Portada Directorio Buscador Álbum Redacción Correo
La insignia
10 de setembro de 2002


Ingrata mãe gigante


Mário Maestri (*)
La Insignia. Brasil, 10 de setembro.



No início do século 19, os soldados franceses enviados por Bonaparte para vergar a barbárie e restabelecer a civilização na ilha de Santo Domingos escutavam, ao longe, perplexos e assustados, o ressoar da canção querida que lhes era proibido cantar. Eram os negros insurrectos que, cantando a Marselhesa, surgiam das trevas da noite para desbaratar as linhas do exército invicto.

Avante, filhos da Pátria
O dia de glória chegou
Contra nós, levantou-se,
O estandarte ensangüentado da tirania.
Escutai, nos campos, rugir esses ferozes soldados?
Eles vem, nos nossos braços,
degolar vossos filhos, vossas companheiras.
Às armas, cidadãos! Formai, vossos batalhões!
Marchemos! Marchemos!

A Marselhesa teria sido composta, em 1792, pelo capitão-engenheiro Claude Joseph de Lisle, para o exército do Reno. Ela transformou-se na principal canção popular marcial e, a seguir, em 1795, no hino nacional da França, pela decisão e vontade anônimas e soberanas da população em armas.

A Marselhesa foi selecionada entre tantos outros hinos porque sintetizava na forma e no conteúdo o entusiasmo com que a França democrática, republicana e plebéia levantava-se para vergar os aristocratas e conservadores que, dentro e fora do país, coligavam-se contra a revolução.

Após o golpe do Termidor, Bonaparte proibiu aos soldados franceses cantar a Marselhesa, tamanha era a sua capacidade de invocação democrática e revolucionária. A tradição conta que teria apenas permitido que fosse entoada, por uma única vez, quando da vitória sobre os imperadores da Áustria e da Rússia, em Austerlitz, em 1805.


Pela Internacional!

Em 1871, na Comuna de Paris, o mundo do trabalho e do capital defrontaram-se de armas à mão cantando o mesmo hino. Durante os combates, foi composto o "Canto da Internacional: hino dos trabalhadores", que o Jornal Oficial da Comuna falhou ao prognosticar como a possível "Marselhesa da nova Revolução" - como lembra Luiz A. Gini. Cem mil trabalhadores foram mortos, fuzilados ou aprisionados durante e após os combates.

O "Canto da Internacional" não prosperou, ao contrário do que ocorreria com "A Internacional". Com música de Pierre Degeyter [1888] e letra de Eugene Pottier [1871], a canção revolucionária terminou celebrizando-se no fim do século 19. Desde então, "A Internacional" tornou-se o hino dos trabalhadores franceses e de todo o mundo, cantado com a mesma música nos mais diversos idiomas.

De pé, ó malditos da terra!
De pé, ó vítimas da fome!
A razão troa na sua cratera
É a erupção do fim
Do passado façamos tábua rasa
Massas, escravos, de pé, de pé!
O mundo vai mudar de base
Nós não somos nada, sejamos tudo
É a luta final
Agrupemo-nos todos, e amanhã
A Internacional
Será o gênero humano.

Macieira não dá laranjas. A gênese histórica e social radicalmente distinta do hinário patriótico brasileiro explica seu nulo poder evocativo popular. A ruptura da união do Brasil com Portugal foi certamente o movimento de independência mais atrasado e conservador das três Américas.

Para tranqüilizar os interesses britânicos e portugueses, as elites provinciais do Brasil aceitaram o tacão centralizador e despótico de um príncipe português que era, igualmente, o herdeiro da coroa lusitana que renegavam. Para garantir a continuidade da ordem negreira, os senhores de todo o Brasil optaram por um Estado monárquico, centralizador e anti-liberal.


Independência de branco

Os senhores teriam, muito logo, a prova amarga da tacanhez da opção bragantina. Em novembro de 1823, quatorze meses após o Sete de Setembro, dom Pedro desferia o primeiro golpe militar do Brasil independente, fechava a assembléia nacional constituinte e legislativa, ditava a constituição anti-liberal que governaria o Brasil até 1889.

A Independência de 1822 foi coisa de branco e de rico, para branco e para rico. A grande maioria da população trabalhadora, formada por africanos e brasileiros escravizados, prosseguiu sob o jugo absolutista e colonial do bacalhau de cinco dedos do senhor impiedoso.

O "Hino da Independência" teve autores mais ilustres do que a Marselhesa. A letra foi escrita por Evaristo da Veiga, prócer da Independência, e a música composta pelo imperador em pessoa. Uma independência socialmente excludente geraria hino esteticamente excludente.

Já podeis da Pátria filhos,
Ver contente a mãe gentil;
Já raiou a liberdade
No horizonte do Brasil.

Como assinala Flávio R. Kothe, em O cânone imperial, o primeiro verso realiza-se na segunda pessoa do plural, comum à linguagem áulica da Corte e desconhecida da população livre pobre, para não falar de boa parte da população trabalhadora que se comunicava ainda através de línguas e coinés africanas e indígenas.

A contradição berrante entre os "filhos da pátria" que saudavam a "liberdade" que raiara "no horizonte" e as multidões de homens e mulheres acorrentados à escravidão até a morte registrava o fato de que a massa trabalhadora não faria, sequer formalmente, por 66 anos, parte da nação que se criava.


República do fazendeiro

O golpe de 15 de novembro de 1889 pôs fim a um centralismo monárquico que a Abolição tornara desnecessário. Então, todos os habitantes do Brasil passaram a fazer, na forma, parte de uma república, na essência, federalista, oligárquica e anti-popular.

A ruptura com o passado monárquico exigiu a produção de novos símbolos republicanos, em geral construído com o velho material imperial. Em forma ainda mais radical, o hino mais cantando na República materializou formalmente a profunda rejeição das classes populares da nova ordem.

As exóticas inversões sintáticas e o elitismo vocabular dos versos do Hino Nacional Brasileiro, musicado por Francisco Manuel da Silva, em 1841, registraram plenamente o elitismo da nova república dos coronéis e latifundiários.

Tão profundos foram o pernosticismo da linguagem e o preciosismo sintático usados por Osório Duque Estrada, na construção, em 1909, da letra definitiva do Hino Nacional, que ele ainda hoje é incompreensível à imensa maioria da população, incapaz de dar sentido a vocábulos retorcidos como "plácido", "retumbante", "fúlgido", "resplandecente", "impávido", "florão", "garrida", "lábaro", "verde-louro", "clava" etc.

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heróico o brado retumbante
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,
Brilhou no céu da Pátria nesse instante


A linguagem do mito

A esquizofrenia patente de uma população cantando hino que não entende ensejou propostas de simplificação lingüística ou modificação radical da letra da canção pátria. Essas tentativas de remendo ignoram a funcionalidade essencial do caráter estrangeiro da língua em que foi composta o Hino Nacional.

O linguista Mikhail Bakhtine lembrava que, por além da compreensão, na "consciência histórica dos povos, a palavra estrangeira fundiu-se com a idéia de poder, de força, de santidade, de verdade". Por isso, o discurso religioso dá-se em geral em língua impossível ou difícil de ser compreendida pelos crentes.

Paradoxalmente, conteúdos irracionais são mais facilmente associados a uma narrativa que, devido ao estranhamento lingüístico que produz aos receptores, dificulta penetração racional dos seus conteúdos sociais e ideológicos reais.

O caráter esotérico e arcaico da linguagem galvaniza comumente sentimentos mágicos e aristocráticos difusos. No mundo das percepções invertidas e alienadas, a sentimentos superiores não pode corresponder, jamais, linguagem e conceitos inferiores. Ou seja, vertidos em linguagem popular compreensível.

A linguagem mandarinesca supera a impossibilidade de escrever, em língua de gente, canção que expresse os inexistentes interesses comuns, no seio de território nacional, de banqueiros e bancários, de empregadores e empregados, de investidores e desempregados, de latifundiários e sem terra. Assim sendo, materializa facilmente sentimentos produzidos na esfera da irracionalidade social.

Nesse sentido, a repetição de formas verbais sacralizadas e incompreensíveis permite que o homem comum associe-se, periodicamente, a um ato unitário de celebração nacional que consolida a perpetuação de Estado fundado e construído através da produção e reprodução consciente da miséria e da desigualdade.


(*) Mário Maestri é historiador. E-mail: maestri@via-rs.net



Portada | Iberoamérica | Internacional | Derechos Humanos | Cultura | Ecología | Economía | Sociedad | Ciencia y tecnología | Directorio | Redacción