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23 de setembro de 2002 |
Lula fala para 30 mil pessoas em Juiz de Fora
Linha Aberta. Brasil, setembro de 2002.
A resposta veio das ruas. E parece trazer duas lições importantes. A primeira é que a história é mais forte que o marketing: não dá para transformar um coadjuvante em líder, especialmente quando é necessário, para isso, usurpar o espaço da liderança verdadeira. A segunda, é que o preconceito seboso que pesou nas eleições de 1989, perdeu força na definição do voto popular. O elitismo parece ter se desmoralizado pela própria incompetência das elites na condução recente do país. A alquimia desses fatores, catalisada no vale tudo da candidatura oficial, pode ter rompido a última película que faltava para liberar uma onda: aquela capaz de definir as eleições presidenciais antes do que se imagina. Há sintomas e eles não estão apenas no ar. Luiz Inácio Lula da Silva cravou 44% na preferência dos eleitores neste final de semana nas pesquisas do Datafolha. O resultado não traduz uma dinâmica superada. Ao contrário, no próprio sábado, em Minas Gerais, a força dessa onda foi reafirmada. O candidato foi recebido em clima de final de Copa do Mundo pela população de Juiz de Fora, onde fez carreata e comício para quase 30 mil pessoas. Pólo de influência da Zona da Mata mineira, conhecida pela politização de seus 500 mil habitantes, a cidade é um termômetro político nacional. Tradicionalmente antecipa o sentimento de Minas (segundo maior colégio eleitoral brasileiro) e, nesse sentido, ecoa o país. Mesmo na ditadura, a oposição sempre venceu aqui. Nas últimas três eleições, Lula sagrou-se vitorioso nas suas urnas. Mas a empolgação deste sábado parece ter superado até a mais otimista das expectativas. Juiz de Fora é atualmente um importante centro universitário e de serviços. Mas herdou a tradição de luta dos tempos em que era considerada a Manchester mineira. Centro têxtil e ferroviário dos anos 60, não por acaso, o maior dirigente sindical da época, Clodismith Riani, presidente da então poderosa Central Geral dos Trabalhadores (CGT), nasceu aqui e ainda vive na cidade. Especulação com o dólar Quando o Citation que trazia Lula do Rio de Janeiro pousou no aeroporto de Juiz de Fora, por volta das 13h de sábado, essa convergência de tradição e futuro explodiu numa das mais calorosas recepções de toda campanha. Parecia mesmo uma resposta das ruas. Uma onda em movimento. Desde cedo, cerca de 3.000 pessoas e 500 carros aguardavam a chegada do candidato, que sentiu a mudança de patamar e foi agradecer a massa embandeirada que tomava conta do aeroporto. Em entrevista ainda no saguão, Lula balançou a cabeça negativamente quando solicitado a comentar propaganda de Serra. Ou melhor, a tentativa de desqualificar um dos 164 milhões de brasileiros que não têm diploma universitário. Logo depois, sem citar o adversário, comentou o impacto que esse confronto pode causar em eventuais alianças no futuro: "Claro que uma campanha não é um desfile de modas", comparou. "Num jogo de futebol, irmão também joga contra irmão. Tem falta, botinada e gol - dos dois lados. Mas não estou sendo condescendente", alertou. "Eu entendo que uma campanha deve ter certas regras; deve ter um teor ético e contribuir para a conscientização da sociedade. Depois que termina é outra história." Ao lado do vice, senador José Alencar, Lula criticou o nervosismo cambial nos últimos dias. E questionou os motivos que levaram o governo a suspender a venda de títulos públicos indexados ao dólar - "a menos de duas semanas do pleito". A decisão teria levado empresas e bancos a buscarem proteção (hedge) direto no mercado de moedas, o que acentuou a alta das cotações. Técnicos oficiais alegam que a venda desses papéis foi suspensa porque o mercado exigia condições inviáveis: juros de 48% ao ano, mais correção cambial. O candidato do PT, de qualquer forma, orientou o presidente do partido e coordenador da campanha, deputado federal José Dirceu (SP), a contatar o presidente da República em busca de esclarecimentos. Carreata familiar "Pai, pai, é o Lula! Eu tô vendo o Lula, pai!" A emoção de Iuri, empoleirado nos ombros do ferroviário aposentado Juscelino Oliveira, traduzia a empolgação do lado de fora do aeroporto: uma festa embandeirada que se estendeu por todo o trajeto até o centro da cidade. Iuri e Juscelino vieram de Bom Jardim, a 80 km de Juiz de Fora, para receber Lula. "Hoje ele faz oito anos", diz o pai, entusiasmado com o presente que deu ao filho, rosto semi-coberto pela bandeira que agita no balé de tantas outras. Como os dois, famílias inteiras, casais de velhinhos, namorados, jovens, crianças, times de futebol, donos de botequim, cabelereiras, comerciantes, bebuns saúdam a carreata de Lula ao longo dos 12 km que separam o aeroporto do parque Halfeld, onde mais tarde aconteceria o comício para quase 30 mil pessoas. Virou programa de família no final de semana ver o Lula. Em alguns casos, um programa precedido de certa pompa e circunstância: dona Maria de Lourdes Moreira, por exemplo, mãe de dez filhos, viúva do pintor de paredes João Moreira, fez cabelo e unhas antes de dirigir-se ao aeroporto. Lá, com a autoridade de seus fios brancos, conseguiu espaço para entregar um bilhetinho ao candidato. Lula guardou e leu no microfone do comício. Detalhe: dona Maria tem 83 anos; está dispensada de votar. O bilhete dizia exatamente isso. Mas avisava: para eleger Lula, ela vai às urnas em 6 de outubro. Pela última vez em sua vida. Deus e champanhe, Lula! Autógrafos, beijos, apertos de mão, fotos.Um sorriso aqui. Um olhar cúmplice ali. Aplausos, acenos das janelas, das portas, de dentro dos carros. A carreata avança pelas ruas de Juiz de Fora e desafia quem ainda não conseguiu enxergar o mar (oposicionista) de Minas. Dele, uma onda havaiana ergueu-se neste sábado: cálculos extra-oficiais indicam que Lula tem mais de 50% dos votos no Estado. Lá está ela, feito arrastão a carregar surfistas de todas as idades na sua franja vermelha e branca. A onda da vitória. Na altura da padaria Papão, um casal de velhinhos, roupa de fim de semana, mãos dadas, espera a sua passagem para aderir. Quando enxergam Lula no alto do caminhão, acenam a bandeira timidamente. São novatos na política. Mas são justamente esses novatos que podem tornar a onda mineira irreversível. Na porta do Açougue do Avelar, um agrupamento mais barulhento faz festa ao candidato. Adiante, o anãozinho da banca, apropriadamente batizada "Fora de Série", estampa um sorriso ímpar no rosto. Dona Ivete Silva irrompe numa esquina e lança beijos com as duas mãos, como se fosse cantora de rádio de antigamente. Fica feliz da vida quando Lula retribui, mas não basta para ela. Do fundo de seus 80 anos, grita com o que tem de reserva na voz: "Deus te acompanhe, Lula! Deus te acompanhe!" Um homem ao lado troca o verbo pelo espumante e adere ao coro a seu modo: "Deus e champanhe, Lula! Deus e champanhe, Lula!". Tem sua lógica, vá lá. Dona Ivete, se é que ouve, nem liga. Está inatingível em sua felicidade. O estrago que a ofensiva de Serra pode causar no seu candidato? Ela balança a cabeça e faz um gesto de descaso com as mãos: "Deixa o Serra para lá; deixa para lá". E dá-lhe beijos, Deus e "champanhe" - Lula! Leonardo Domiciano é outro inalcançável pela dúvida. Acordou cedo. Pedalou 10 km que separam sua casa da Serrinha, onde fica o aeroporto de Juiz de Fora. E acaba de passar diante de dona Ivete, na banguela. Bandeira do PT na mão esquerda, a direita no guidão, ele ladeia o carro de Lula como um batedor do pelotão da certeza. Leonardo tem 20 anos, vem de uma família humilde. Mas tem a convicção de um homem maduro: "Eu confio no Lula. Confio nele. O Serra mente. Tá prometendo de novo aquilo que o Fernando Henrique já vendeu uma vez e não entregou". Lá vai o menino, pedalando sua convicção. Hora da primavera e da estrela Onde cabia gente, tinha. Estava assim o parque Halfeld na hora do almoço de sábado. Desde a igreja de São Sebastião, entre as ruas Santo Antonio, avenida Rio Branco e a Marechal Deodoro, tudo tomado pela onda vermelha e branca. Lula falou sem pressa. Talvez um de seus melhores comícios da campanha. "Amanhã (domingo, 21) começa a primavera", lembrou. "Vou repetir aqui uma frase que uma criança me deu há muitos anos: os poderosos podem matar uma, duas ou três rosas. Mas não conseguirão deter a chegada da primavera." Pronto: quebrou-se a barreira entre o político e o público. Na frase seguinte, Lula já rechaça indiretamente as críticas que vem sofrendo na propaganda do candidato oficial: "A nossa primavera está chegando", avisa. "E com ela o Brasil terá a chance de eleger alguém saído da sua parcela mais pobre." Em seguida, ele faz um balanço das disputas anteriores. "Possivelmente Deus considerou que éramos jovens em 89; quem sabe também em 94 e 98", cogita. "Mas desta vez parece que Deus está dizendo: chegou a nossa vez. Quando voces levantarem para votar no dia seis, eu estarei fazendo 57 anos". A multidão entende e a onda cresce, inchada de aplausos. Lula aproveitou o comício para expor sua posição sobre as mulheres, os deficientes físicos, os jovens. Foi quase uma retrospectiva programática. A soma dos desafios, segundo ele, evidencia a necessidade de se pensar o Brasil no longo prazo. E isso requer planejamento. Requer Estado indutor. "Além do mais", observou, alfinetando Fernando Henrique Cardoso, "precisamos de governantes que não falem só inglês. Mas que também viajem pelo Brasil e pratiquem a nossa língua". Sempre ao lado do vice José Alencar, Lula, antes de encerrar o discurso, criticou a política de juros do governo. Didático, explicou as razões. Ela sufoca a produção, incentiva a especulação e enrola um torniquete no consumo e no emprego: "Se você compra uma geladeira em 24 meses, acaba pagando três", exemplificou. A elitização da universidade e a falta de perspectiva para a juventude foram outros temas abordados. Em menos de uma hora, repassou décadas de bandeiras e a plataforma de um futuro governo popular. Juiz de Fora ouviu e sacramentou. Por fim, o candidato deixou no ar uma estocada contra aqueles que instigaram o preconceito em nome do debate: "Vamos dar uma oportunidade, minha gente. Vamos ver se um torneiro mecânico consegue fazer aquilo que a elite brasileira não fez até hoje: melhorar este país". O mar de Minas se agita em ondas sucessivas de aplausos e bandeiras tremulantes. Depois do comício, Lula almoçou com o governador Itamar Franco. E quando partiu para Governadores Valadares, no finzinho da tarde, Juiz de Fora ainda sacolejava no embalo da grande onda que pode contagiar todo o país. |
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