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La insignia
2 de setembro de 2002


Sobre girafas, mariposas,
corporativismo científico e anacronismos didáticos*


Isabel Rebelo Roque
La Insignia. Brasil, 2 de setembro.


Esticando bem o pescoço

É bem possível que alguns leitores, independentemente de terem seguido esta ou aquela carreira depois de adultos, ainda se lembrem de algumas coisas de caráter mais pitoresco que estudaram nas aulas de ciências e de biologia.

Ao aprendermos sobre evolução, dificilmente teremos deixado de ver estampados nos livros didáticos dois exemplos clássicos: primeiro, o da explicação de Lamarck para o tamanho do pescoço das girafas atuais e seu contraponto darwiniano; segundo, o da seleção natural ocorrida em populações de mariposas dos bosques da Inglaterra durante a Revolução Industrial, que foi alvo de uma série de experimentos realizados na década de 50 pelo cientista Bernard Kettlewell.

Ocorre que ambas as histórias têm protagonizado, nos últimos anos, calorosas polêmicas na mídia científica internacional, enquanto no Brasil nada é dito a respeito. Ambos os assuntos abrem, também, uma complexa discussão que envolve interesses e responsabilidades da comunidade científica sobre o modo como divulga -- ou deixa de divulgar -- seus estudos e conclusões. Em se tratando de divulgação com fins didáticos, então, a questão torna-se ainda mais delicada.

Por exigência de meu trabalho (sou editora de livros didáticos), precisei pesquisar esses temas, e foi então que constatei a absoluta falta de informações, seja em meio eletrônico ou impresso, em âmbito nacional. Ao que tudo indica, eles não parecem ser suficientemente relevantes para que a comunidade científica brasileira deles se ocupe. Afinal, não é por este ou outro equívoco, ou por um ou outro livro didático ou curso desatualizado que a ciência haverá de parar.

Enquanto isso, vão se mantendo, incólumes e imutáveis, as referências às girafas de Lamarck/Darwin e às mariposas de Kettlewell em aulas de ciências e de biologia, em exames vestibulares, em inúmeros livros didáticos e em sites e portais de educação para o ensino fundamental e ensino médio, que pululam na internet.


As girafas de Lamarck: um exemplo clássico

Jean-Baptiste Lamarck, naturalista francês evolucionista, lançou seu livro Philosophie zoologique no mesmo ano do nascimento de Charles Darwin, 1809. Em sua explicação para a evolução dos seres vivos, elaborou duas hipóteses: a do uso e desuso e a da transmissão dos caracteres adquiridos. Segundo essas idéias, os seres vivos seriam capazes de se adaptar a pressões impostas pelo ambiente, para isso utilizando algumas partes do corpo mais intensamente que outras. As partes mais utilizadas se desenvolveriam mais; as menos utilizadas tenderiam a se atrofiar ou mesmo desaparecer. Daí o nome "uso e desuso".

Lamarck ia além afirmando que essas modificações sofridas pelos seres vivos em resposta a uma imposição do meio seriam transmitidas à sua descendência. Cabe lembrar que até então nada se sabia sobre o papel da herança genética na transmissão de características de geração a geração; Gregor Mendel, que lançou as bases da genética, só viria a nascer em 1822.

E qual o exemplo clássico utilizado para explicar a teoria lamarckista? É o do pescoço das girafas. Nos livros didáticos, costumamos ler que, segundo Lamarck, os ancestrais das girafas possuiriam pescoço curto. A necessidade de alcançar as folhas das árvores, principalmente em épocas de escassez de alimento, quando só restavam as folhas mais altas, teria provocado o constante exercício de esticar o pescoço. A característica "pescoço alongado" seria, então, transmitida à descendência. O resultado, após milhares de anos de uso intensivo do pescoço e transmissão da característica à prole, teria sido o que vemos hoje: que as girafas possuem pescoço longo e musculoso.

Em geral, nos livros, é apresentado o contraponto darwiniano a essa explicação: espécimes diferentes nasceriam com comprimentos de pescoço ligeiramente diferentes. Os indivíduos "privilegiados" nesse quesito apresentariam vantagem sobre os demais na hora de alcançar as folhas mais altas. Em épocas de escassez, essa diferença seria decisiva para definir quem sobreviveria e quem não. Os sobreviventes, com a característica "pescoço mais longo" ("de nascença"), conseguiriam transmiti-la à prole.

Belo e didático exemplo, não? Sim. Seria perfeito, não fossem alguns senões. O primeiro deles é que Lamarck jamais deu a esse exemplo o destaque que ele tem recebido há quase duzentos anos.


Tentando achar o fio da meada

O estranho caminho seguido pelo exemplo da elongação do pescoço da girafa -- de um mero parágrafo escrito por Lamarck, até sua transformação em "carro-chefe" da teoria lamarckista -- é examinado em detalhe em um ensaio assinado pelo paleontologista e divulgador científico Stephen Jay Gould, morto recentemente. O ensaio, intitulado "The tallest tale" (uma alusão à expressão "tall tale", história cujos detalhes são difíceis de engolir), foi publicado originalmente na Natural History Magazine, em 1996.

Em seu texto, permeado do humor sarcástico que o caracteriza, Gould tenta retomar o fio da meada. Observa que, na Philosophie zoologique, Lamarck ocupa-se das girafas somente em um parágrafo, dentro de um capítulo em que figuram muitos outros exemplos a que ele possivelmente atribuiu maior importância.

Quanto a Darwin, em sua primeira edição da Origem das espécies (1859) ele não faz qualquer referência ao pescoço da girafa, mas sim, em outro contexto, à sua cauda!

Gould especula que o exemplo do pescoço da girafa teria assumido importância na literatura científica graças a St George Mivart, que, em 1871, publicou uma crítica ao darwinismo: The genesis of species. Mivart centrou sua argumentação no pescoço da girafa, e, como sua finalidade era atacar o darwinismo, revestiu sua argumentação de um caráter caricatural.

Darwin, em reação ao ataque de Mivart, acrescentou à sua sexta e última edição da Origem das espécies (1872) um capítulo em que discorre extensivamente sobre o assunto. É essa edição que tem servido de base às versões subseqüentes, e não a primeira, de 1859, em que ele não faz qualquer menção ao pescoço da girafa. E assim essa história ganhou os livros escolares e em muitos deles perdura até hoje. O agravante é que -- a par do fato histórico de que Lamarck jamais deu ao pescoço da girafa tanta relevância -- dados subseqüentes, resultantes da observação de girafas em seu hábitat (as savanas africanas), derrubam de vez o "conto" das folhinhas mais altas em tempos de escassez.

Na verdade, a importância do tamanho e da robustez do pescoço da girafa não se resume a alcançar ou não as folhas mais altas. Entre os machos, por exemplo, o pescoço é uma importante "arma" usada para garantir a dominação e também a preferência das fêmeas, por meio de verdadeiros duelos nos quais às vezes o perdedor acaba perdendo também a vida.

As girafas têm ainda no comprimento do pescoço uma verdadeira "torre de observação", com a qual podem manter controle sobre a aproximação de predadores, por exemplo. Por si sós, esses dois usos do pescoço -- na disputa entre machos e na observação do ambiente -- já constituem, segundo os cientistas, fatores bastante relevantes para a importância de seu comprimento.

Gould termina seu artigo especulando sobre as possíveis razões de continuarmos a aceitar o velho "conto" do pescoço esticado para alcançar folhinhas. Talvez porque adoremos uma linda história, ainda que falsa; talvez também porque não estejamos habituados a questionar pretensas autoridades -- neste caso, a dos livros.


Mais lenha na fogueira

No mesmo ano em que Gould publicou seu artigo (1996), os zoólogos Robert Simmons e Lue Scheepers publicaram, na American Naturalist, o artigo "Winning by a neck: sexual selection in the evolution of giraffe" ("Vencendo por um pescoço: seleção sexual na evolução da girafa"). Nele, a dupla põe mais lenha na fogueira ao afirmar que, durante a estação seca, as girafas alimentam-se dos arbustos, e que é na estação de chuvas que elas se voltam para o alto das acácias, situação em que nenhuma competição é esperada.

Outro aspecto observado por Simmons e Scheepers é que as fêmeas passam metade de seu tempo alimentando-se com o pescoço em posição horizontal (comportamento tão típico que é útil para identificar o sexo do animal à distância). Além disso tudo, ambos os sexos alimentam-se mais freqüentemente com o pescoço curvado para baixo. Tudo isso, segundo eles, sugere que o tamanho do pescoço não teria evoluído especificamente em decorrência da busca de alimento em locais mais elevados.

Para refutar a possível objeção de que a competição entre machos não explicaria o comprimento do pescoço das fêmeas, Simmons e Scheepers argumentam que ele seria um resultado da correlação genética entre os sexos, e que outras espécies exibem correlações similares entre sexos -- ou seja, no caso das fêmeas, o pescoço longo teria vindo como uma espécie de "brinde".

Outro artigo sobre o assunto, assinado pelo Professor Steve Rissing, do Departamento de Evolução, Ecologia e Biologia dos Organismos da Ohio State University, foi publicado na Columbus Dispatch em fevereiro de 2001. Em seu texto, ele se refere ao "conto" das girafas como tema favorito dos "cartunistas da arca de Noé" e "ícone" dos textos científicos sobre a seleção natural de Darwin. Mas analisa que a derrubada da história tal qual a vemos nos livros não significa a morte do darwinismo. O fato de se haver concluído que o comprimento do pescoço da girafa é um exemplo de seleção sexual, e não de seleção natural, não invalida a teoria darwinista, já que Darwin, em sua teoria, considerou também a existência de outros mecanismos na evolução dos seres vivos. Mas ele é categórico quanto à necessidade de se atualizar os textos. "That's OK; that's science; that's how we learn", diz ele.


Muito barulho por nada?

Afinal, qual é a importância de tudo isso? O lamarckismo, seja quando se refere (ou não) a pescoços de girafa, seja quando recorre a qualquer outro exemplo, já não foi devidamente nocauteado? Sim, é um fato. Acontece que não se trata, neste caso, apenas de preservar a memória de um cientista, atribuindo a "César o que é de César" e a Lamarck o que é de Lamarck. Para usar uma expressão bastante popular, "o buraco é mais embaixo".

Quando falamos em atualizar as informações nos materiais de divulgação científica, nos cursos e nos livros didáticos, falamos em colocar em evidência um problema bem maior: o da "cristalização" de determinados conceitos, em ciência como também em outros campos do conhecimento.

Falamos, também, do problema crônico da não-ventilação das informações a que têm acesso professores e autores de material didático, os quais, em geral, são também professores -- com formação superior na área, mas não cientistas.

Falamos do risco de apresentar a ciência como algo sagrado e fechado, que permanece imutável, a salvo de reavaliações, e ao mesmo tempo -- como a história das girafas mostrou -- tão suscetível a ponto de cair em "armadilhas" de reedições. Falamos, ainda, do comodismo de nos agarrarmos a "modelos" científicos que constituiriam excelentes confirmações de teorias "oficiais" -- não fossem eles inconsistentes como modelos e não fossem elas apenas teorias, ainda que muito bem fundamentadas.

Contrapor a suposta explicação de Darwin para o tamanho do pescoço da girafa à de Lamarck, à luz dos conhecimentos genéticos atuais, acaba por cumprir uma infame e nem um pouco inocente função: desmoralizar e ridicularizar o também evolucionista Lamarck, sem levar em conta o momento histórico em que viveu, e oficializar a visão de Darwin, omitindo do leitor o fato de que suas idéias sobre seleção natural a cada dia encontram menos consenso na comunidade científica -- o que, bem explicado, não tem nada que ver com endossar o criacionismo, ou, em sua versão mais "moderna e científica", a "teoria do design inteligente", mas apenas com a necessidade de levar em conta outras possibilidades para explicar a história da vida na Terra.

Ou seja, estampar em um livro, lado a lado, a explicação lamarckista e a darwiniana para o tamanho do pescoço da girafa produz como efeito imediato a adesão do leitor à teoria darwiniana, sem lhe dar oportunidade para reflexão, por absoluta falta de maiores subsídios. É, em outras palavras, manipulação.

Assim, à conclusão de Gould de que adoramos uma linda história, podemos acrescentar que "acima de nós" existe um bocado de gente que "adora" o fato de adorarmos uma linda história.

No caso específico da realidade brasileira, deparamos com outro agravante: a morosidade com que se dá, aqui, a divulgação das vozes dissonantes publicadas lá fora. Bastam como exemplos os próprios textos que cito neste artigo: todos publicados na mídia norte-americana de divulgação científica, sem terem sido traduzidos ou sequer comentados pela mídia brasileira, e dois deles nem tão recentes assim, de seis anos atrás.


O caso das "ex-mariposas":
desmontando outro exemplo clássico

Em agosto foi lançado nos Estados Unidos o livro Of moths and men, escrito pela jornalista Judith Hooper e já lançado na Inglaterra há alguns meses. Sobre ele, o editor de ciência Nicholas Wade escreveu a resenha "Staple of evolutionary teaching may not be textbook case", na edição de 18 de junho de 2002 do jornal The New York Times.

A publicação do livro de Hooper lança luz sobre um assunto que vinha se mantendo restrito a um determinado círculo: o dos que defendem as idéias criacionistas ou intervencionistas - mais modernamente, os teóricos do "design inteligente" -, e que vivem à cata de pontos fracos na teoria da evolução de Darwin.

Nas aulas de ciências e biologia, aprendemos que, por meio de um processo denominado "melanismo industrial", populações de mariposas do gênero Biston, encontradas na região de Manchester, na Inglaterra, sofreram alteração em seu padrão de cor.

Isso teria acontecido mais ou menos assim: antes da Revolução Industrial, os troncos das árvores das florestas habitadas pelas mariposas Biston possuíam grande quantidade de liquens (associação entre algas e fungos), que lhes conferiam cor esbranquiçada. O padrão de cor predominante nas populações dessas mariposas, na época, era claro, e elas facilmente se camuflariam, isto é, se confundiriam com a cor dos liquens, ao repousar sobre os troncos. A camuflagem é um importante recurso de sobrevivência em certas espécies: confundindo-se com o ambiente, o risco de ser visto pelo predador diminui.

Com o advento das indústrias, a partir de 1850, o ar, carregado de fuligem e outros poluentes, provocou a morte dos liquens e o escurecimento dos troncos. Como resultado, teria havido uma inversão na vantagem exibida pela cor clara das mariposas: ao repousar sobre troncos escurecidos, elas passariam a ser facilmente visíveis para o predador (nesse caso, determinados pássaros). Com isso, a variedade melânica, isto é, de cor escura, existente em menor número naquelas populações, teria passado a predominar graças à capacidade de passar despercebida ao predador, de se camuflar nos troncos escurecidos.

A partir de 1950, com a criação de leis de controle ambiental à emissão de poluentes, esse padrão novamente se inverteu: troncos com novas populações de liquens, portanto mais claros, passaram a esconder melhor exemplares de mariposas com o padrão de cor clara.

A esse exemplo de melanismo industrial, os livros didáticos costumam acrescentar a descrição de uma série de experimentos realizados pelo biólogo Bernard Kettlewell, da Universidade de Oxford, na década de 1950. Muitas vezes, os livros apresentam fotos com o registro dos experimentos - ou então fotos produzidas com o fim de reproduzir esse registro. Tais fotos mostram exemplares claros e escuros de mariposas Biston repousando sobre troncos de árvores.

O que se relata nos livros é que, em seus experimentos, Kettlewell coletou exemplares de mariposas com os dois padrões de cor e os liberou em ambientes controlados que apresentavam troncos também com diferentes colorações. Ao recapturar os exemplares sobreviventes, ele teria constatado o que já se esperava: o índice de sobrevivência era diretamente relacionado ao padrão de cor dos troncos.


Algo de podre

Tudo estaria perfeito, não fossem, como no caso das girafas, alguns senões. O primeiro deles foi a descoberta de que os experimentos de Kettlewell não transcorreram exatamente daquele modo: houve um certo "empurrãozinho", pois as mariposas não estariam vivas, mas teriam sido coladas aos troncos das árvores. O segundo é que o comportamento das mariposas Biston na natureza não se encaixa tão perfeitamente no modelo descrito. O terceiro é que a relação predomínio de uma cor/grau de poluição ambiental não se manteve como o esperado.

O livro de Hooper não é o primeiro a "devassar" o caso Kettlewell. Há quatro anos foi publicado o livro Melanism: evolution in action, de Michael Majerus, que tratava desse assunto, entre outros. Quem assinou uma resenha sobre ele, intitulada "Not black and white" e publicada na Nature, foi Jerry Coyne, do Departamento de Ecologia e Evolução da Universidade de Chicago. Nela, Coyne compara a decepção diante da verdade sobre os experimentos de Kettlewell ao que sentiu quando criança ao saber que Papai Noel não existia...

Coyne comenta que o livro de Majerus é o primeiro a reunir os pontos criticáveis nos experimentos de Kettlewell. O mais grave deles é que as mariposas Biston, em condições naturais, provavelmente não repousam sobre troncos de árvores - em mais de quarenta anos de estudos sobre seus hábitos, somente duas delas foram vistas fazendo isso. O local de preferência continua um mistério, mas acredita-se que seria o alto das copas das árvores.

Só isso, afirma Coyne, bastaria para invalidar os experimentos de Kettlewell, uma vez que as mariposas, colocadas sobre os troncos, tornar-se-iam altamente visíveis a seus predadores, numa condição artificial que forçaria sua predação. Além disso, Kettlewell expôs suas mariposas durante o dia, quando elas geralmente escolhem locais de repouso à noite.

Mas há ainda um fator para comprometer toda a história: na verdade, o novo aumento na ocorrência da variedade clara aconteceu bem antes da recolonização dos troncos pelos liquens, condição que pretensamente favoreceria a camuflagem da variedade no ambiente. E mais: um crescimento e decréscimo da população da forma melânica, isto é, escura, também se deu paralelamente em áreas industriais dos Estados Unidos, onde, entretanto, não houve alteração na incidência de liquens -- o que relativiza bastante o papel destes últimos na história toda.

Em sua resenha, Coyne cita uma análise similar à de Majerus, publicada em artigo quase que simultaneamente: Sargent et al., Evol. Biol., 30:299-322, 1998. Vale assinalar que se trata do Dr. Theodore Sargent, da Universidade de Massachusetts, que viria a ser a figura central do livro de Judith Hooper lançado agora, quatro anos depois.


Descartar ou não o exemplo?

Majerus admite, em seu livro, as inúmeras falhas do modelo, mas ainda assim considera útil continuar a usá-lo. Jerry Coyne, entretanto, pondera que esse não é exatamente o melhor exemplo a ser utilizado em sala de aula, devido a seus pontos fracos -- posição que fez de Coyne, à sua própria revelia, uma "arma" dos criacionistas para atacar os evolucionistas.

Ele sugere como mais apropriado o trabalho desenvolvido por Peter e Rosemary Grant, nas últimas décadas, sobre a evolução do bico dos tentilhões das ilhas Galápagos. [Sobre o trabalho dos Grant, há um livro de leitura fácil e agradável, vencedor do prêmio Pulitzer de 1994 e traduzido para o português: O bico do tentilhão: uma história da evolução no nosso tempo, do jornalista Jonathan Weiner. Ironicamente, enquanto se insiste em utilizar, com tantos "furos", a história das mariposas nos livros e nas aulas, a adoção do estudo dos Grant acabaria contando mais pontos para Darwin. Afinal, foram exatamente os tentilhões observados nas Galápagos, durante sua viagem no Beagle, que o levaram a formular sua teoria da evolução por meio da seleção natural.]

Em sua resenha de 18 de junho no New York Times sobre o livro de Judith Hooper, Nicholas Wade compara o "empurrãozinho" dado por Kettlewell a um recurso humorístico utilizado pelo antigo grupo inglês Monty Python: as mariposas não passavam de "ex-mariposas", exemplares mortos colados aos troncos das árvores. Mas a discussão sobre continuar ou não utilizando a história das mariposas como recurso pedagógico está longe de uma solução fácil. A esse respeito, o Professor David Rudge, da Western Michigan University, escreveu textos como "Does being wrong make Kettlewell wrong for science teaching?". Segundo ele, a manutenção da história no espaço escolar apresenta inúmeras vantagens.

Em contraste com Jerry Coyne, para quem os detalhes contraditórios de tudo o que envolve a história das mariposas Biston inviabilizam sua utilização pedagógica, Rudge pondera que ela constitui um excelente veículo para introduzir os estudantes no conceito de seleção natural. Ele complementa que expor aos estudantes as discrepâncias envolvidas no assunto poderá ser uma excelente forma de sensibilizá-los para a natureza da ciência como processo.


E agora, José?

Pelo relato que os leitores acabaram de ver, dá para notar que o caso das mariposas de Kettlewell tem sido o centro de uma verdadeira ciranda de especulações, de prós e de contras há, no mínimo, quatro anos. Há muitos outros lances "rocambolescos", que envolvem a relação nem um pouco tranqüila entre Kettlewell e seu supervisor, à época dos experimentos, o que é descrito por Judith Hooper em seu livro. Nada disso, entretanto, ocupou até hoje a mídia científica brasileira.

Aqui, novamente nos vemos diante de uma questão delicada, na qual aspectos como corporativismo da comunidade científica, necessidade de controle, manipulação, de um lado, e desinformação, de outro, estão em jogo. Não é de hoje que o assunto "fede", mas até agora, ao que parece apenas o nariz dos criacionistas estava com seu olfato apurado...

Assim como no caso do exemplo da girafa - tão perfeito, tão didático, mas falso -, recorrer às mariposas de Manchester e aos experimentos de Kettlewell é tentador, dada a simplicidade com que permitem trabalhar conceitos complexos como evolução e seleção natural.

Mas insistir neles é falsear informações e, de quebra, passar a alunos e professores uma idéia nem um pouco ética da ciência. A ciência não tem de ser ensinada como a arte do "jeitinho", mas como uma instância do conhecimento sujeita a falhas, a revisões, a aperfeiçoamentos, a inesperadas complexidades diante do que parecia simples e "didático".

Só assim a ciência e os fazedores de ciência escaparão do dogmatismo de que tantos os acusam.


Referências dos textos citados

COYNE, Jerry. "Not black and white". Nature, 396:35-6, 1998.
DARWIN, Charles. Novo endereço na internet com os textos originais de Darwin, em inglês (incluindo a primeira e a sexta edição da Origem das espécies):
http://pages.britishlibrary.net/charles.darwin
GOULD, Stephen Jay. "The tallest tale". Natural History Magazine, maio 1996, p. 18-27.
RISSING, Steve. "Giraffe story shows why science sticks its neck out". The Columbus Dispatch, 4 fev. 2001, p. 7C.
RUDGE, David W. "Does being wrong make Kettlewell wrong for science teaching?". Journal of Biological Education, 35(1):5-11. Outros textos de Rudge:
http://homepages.wmich.edu/~rudged
SIMMONS, Robert E. & SCHEEPERS, L. "Winning by a neck: sexual selection in the evolution of giraffe". The American Naturalist, 148 (1996), p. 771-86.
WADE, Nicholas. "Staple of evolutionary teaching may not be textbook case". The New York Times, 18 jun. 2002.
WEINER, Jonathan. O bico do tentilhão: uma história da evolução no nosso tempo. Rio de Janeiro, Rocco, 1995.


(*) Artigo originalmente publicado, em duas partes, no Observatório da Imprensa (http://www.observatoriodaimprensa.com.br) e condensado, em três partes, no Jornal da Ciência E-mail, da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (http://sbpcnet.org.br/publicacoes/jce-mail).
Isabel Rebelo Roque é editora de livros didáticos.



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