odeio a tudo porque tudo e todos me expulsam. Para onde vou?

Por enquanto, tudo é muito novo, desci de outro planeta, sou um estrangeiro entre meus semelhantes. Mas isto ainda eu não sei. Ondeio na atmosfera. Depois de dois dias de viagem, e apesar da furiosa agitação a bordo, piscina, roleta, jogos, música, dança, e brincadeiras, e piadas, e risos, e álcool, e álcool, e exteriorização do vazio aos gritos, agitação a que estendo os olhos compridos, como se desse gozo animal não sentisse a falta, como se esse circo canibal não me atingisse, por enquanto me afundo na leitura de O Discurso do Método e por isso me ofendem as adolescentes lindas que circulam na piscina. Parecem nuas, e saltitam, e infernizam, e pulam clamantes à incipente carne da gente. Estendem-se ao sol, tão naturais, tão naturais a este ser artificial. Mamíferos amestrados a este leitor parecem. Roberto Carlos canta, e sua música é perfeita no cenário. Canta o namoro da gente que namora na superfície e sorri e gargalha e chora entre seus iguais. Canta para os que não sentem a exclusão. Roberto Carlos canta, e agora escrevendo, só agora compreendo a raiva que me ficou desse cantorzinho piegas que canta namoros de jovens enquanto a gente não consegue passar da terceira página de O Discurso do Método. Agora compreendo. Mas àquela hora apenas vejo um manto de luz, de azul, de azul, do manto de Maria que nessa angustiosa hora me falta. Onde o carinho? Mocinhas amestradas pulam na piscina.

Parece gente mais liberta. Parece que o abismo que bordejo, fascinado, essa gente já ultrapassou. Ela parece zombar do meu encolhimento. - Vem, garoto, tudo pelo prazer! "Nem-vem-que-não-tem" .Por enquanto o adolescente encolhido atrapalha-se à mesa do restaurante do navio. Ao lhe ser perguntado o que beberia, responde: - Um champanhe. Ao que o garçom responde, abafando o riso: - O refrigerante, o guaraná, naturalmente. Estarei certo? - Sim, claro.

Por enquanto as roupas compradas de última hora, sempre elas a atormentar este adolescente, sempre elas a mostrar, a chamá-lo a seu lugar, " as pessoas se dividem pelo que aparentam, pobre tem roupa de pobre, rico tem roupa de rico", por enquanto a camisa ainda não tem o colarinho puído e sujo. Por enquanto a camisa ainda é o seu mau gosto novo, que é sempre melhor que o mau gosto velho, desbotado. Por enquanto essas roupas de tecido frágil, à beira do esgarçamento, são um distintivo de classe. Até fazem a gente pensar que parece rico. Mas como essa classe média é diferente! Aos olhos de um menino de subúrbio como essa classe média cresce terrível, rica, pletórica, plena. Ela mais é ferina quando fala mansa, compadecida da sorte da gente que lhe é diferente: - Não sei vocês lá no Recife, mas nós, do Sul, comemos o macarrão assim. E com um toque magistral, mágico quase, pega o garfo e enrola o macarrão num só lance, para levá-lo enrodilhado em porção de volume certo à boca. Nós, os "do Recife" , o que quer dizer, nós, os de subúrbios periféricos, nós, os sem educação, restamos extasiados, com a boca cheia de fios de macarrão que teimam em descer pelos cantos. Por isto fartamo-nos súbito de comer. Retiramo-nos da mesa. E passamos a comer e a beber o mar.

Por enquanto, à noite, o mar é de um negro calmo e estrelado. Lá no salão de festas a noite é de bingos. Repito-me, porque delas não participo, a bordo as noites são de bingos. E me consolo: à noite, o meu bingo é o da natureza. Cá no convés, olho as estrelas. Lindas cintilando no céu escuro. Lindas e nuas. Enquanto no salão de festas o riso estoura, enquanto os champanhes, os verdadeiros, estrondam, e jorram, no céu escuro de breu as estrelas cintilam. Então me atinge fundamente o soneto Só, de Cruz e Sousa, e então me recordo desde os 17 e para sempre:

Muito embora as estrelas do Infinito
Lá de cima me acenem carinhosas
E desça das esferas luminosas
A doce graça de um clarão bendito

Embora o mar, como um revel proscrito,
Chame por mim nas vagas ondulosas
E o vento venha em cóleras medrosas
O meu destino proclamar num grito

Neste mundo tão trágico, tamanho,
Como eu me sinto fundamente estranho
E o amor e tudo para mim avaro...

Ah! Como eu sinto compungidamente,
Por entre tanto horror indiferente,
Um frio sepulcral de desamparo!

Por vezes as pessoas nos perguntam por que escrevemos desta maneira.



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