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29 de setembro de 2002 |
O país laboratório
Jornal da Tarde / La Insignia. Brasil, setembro de 2002.
A vida humana é experimentação permanente: determinação para descobrir, acerto e erro, paciência e obstinação. A ousadia, a disposição de correr riscos e a criatividade impelem as sociedades, permitindo-lhes testar a viabilidade das idéias e propostas que surgem para desenhar novos futuros.
A vida humana é experimentação e resistência. Nem todos aceitam provar o novo, trilhar caminhos desconhecidos, mudar deliberadamente de rumo. A rotina e o costumeiro impõem-se com facilidade, como reino do seguro e do conhecido. Temem-se as novidades, tanto quanto se é por elas arrastado. A resistência à mudança é um tema universal, ainda que compartilhada de modo muito desigual pelas sociedades. Há povos mais empreendedores e outros mais conservadores, classes mais predispostas à inovação e outras que permanecem mais agarradas ao que lhes dá estabilidade. Há os que querem mudar porque nada têm a perder e os que querem mudar porque desejam ganhar. Há os reacionários, que pensam em mudar para trás, e os fatalistas, que se conformam em ir se ajustando aos novos tempos. Não se trata somente de vantagens e interesses, mas de modos de pensar e sentir, de formas de consciência. A vida é experimentação, resistência e cálculo. Não se experimenta sem um plano, um projeto, um objetivo, nem sem teses e hipóteses. É insensato imaginar uma experimentação radicalizada e contínua, sem porto de chegada, conclusão ou descanso. Seria um salto no precipício, um experimentalismo errático, sem chance de consolidação. A experimentação crítica destinada a produzir resultados sociais é inseparável da política. Governar uma sociedade não é apenas administrá-la, mantê-la em funcionamento, ordem e equilíbrio. Governar é também desafiar o coro dos contentes, quebrar ovos, romper limites e barreiras. É, sobretudo, dirigir: sugerir novos rumos, fixar novos parâmetros, propor novos métodos e idéias. Ousar, experimentar, contestar. Nos últimos oitenta anos, o Brasil foi um laboratório a céu aberto. Experimentamos de tudo. Da Semana de Arte Moderna à construção de Brasília, do samba e da bossa-nova ao tropicalismo, da revolução empreendida por Vargas ao Plano Cruzado, do nacional-desenvolvimentismo ao Plano Real, de Juscelino a Tancredo, de Jânio a Collor, de Brasília à Transamazônica, das reformas de base ao MST, do Partido Comunista ao PT e ao PFL -- tudo foi e tem sido experimentação. Nem tudo deu ou tem dado certo, mas tudo conteve boa dose de risco e ousadia, de fantasia, sonho e até ilusão. Somos o que somos porque ousamos experimentar. Já experimentamos de tudo, menos processos agressivos de reforma social. Também nunca tivemos governos de esquerda no plano nacional. Nossa República avançou sem muitos cidadãos ativos e sem cultura cívica adequada. Crescemos economicamente, mas não ficamos mais ricos socialmente. Jamais experimentamos dividir o bolo. Por isso, quando os cidadãos são chamados a escolher o Presidente, a eleger governadores e realimentar os circuitos da representação parlamentar, é razoável que se pense no país-laboratório e se avalie se não é chegado o momento de experimentar de novo. A sociedade brasileira não parece necessitada de provar mais do mesmo. Os anos 90 não foram pródigos em realizações e melhorias, por mais que avanços tenham ocorrido. As fórmulas conhecidas parecem esgotadas, a "classe política" exaurida, as instituições defasadas. Sente-se no ar um desejo de coisas novas, ainda que não se queira saltar no precipício. Todo candidato propõe-se a ser protagonista de mudanças e reformas. Mas nem todos podem liderar efetivamente novos experimentos de governo e gestão. Mesmo que não carreguem currículos recheados de diplomas ou experiências político-administrativas dignas de registro, alguns são mais aptos a ousar do que outros. Têm um peso simbólico que os diferencia e faz com que se tornem mais capazes de mobilizar forças adormecidas ou mal aproveitadas, reunindo em torno de si apoios consistentes e entrando em sintonia com as expectativas populares. Não há porque vetar o novo, o que nunca foi experimentado. Por que temer o país-laboratório? Afinal, é experimentando que poderemos organizar um governo de novo tipo, plural, democrático, popular, habilitado em termos técnicos e ético-políticos para promover reformas sem nos forçar a seguir rumo ao precipício. (*) Professor de Teoria Política na UNESP, Campus de Araraquara. |
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