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La insignia
11 de setembro de 2002


Brasil: Era FHC

O desmonte trabalhista


Altamiro Borges (*)
La Insignia. Brasil, 11 de setembro.



No último artigo desta série - que já abordou a explosão do desemprego, a corrosão dos salários e a chaga da informalidade -, analisamos o profundo e radical desmonte da legislação trabalhista promovido na "era FHC". Sem dúvida, o atual presidente entrará para a história da vida republicana como o governante que provocou os maiores estragos nas relações de trabalho no Brasil. Os retrocessos promovidos nos oito anos de reinado tucano impressionam pela quantidade das medidas impostas e pelo seu alto poder de devastação. A lista de ataques é imensa e as intenções eram ainda piores!

Já nos seus estertores, em 2001, FHC ainda tentou desfechar mais um duro golpe nos direitos trabalhistas. O Ministério do Trabalho apresentou o projeto de alteração do artigo 618 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), impondo a prevalência do "negociado sobre o legislado". Na prática, a medida colocava em risco históricas conquistas dos assalariados - 13o salário, férias, adicionais, etc. Num quadro adverso à luta dos trabalhadores, de crescente desemprego, os sindicatos não teriam poder de pressão para preservar os antigos direitos. Se vingasse, prevaleceria a lei das selvas, com a total desregulamentação do trabalho!

A reação a este projeto regressivo foi generalizada. Centrais sindicais, juristas de renome, entidades da sociedade civil e parlamentares, inclusive do bloco governista, bombardearam a medida. "A CLT, hoje, só permite que uma convenção ou acordo coletivo amplie os direitos para os trabalhadores. A proposta de reforma é para que ela permita diminuir os atuais direitos", reagiu o presidente da CUT, João Felicio.

Diante da rejeição, o governo utilizou dinheiro público numa ostensiva campanha na mídia - com custo estimado de R$ 2,5 milhões -, que logo foi suspensa na Justiça. Neste esforço de manipulação, o ministro Francisco Dornelles procurou relativizar o impacto do seu projeto - que "não retira os direitos, fortalece a negociação entre sindicatos e empresas e vai gerar mais empregos". A Federação das Indústrias de São Paulo, a poderosa Fiesp, foi no mesmo rumo, comemorando o fato do projeto dar "maior liberdade na relação capital-trabalho, com menor ingerência do Poder Público, o que é salutar".

Até agora, entretanto, o projeto da "reforma da CLT" não vingou. Vários fatores incidiram para evitar o duro golpe - sua tramitação num ano eleitoral, o que gera forte desgaste; as graves fraturas na base de sustentação do governo e, em especial, a resistência de parcela expressiva da sociedade e do sindicalismo. Apenas a Força Sindical e a Social-Democracia Sindical (SDS) apoiaram o projeto. Os presidentes destas duas centrais sindicais inclusive aceitaram o papel de "garotos propaganda" do governo. Tal postura gerou divisões no interior destas centrais, com vários segmentos condenando a flexibilização trabalhista.

Na votação na Câmara Federal, no final de 2001, o projeto esbarrou em obstáculos. Após várias tentativas frustradas e muita tensão - inclusive com a suspeita falha do painel eletrônico -, ele foi aprovado por uma margem apertada (264 a 213). No Senado, o governo foi obrigado a retirar o pedido de urgência, temendo os votos de antigos aliados do PMDB e do PFL. Os protestos liderados pela CUT em 21 de março foram decisivos para a vitória. Um milhão de trabalhadores paralisaram parcialmente suas atividades e 200 mil engrossaram manifestações de rua. A "reforma da CLT", por enquanto, está arquivada!


HISTÓRIA DO ATAQUE

Apesar desta derrota temporária, o processo de flexibilização das leis trabalhistas avançou a passos largos no país nos últimos anos. Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil foi um dos recordistas mundiais em desregulamentação na década passada. Nunca se viu na história da nação tamanho retrocesso. Esta violência refletiu a hegemonia do "pensamento único" neoliberal no mundo. Na ofensiva há 30 anos, esta visão encara a regulação do trabalho como um entrave à expansão do capital. Daí a obsessão de FHC, expressa em vários discursos, de "acabar com a era Vargas".

No caso do Brasil, alguns autores chegam a citar o FGTS, imposto pela ditadura militar em 1966, como a primeira medida de desmonte da legislação erguida na "era Vargas". Mas o jurista uruguaio Oscar Ermida Uriarte, assessor da OIT na América Latina, relativiza esta interpretação. Para ele, esta lei, que substituiu a estabilidade decenal no emprego da CLT, pode ser tratada como "uma curiosidade histórica", porque "depois a legislação brasileira não continuou nesse caminho, ficando o FGTS como um caso isolado".

Outros estudiosos também se referem às brechas abertas na Constituição Federal de 1988, que fixou a "irredutibilidade de salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo". Esta ressalva possibilitou que várias empresas, sob o tacão do desemprego, reduzissem rendimentos dos assalariados. Ela também não regulamentou vários direitos, como as férias de 30 dias e o valor dos adicionais. Estes foram os flancos que o governo pretendeu atacar com a sua "reforma da CLT". Mesmo assim, há consenso de que a Constituição de 1988 remou contra a maré neoliberal, garantindo importantes conquistas trabalhistas.

Excluídas estas e outras tímidas iniciativas, fica patente que o "príncipe" FHC foi o grande demolidor da legislação do trabalho no Brasil. Mesmo antes de ser eleito para a presidência da República, ainda no posto de czar da economia do governo Itamar Franco, ele promoveu a desindexação salarial, através do perverso Plano Real que aboliu o reajuste automático dos salários. Já o primeiro ministro do Trabalho da "era tucana" apressou-se em propor a extinção do artigo 7o da Constituição, que em seus 34 parágrafos fixa os direitos trabalhistas. Na ocasião, o ministro Paulo Paiva listou os objetivos do governo:

"1) flexibilização dos direitos sociais; 2) implantação do contrato coletivo de trabalho; 3) redução dos encargos trabalhistas; 4) eliminação do poder normativo da Justiça do Trabalho; 5) fim da contribuição sindical compulsória; 6) e introdução do pluralismo sindical". Só que a "explosiva" proposta não vingou. Além da repulsa da sociedade, qualquer mudança constitucional exige quorum qualificado de votação no parlamento. O substituto no cargo, Edward Amadeo - que virou motivo de chacota ao dizer que "não há desemprego no país" - ainda tentou emplacar a reforma, mas também saiu chamuscado do Ministério.

Aos poucos, com a erosão da sua legitimidade, FHC percebeu que seria difícil mexer na Constituição e mudou de tática. Passou a impor as medidas de flexibilização à conta gotas, em doses homeopáticas. Ele nunca desistiu deste projeto e nem podia. Além de encarnar o ideário neoliberal, FHC atou o país ao Fundo Monetário Internacional. O item 33 do "memorando de entendimento" com o FMI, assinado em 1998, revela este servilismo: "Embora o mercado de trabalho brasileiro não seja perseguido por nenhuma rigidez grave, determinadas regulamentações e políticas do mercado de trabalho podem contribuir para uma maior flexibilidade e para aumentar a produtividade do trabalho e o emprego formal". Sua última cartada, a da "reforma da CLT", visou exatamente cumprir, no apagar das luzes, o acordo com o FMI.


LISTA DOS RETROCESSOS

Como já foi dito, mesmo se ter conseguido enterrar a Constituição ou anular o artigo 618, FHC pode se dar por satisfeito. Seus dois mandatos cumpriram o papel de desmontar a regulação até então existente. As relações do trabalho de hoje relembram a fase anterior à da "era Vargas". Importantes conquistas neste campo, fruto de históricas lutas dos trabalhadores, foram golpeadas. Atualmente, o que há no país é a contratação flexível, a jornada flexível e a remuneração flexível! Um grande êxito dos neoliberais!

Nesta onda regressiva, a lista dos ataques é enorme. Vários levantamentos evidenciam este desmanche, como os elaborados pelo Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas Sócio-Econômicas (Dieese), pelo Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), pelo coletivo jurídico da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e pelos partidos de oposição. Um dos mais completos é o da "assessoria técnica" da bancada federal do PT, coordenada pelo advogado Carlos Eduardo Freitas - que serve de referência para a lista, a seguir, das principais iniciativas desregulamentadoras do governo FHC.

Segundo estes estudos, na década de 90 o governo abusou das autoritárias Medidas Provisórias (MPs), que dispensavam a participação efetiva do Congresso Nacional, para promover a desregulamentação do trabalho. Além disso, apresentou vários Projetos de Lei (PLs) em regime de urgência de votação, também para abafar o debate na sociedade e no próprio Parlamento. Através destes expedientes legislativos e das portarias e normas do Ministério do Trabalho, o governo foi, aos poucos, adulterando toda a legislação trabalhista. A fúria flexibilizadora fica evidenciada nas seguintes iniciativas, entre muitas outras:

-MP no 1.053, convertida na Lei no 8.542. No bojo do Plano Real, determinou a "livre negociação" entre as partes, proibindo a indexação dos salários. Na prática, extinguiu a política salarial, resultado em recorrentes perdas do poder aquisitivo dos trabalhadores;
-Lei no 8.949, de dezembro de 1994. Por ironia da história, o PL regulamentando as cooperativas foi sugerido pelos setores populares. Visava estimular formas solidárias de trabalho. Entretanto, foi absorvido pelo patronato e hoje serve para evitar os encargos leis trabalhistas, com a criação de milhares de falsas cooperativas, as "coopergatos".
-Portaria 865, de setembro de 1995. Editada pelo Ministério do Trabalho, impediu a autuação das empresas por desrespeito às convenções e acordos trabalhistas. Ao invés de multa, determinou que os fiscais apenas registrem a ocorrência de práticas ilegais;
-Decreto 2.100, de dezembro de 1996. O governo denunciou a Convenção 158 da OIT, retirando do direito brasileiro a norma mundial que limita a demissão imotivada;
-Lei no 9.525, de 1997. O PL, apresentado pelo governo, fixou a possibilidade de dividir as férias dos servidores públicos federais em até três etapas. Foi aprovado em regime de urgência, sem qualquer consulta às entidades sindicais do funcionalismo.
-MP no 1.530, convertida na Lei no 9.468, de 1997. Instituiu o Plano de Demissão Voluntária dos servidores federais, sendo depois seguida pelos estados e municípios;
-MP no 1.539, renumerada para 1.619 e 1.698 e convertida na Lei no 10.101. Reeditada desde final de 1994, regulamentou a Participação nos Lucros e Resultados. A PLR não é incorporada aos salários e benefícios, sendo um meio eficaz de flexibilização da remuneração. Permitiu ainda o trabalho dos comerciários aos domingos;
-Lei no 9.601, de 1998. Aprovada em dezembro de 1997, esta PL do Executivo instituiu o "contrato por tempo determinado", o conhecido "contrato temporário". O trabalhador contratado por este mecanismo não tem direito ao aviso prévio e à multa de 40% sobre o FGTS quando da sua demissão. Além disso, o valor do depósito no FGTS é reduzido de 8% para 2%, assim como são reduzidas as contribuições para o Incra, salário-educação, seguro acidente de trabalho e "Sistema S". A lei também permitiu a jornada semanal superior às 44 horas previstas na Constituição sem o pagamento das horas-extras. Criou a figura do "banco de horas", determinado a compensação no período de um ano.
-MP no 1.709, renumerada para 1.779 e 2.168. Vigorando desde 1998, criou a figura do contrato parcial de trabalho. Permite a jornada semanal de no máximo 25 horas, com redução proporcional do salário e do tempo das férias - que pode ser de oito dias;
-MP no 1.726, de 1998. Instituiu a "demissão temporária", com suspensão do contrato de trabalho por cinco meses. Neste período, o "demitido" recebe o seguro-desemprego, custeado pelo FAT, um fundo público oriundo das contribuições dos assalariados.
-Lei no 9.957, de 2000. Apresentado pelo governo, em regime de urgência, criou o "procedimento sumaríssimo" nas ações judiciais com valor inferior 40 salários mínimos;
-Lei no 9.958, de 2000. Também de autoria do Executivo, criou as comissões paritárias de conciliação prévia (CCP), que inviabilizam a reclamação dos direitos na Justiça.
-MP no 1.960, convertida na Lei no 10.206, de março de 2001. Num ajuste do Plano Real, proibiu a indexação salarial e a correção automática dos salários (o "gatilho");

Além desta artilharia pesada, o governo promoveu autêntica cruzada contra a Justiça do Trabalho, ciente da necessidade de ter um Judiciário rendido. Aqui se encaixam os projetos do rito sumaríssimo, da CCP e mesmo do fim do juiz classista. Ele também fez questão de explicitar sua aversão aos sindicatos, visando inibir as lutas dos trabalhadores. Logo no início do primeiro mandato, num gesto emblemático, acionou os tanques do Exército contra a greve dos petroleiros e multou as entidades da categoria. Com base nesta experiência arbitrária, apresentou o PL no 1.802, criminalizando as greves - com multa diária de até mil salários mínimos no caso da greve prosseguir após ser declarada abusiva.

Na ofensiva contra o sindicalismo, o governo ainda pressionou pela limitação do número de dirigentes sindicais, retirando do baú da ditadura o "estatuto padrão"; e pela proibição do desconto das contribuições confederativa e assistencial, visando asfixiar financeiramente os sindicatos. Mas a sua investida fatal, a PEC 623, não vingou. "Ela retira do texto da Constituição qualquer limite à pluralidade... Com a sua adoção se teria, no primeiro momento, a criação de mais sindicatos, para depois haver uma previsível quebradeira de grande parte dos sindicatos", reconheceu, na ocasião, a própria assessoria do PT.



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