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La insignia
10 de julho de 2003


Paulo Freire

A lógica do encantamento


Glauco Faria e Nicolau Soares
Revista Fórum, julho de 2003.
Foto: Jesus Carlos/Imagenlatina


Seis anos após sua morte, os ensinamentos de Paulo Freire, de que a educação é instrumento de conscientização e libertação, continuam influenciando pessoas em todo o mundo


Marcos Pereira Santos tem 20 anos e é um dos quatro educadores que participam do Centro de Educação e Organização Popular (Ceop) localizado na favela do Jardim São Remo, Zona Oeste de São Paulo. Em parceria com o Mova, programa de alfabetização de jovens e adultos da prefeitura de São Paulo, o projeto atende a oitenta pessoas da comunidade, que aprendem não só a juntar e rejuntar as letras do alfabeto, mas também, a partir daí, a interpretar e refletir sobre a realidade em que vivem.

O jovem Marcos ganha ajuda de custo de 400 reais para dar aulas de segunda a quinta-feira, tendo as sextas reservadas para o curso de formação pedagógica. Recrutado entre os moradores da favela, estranhou de início dar aulas para pessoas mais velhas,com as quais convivia tão de perto. "No começo, eles se perguntavam 'o que esse moleque que vejo todo dia na rua pode me ensinar?' ". Mas a desconfiança inicial não o intimidou. Ele já tinha superado um obstáculo mais difícil: alfabetizar os próprios pais. "Foi difícil no começo, ficava intimidado com eles. Depois que deu certo, ganhei muito mais segurança", conta o professor. No decorrer do curso, os educandos foram adquirindo confiança em Marcos, que em nenhum momento adotou postura professoral, esteriotipada. "As pessoas têm uma visão do professor como orador, que fala o tempo todo, mas a gente busca dialogar com os alunos. Não são só eles que aprendem, quem dá aula aprende muita coisa também", conta. Assim como Marcos, muitos educadores no Brasil trazem no seu modo de agir mais que a simples transmissão de conhecimentos. Muitas vezes sem saber, trazem a marca de um dos maiores pensadores do Brasil, que analisou e difundiu a educação como instrumento de conscientização e libertação. No último 2 de maio, foram completados seis anos da morte de Paulo Freire, que deixa um legado permanente para todos aqueles que se preocupam em ensinar e aprender.

Não se trata de nenhum exagero. Em sua morte, mais de 600 mensagens de condolências foram enviadas à família e ao instituto que leva seu nome, parte vinda de professores de aproximadamente 150 universidades de todo o mundo. Seu nome serve para batizar institutos de educação nos EUA, Canadá, Dinamarca, Suíça, e em inúmeros países da África. Recebeu, entre outros, os prêmios Rei Balduíno para o Desenvolvimento (Bélgica, 1980), Unesco e Educação para a Paz (1986) e Andrés Bello, da Organização dos Estados Americanos, como Educador do Continente (1992). Mas o que esse pernambucano, nascido no Recife, em 1921, construiu ao longo de seus 75 anos que pudesse provocar tanta admiração por onde quer que sua obra chegasse?

Passagem contada pelo professor da PUC-SP Mário Sérgio Cortella elucida um pouco tamanho prestígio. Lembra que, em março de 1986, numa aula inaugural da pós-graduação em Educação da PUC, resolveu provocar seu mestre. Perguntou se ele se considerava um "clássico", citando a célebre pérola de Millôr Fernandes, que diz que "clássico é um escritor que não se contentou em chatear apenas os contemporâneos". Sem titubear, Freire respondeu: "Sou um clássico, sim. Não porque subjetiva e presunçosamente deste modo me considere, mas, porque como clássico sou considerado por todas aquelas e todos aqueles que encontram em minha obra um instrumento para enfrentar um clássico problema: a existência de opressores e oprimidos. Por isso, enquanto esse problema persistir, quero continuar chateando, incomodando e fustigando os que, contemporâneos meus ou não, defendam a permanência das desigualdades".

E ele continua incomodando. "Paulo Freire trouxe uma nova forma de ver a educação, ao criticar o que chamava de educação bancária, na qual um professor autoritário deposita o conhecimento no aluno", explica Ceres Torres, primeira vice-presidente da secretaria regional do Rio Grande do Sul da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes). "Ele traz a possibilidade de que todos possam aprender, construindo juntos o conhecimento. Democratiza as relações entre professor e aluno e coloca o pólo do processo educativo na troca, no processo dialógico, como chama, e não no professor autoritário de antes."

O professor da Faculdade de Educação da USP Moacir Gadotti, companheiro de Freire e um dos fundadores do instituto que leva seu nome, dá outra dimensão à importância do mestre. "Paulo Freire marcou por sua vida. Não apenas pela grandeza de sua obra, mas principalmente por sua causa, que é a causa do oprimido. Ele a levantou e tornou-se um símbolo da luta do oprimido", esclarece. "A opressão em sua obra vai além daquela caracterizada e estudada por Marx no conceito de luta de classes. Pode ocorrer também em situações que vão além das condições materiais, tanto que os oprimidos também podem ser opressores em determinadas situações. Existe opressão entre gêneros e raças", sustenta. Segundo Gadotti, até a violência na escola pode ser entendida como uma reação a essa opressão. O jovem agride porque antes é vítima, quando não é atendido em um posto de saúde ou não acha na escola um ambiente acolhedor. "Por fim, acha visibilidade ao usar uma arma", acredita.

Paulo Freire dedicou toda a sua vida à educação. Deixou um legado de idéias, filosofias e inspiração que está entre os mais reconhecidos do mundo. Um dos seus filhos mais nobres, o Mova, que surgiu durante o período como secretário de Educação do município de São Paulo, de 1989 a 1991, espalhou-se por todo o país. O projeto, em certa medida, é semelhante à experiência pioneira de Freire em Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1963, onde 330 trabalhadores rurais foram alfabetizados partindo da própria realidade em que viviam. Começava a se desenvolver aí um método baseado no diálogo como recurso principal não apenas para alfabetizar, mas para despertar na pessoa a chamada consciência crítica.

Claro que os militares que tomaram o poder em 1964 não viam com nenhuma simpatia o método, tomado como subversivo. Após ser preso, Freire foi exilado no Chile, onde desenvolveu programas de educação de adultos no Instituto Chileno de Reforma Agrária, escrevendo no país aquele que viria a ser seu principal livro, Pedagogia do Oprimido, norte de toda a obra posterior. Lecionou na Universidade de Harvard, Estados Unidos, no ano de 1969, e em seguida passou a trabalhar co- mo consultor especial do Departamento de Educação do Conselho Mundial das Igrejas, em Genebra, Suíça. Ficou lá por dez anos, durantes os quais deu consultoria educacional a vários governos do Terceiro Mundo, principalmente da África.

Filho caçula do educador, Lutgardes Costa Freire passou todos os anos do exílio ao lado do pai. Cientista social, hoje é um dos coordenadores do Instituto Paulo Freire. Ele se lembra do período no Chile, durante o qual foi escrito Pedagogia do Oprimido. "Meu pai conviveu muito com camponeses e operários antes de escrever o livro, conhecia bem a realidade de que estava falando", sustenta. "Sempre foi uma pessoa muito acessível, não tinha problemas em arranjar tempo para atender um estudante, por exemplo", completa. Retornou ao Brasil em 1980 para, em suas palavras, "reaprender" o seu país. Lecionou na Universidade de Campinas (Unicamp) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em 1989, assumiu o cargo de secretário de Educação durante a gestão de Luíza Erundina, do PT, partido do qual foi membro fundador.

Mais que um método

Paulo Freire não desenvolveu uma metodologia do ensino, mas sim uma Teoria do Conhecimento, que rompia com o elitismo da educação orientada pelas classes dirigentes. Para ele, as práticas educacionais tradicionais eram "domesticadoras" e seguiam uma tradição em que o professor era alguém acima do bem e do mal, detentor da transmissão do saber e que não devia ser questionado, apenas ouvido. O aluno assumia então a condição de receptor passivo do conhecimento, deixando implícita uma hierarquização das relações.

Freire acreditava que a educação não pode ser uma via de mão única. Ela deve partir do diálogo, numa relação em que aluno e professor são iguais. Dessa forma, o conhecimento previamente adquirido pelo aluno em sua prática de vida assume importância tão grande quanto aquele trazido pelo professor e a educação se torna uma troca, uma construção conjunta de saberes. O processo de educação parte dos dados obtidos pela análise da própria realidade de quem aprende. Qualquer transmissão de conteúdos que esteja fora desse contexto é entendida como "invasão cultural", que não respeita o educando como sujeito do conhecimento, mas sim como simples receptor. A relação entre professor e aluno deixa de ser vertical, tornando- se horizontal.

Em tempos em que a "politização" era tratada como palavra chula, que contaminava e distorcia a educação, Paulo Freire mostrava um novo enfoque. Acreditava que o ato educativo sempre trazia dentro de si alguma carga ideológica. Os conservadores defendem uma pretensa neutralidade como forma de esconder a prática dominadora implícita na hierarquização entre professor e aluno. Não há educação neutra, já que a realidade prevê a ação do homem sobre ela. Se alguém apenas tem informação sobre a realidade e não tem conhecimento de como agir sobre para transformá-la, simplesmente se sujeita. Em sua opinião, o conhecimento deve ser usado não só para entender o mundo, mas também para recriá-lo.

"Ele valorizava além do saber científico elaborado o saber primeiro, o saber cotidiano", aponta Moacir Gadotti, em seu livro Um Legado de Esperança. Essa preocupação está presente em toda a sua obra, mas fica ainda mais clara em seu famoso método de alfabetização de adultos. Nessa proposta, estuda-se o dia-a-dia das pessoas e, a partir dessa vivência, desenvolvem-se os temas geradores, que irão guiar todo o processo de aprendizagem. Então, escolhem-se palavras desse tema que são trabalhadas desde seu conceito e significado até a separação de seus fonemas e de suas sílabas, criando novas palavras que tornam mais prático o processo de alfabetização. No caso de um trabalhador urbano, uma das palavras geradoras poderia ser operário, já para um trabalhador rural, latifúndio. Esse processo de divisão da palavra, chamado silabação, foi considerado ultrapassado pelo próprio Paulo Freire num momento posterior de sua obra, o que não invalida em nada a idéia de trabalhar com o universo cotidiano do aluno.

Dentro da sistematização do ensino da palavra geradora, abre-se discussão entre os educandos e a aula deixa de ter o caráter de palestra. Todos participam, trazendo seu conhecimento e discutindo seu papel na realidade. Freire até preferia não denominar esse processo de aula, utilizando o termo círculo de cultura, caracterizado principalmente pela individualidade e história de cada aluno. O professor deixa de ser o tirano do conhecimento e se torna um animador de debates, que coordena e problematiza as questões que entram em discussão.

Prática e teoria

Algo notável em Paulo Freire é a coerência entre suas idéias e sua história de vida. Pregando a necessidade da indignação frente às injustiças, não deixou de fazer sua parte, trabalhando para conscientizar e mobilizar oprimidos em todo o mundo. Acreditava na dialética e, mesmo em conversas triviais, parecia pensar dessa forma. "Certa vez, durante sua gestão na secretaria de Educação, estávamos numa reunião da equipe de manhã e, à tarde, cada diretor ia para um local representar o secretário. Ele lembrou que tinha comentado com a prefeita que, ironicamente, o secretário que tem mais poder é o que tem menos poder. Isso porque, ao dividir as responsabilidades e dar autonomia à sua equipe, ele perdia poder. Por outro lado, ganhava, pois podia estar em vários lugares ao mesmo tempo", recorda Ana Maria Saul, que trabalhou com Freire na secretaria municipal. Freire acreditava na unidade dialética entre teoria e prática, que devem interagir o tempo todo. Foi também por conta disso que foi um dos primeiros a se filiar ao Partido dos Trabalhadores. "Ele nutria admiração pela capacidade do Lula de criar alternativas na prática e achava que o intelectual orgânico tinha que transitar facilmente com o trabalhador, ser alimentado pelas suas causas", lembra Gadotti, que assinou o manifesto de fundação do PT a pedido de Freire, que se encontrava na Suíça na ocasião. Segundo essa visão, o intelectual tem que partir das necessidades, da prática do cotidiano, para a teoria e em seguida voltar para a prática, com um pensamento moldado pela realidade.

Paulo Freire teve a oportunidade de realizar todo esse ciclo. No período em que foi secretário de Educação de Luiza Erundina, pôde aplicar parte de seus ensinamentos por meio de políticas públicas que trouxeram um novo alento ao ensino da capital paulista. A professora Ana Maria Saul foi diretora de orientação técnica da Secretaria e permaneceu no cargo durante os quatro anos da gestão, mesmo depois da saída de Freire. A prioridade primeira era a valorização do magistério. "O que fizemos foi valorizar os professores com várias medidas, principalmente com a criação do estatuto do magistério que, entre outras coisas, regulamentava a jornada de trabalho dos professores em 40h semanais, mas com apenas metade na sala de aula e o restante destinado a planejamento e formação remunerados", recorda.

Na prática, Paulo Freire quebrava o autoritarismo que costuma caracterizar a relação entre o poder público e seus funcionários. Os professores eram ouvidos e moldavam o programa pedagógico de São Paulo. "Pusemos em prática um programa de formação permanente dos educadores, que tinha um diferencial, a criação dos grupos de formação, nos quais os professores discutiam sua prática na sala de aula e, nessa prática, o orientador do curso encontrava "fragmentos de teorias", nas palavras de Paulo Freire. Então eram expostos novos conceitos teóricos e, a partir daí, retornava-se para a prática, buscando reformulá-la", lembra Ana Maria Saul.

Os ciclos de progressão continuada, idéia de Freire hoje presente em vários estados do país, só surgiram no último ano, uma opção consciente da administração. "Antes, tínhamos que criar condições para depois mudar a estrutura", conta Saul. Modelo copiado em várias partes do mundo, é uma das mostras de como uma boa idéia pode ser deturpada com o passar do tempo.

O governo do Estado de São Paulo, por exemplo, enfrenta críticas pesadas pela forma com que implementou o modelo. "Aqui isso foi feito sem o merecido cuidado e se transformou em promoção automática", pontua Carlos Ramiro, presidente da Associação dos Professores do Estado de São Paulo (Apeoesp). A posição da entidade é contra a volta da repetência, mas Ramiro entende que a progressão deve ser adotada conforme a concepção original de Freire. "Não dá para trabalhar esse modelo com classes numerosas. Temos também necessidade de que haja um processo de formação continuada do professor. Pais e funcionários têm que participar das discussões e das eventuais mudanças." A professora da Universidade Federal de Santa Catarina Nilcéa Pelandré, estudiosa da obra de Freire, faz coro e acrescenta: "A escola deveria dar conta de um atendimento individualizado, com professores que pudessem efetivamente acompanhar o aluno em seus diferentes momentos de aprendizagem, de suprir condições para o desenvolvimento afetivo, psicológico, motor. Possibilitar o avanço progressivo implica promover a educação na sua integralidade, o que efetivamente o sistema educacional brasileiro não tem feito".

A despeito da problemática experiência do sistema de ensino estadual, educadores e professores concordam que a educação em ciclos ou progressão continuada é um avanço em relação ao velho sistema de repetência. Não se pode voltar atrás, mas pode se fazer muito para aprimorar esse processo. Não só aí, mas também na alfabetização de adultos e em todo o ciclo educacional. E é isso o principal da obra de Paulo Freire, mostrar e aprender sobre a realidade implica necessariamente mudá-la, saber que se pode mudá-la. Agora, ele está sendo ainda mais estudado e novas idéias surgirão a partir do que escreveu, pregou, mas principalmente da causa que defendia: o sonho da educação se tornar verdadeiramente uma ação libertadora. E a obra continua fazendo aquilo que era o mais importante para ele: trocar a lógica da lamúria pela do encantamento, impregnando cada um com o ingrediente indispensável para começar a mudar, a esperança.

"O filme foi muito legal, os alunos riram bastante!", comemora Solange dos Santos de Almeida, professora do Ceop, na favela São Remo, o mesmo onde trabalha Marcos Pereira Santos. O filme em questão é O Auto da Compadecida, de Guel Arraes. "Escolhemos esse porque boa parte dos alunos é nordestina", explica Solange. "E tem um monte de coisa pra trabalhar, fala do trabalhador na roça, de trabalho mal remunerado, de racismo. Vai dar bastante discussão amanhã!".

Aulas diferentes assim são comuns no Centro. "Cada professor constrói o seu próprio método. Eles têm toda autonomia", explica Juliana Silva dos Santos, coordenadora do Ceop. Ela está no projeto desde 2000, começou como monitora. Mas o centro existe há muito mais tempo, desde 1989. No início, funcionava numa igreja, no contexto do Mova original da prefeitura de São Paulo. Dependendo do repasse de verba pública, a entidade sofreu um baque quando, em 1992, o então prefeito Paulo Maluf acabou com o programa, acusando-o de fraudes.

O projeto foi retomado um pouco depois por alguns alunos da USP, que passaram a dar as aulas num espaço da Associação de Moradores do Jardim São Remo. "Eles só tinham uma sala e por isso colocavam todos alunos lá, mesmo os de níveis diferentes", conta Juliana. Hoje, o projeto conta com quatro salas e está novamente ligado ao Mova, reavivado pela gestão de Marta Suplicy na prefeitura. Atende a 80 alunos, divididos em quatro séries, de acordo com o nível de aprendizado. "O pessoal da prefeitura não concorda com essa divisão, mas nós achamos melhor trabalhar dessa forma. Se temos quatro salas, porque não?", defende Juliana. Essa é uma das características do Mova de Paulo Freire: não impor a forma de trabalho das instituições. O Ceop conta com quatro monitores, dois vindos da própria comunidade São Remo. "O projeto é pequeno, mas tem o coração bem grande, para quantos vierem", define Solange.



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