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La insignia
19 de setembro de 2002


Brasil

O enigma Lula: Fausto, Maquiavel ou Riobaldo?


__Especial__
Brasil: Eleições 2002
César Benjamin
La Insignia. Brasil, setembro de 2002.



Manifestante no RS.
Foto: Linha Aberta.

O modelo de sociedade e de economia implantado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso faliu. Disseminamos, em larga escala, insegurança e incerteza na vida do nosso povo, que hoje vê diante de si um futuro opaco, no qual grandes massas humanas não têm mais lugar. Temos o maior desemprego da história: um brasileiro ou brasileira em cada grupo de cinco procura trabalho. A massa salarial, ou seja, a soma dos rendimentos recebidos pelos trabalhadores, está em queda livre há bem mais de um ano. O crescimento da economia oscila em torno de zero. A taxa de juros mantém-se entre as duas ou três maiores do mundo. A dívida interna líquida atingiu R$ 800 bilhões, e seu crescimento está fora de controle. O Estado nacional tornou-se refém do sistema financeiro. A desnacionalização da base produtiva atingiu níveis inéditos, conferindo a agentes externos amplo controle sobre nossas possibilidades de desenvolvimento e nossa inserção internacional. As exportações estão diminuindo (o resultado da balança comercial melhorou graças a uma queda ainda mais acentuada nas importações, por causa da recessão). Surpreendentemente, nesse contexto, há pressões inflacionárias latentes.

A falência do modelo ainda não é completamente visível para o cidadão comum, na forma de uma crise de tipo argentino, porque mais uma vez, por decisão política do Estado norte-americano, o FMI garantiu um aporte de recursos externos, que se soma ao estoque de dívida já existente. Assim, a bicicleta financeira poderá girar mais um pouco, garantindo aos credores mais tempo para retirar-se ordenadamente, sem perdas. Ninguém ignora, no entanto, que será muito grave a situação brasileira já no início de 2003. Quando o novo presidente tomar posse, poderá dispor de reservas cambiais suficientes para garantir apenas um mês de importações. O acordo com o FMI, que permite a redução das reservas brasileiras até o nível irrisório de US$ 5 bilhões em 31 de dezembro, foi mais um ato de alta traição.

Seja qual for o desdobramento da crise atual, o desafio colocado para os próximos anos não diz respeito à viabilidade de manter esse modelo, que já funciona na UTI, com respiração artificial, mas sim ao tipo de repactuação, interna e externa, que a sociedade brasileira será forçada a realizar. Quais os seus termos? Quais os agentes relevantes? Que partes do modelo falido serão sepultadas, que partes dele sobreviverão? Quem pagará a conta do mais recente ciclo de endividamento em que fomos lançados? As eleições presidenciais deste ano definirão o agente, ou conjunto de agentes, aos quais a sociedade brasileira delegará a condição de principal articulador dessa repactuação.

Quando um modelo ou regime entram em processo de falência, múltiplos atores apressam-se em formular propostas alternativas. Muitas vezes, guiados pelas evidências, pelos interesses da hora ou pelo simples instinto, convergem em uma mesma direção. Alguns vêm de fora do pacto dominante, na condição de forças de oposição; outros vêm de dentro, sob a forma de dissidências do sistema de poder. Foi assim no fim do regime militar. Naquela ocasião, excetuando-se um núcleo duro do autoritarismo, que se tornou claramente anacrônico, do dia para a noite todos viraram democratas. Mutatis mutandis, hoje todos são desenvolvimentistas.

Nesses contextos, os políticos brasileiros seguiram até hoje um comportamento-padrão: tendem a buscar uma liderança capaz de unir a oposição já quase vitoriosa, sem no entanto defenestrar os que ainda detêm o poder. Solução de compromisso, que ao fim e ao cabo sempre serviu ao conservadorismo. Para cumprir esse papel, tal liderança não pode identificar-se claramente com nenhuma das partes em conflito; em vez disso, deve identificar-se parcialmente com todas, ou quase todas. É um caminho que exige complexa e engenhosa engenharia política. Qualquer semelhança com Tancredo Neves não é mera coincidência.

Transformar Lula no Tancredo antineoliberal - ou seja, em um candidato em que todos os atores relevantes, da Fiesp ao MST, do Citibank ao PcdoB, possam reconhecer-se um pouco - tem sido a estratégia do PT, executada com grande coerência. Se cada um desses atores chegar à conclusão de que não conseguirá impor o seu próprio projeto, eles tenderão a convergir para esse candidato de múltiplas faces. Dependendo de como evoluírem as demais circunstâncias, tal estratégia pode conferir a Lula muitos apoios e possibilidades reais de vitória, principalmente se as forças da situação se dividirem, como está ocorrendo.

Porém, se voltarmos à comparação com Tancredo, há dificuldades à vista. Primeiro: em meados da década de 1980, a necessidade reconstruir um regime democrático era praticamente consensual, enquanto a alternativa ao atual modelo econômico - embora falido - é bastante obscura. O grau de consenso, hoje, é muito menor.

Segundo: a engenharia política que garantiu a vitória de Tancredo foi tremendamente eficaz em eleições indiretas, praticadas em um colégio eleitoral de cerca de 500 pessoas, enquanto hoje a decisão passa pela opinião, menos controlável, de 110 milhões de eleitores.

Terceiro: a história mostra, à exaustão, que alianças assim construídas logo produzem paralisia e frustrações. O amplo espectro que o PT aglutinou não resistirá aos primeiros meses de governo. As margens de manobra em 2003, para qualquer presidente, serão estreitíssimas. O país negociará falido com o FMI - o que significa que será um jogo de soma negativa -, e as forças conservadoras terão presença decisiva no Poder Legislativo e nos governos estaduais, exercendo poder de veto sobre quaisquer decisões importantes.

A arquitetura institucional brasileira e a configuração estrutural do nosso capitalismo, no período atual, deixam espaços exíguos para políticas redistributivas minimamente eficazes, feitas de cima para baixo. Nesse contexto, o caminho que o PT escolheu para mudar o Brasil padece de uma contradição intrínseca: quanto mais intensas são as articulações de bastidores e mais amplas as alianças, menos autenticidade, clareza e capacidade de mobilização tem o candidato. Ele depende, cada vez mais, de dois instrumentos que só as elites podem lhe dar: acesso à mídia e recursos financeiros, pois são muito caras as campanhas sem militância espontânea. Para garanti-los - e, nesta eleição, o PT não tem do que reclamar quanto a isso -, Lula tem ido mais longe do que se poderia esperar. Afastou-se dos movimentos sociais, chegando a classificar de "brincadeira" a notável mobilização em torno do plebiscito da Alca. Silenciou sobre bandeiras históricas da esquerda, assumiu várias da direita. Evitou temas polêmicos. Abandonou a luta de idéias. Passou a tratar as grandes questões da sociedade como problemas administrativos. Adotou radicalmente o marketing como forma de comunicação com a sociedade, legitimando a atividade política como uma variante do mercado, cujo público-alvo é o indivíduo-consumidor. Além dos lugares-comuns da retomada do crescimento e da geração de empregos, tem reafirmado apenas seu compromisso com a reforma agrária - pois sabe que a acumulação do grande capital não passa mais pelo controle direto da terra - e com programas assistenciais. Fala para o povo no varejo, cede às elites no atacado. Tem propostas para tudo, menos para o que é essencial.

Assim enquadradas, as eleições têm sido um momento privilegiado para difundir e legitimar aspectos centrais da ideologia conservadora. O que era um meio tornou-se um fim em si mesmo. A campanha atual em nada contribui para difundir o senso crítico do povo em relação ao sistema dominante e fortalecer sua capacidade autônoma de mobilização, ou seja, sua vontade de tomar para si a construção do próprio destino. O resultado imediato é a reafirmação de um amplo descrédito na atividade política. Pois, se não há grandes alternativas em jogo, então não há lugar para engajamentos coletivos movidos a entusiasmo, sem os quais não se produzem mudanças.

Mesmo assim, é Lula quem ainda preenche o imaginário de boa parte da esquerda. Continua a despertar esperanças. Sua eventual vitória trará novo ânimo para muita gente, levantará demandas latentes. Sua possível ascensão à Presidência continua a ter forte carga simbólica. Por tudo isso, é muito difícil dizer qual será seu papel. Lula tornou-se um enigma, talvez até para si mesmo. Não temos como decifrá-lo agora. Tudo dependerá das circunstâncias, nas quais cada um de nós está incluído.

Se ganhar a eleição e honrar as garantias que vem dando aos poderosos, Lula será Fausto, o personagem de Goethe que vendeu a alma ao diabo e obteve com isso o que sempre almejara. Se ganhar e conseguir virar o jogo, mostrando-se fiel aos setores populares que sempre o apoiaram, terá realizado uma impressionante operação política, digna de Maquiavel, que poderá mudar a história do Brasil. Se perder a eleição - em um segundo turno com José Serra, por exemplo - por ter sido abandonado pelas elites que vem tentando cativar com tanta paz e amor, lembrará Riobaldo Tatarana. Ao entrar para o cangaço, o antológico narrador de Grande sertão: veredas também vendeu a alma ao diabo. Comportou-se sempre de acordo com o pacto. No fim da vida, porém, perplexo e solitário, descobriu que o diabo não a havia comprado. Fausto, Maquiavel ou Riobaldo. O futuro dirá qual foi o papel de Lula na história contemporânea do Brasil.



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