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27 de setembro de 2002 |
ou como evitar as linhas retas para andar direito (II)
Nivaldo Tetilla Manzano
É preciso livrar-se da tirania dos papéis unicórnios e confiná-los ao lúdico, a exemplo de como procedem Deus e o Diabo na versão machadiana do mito bíblico. É somente na tensão do jogo que se instala o problema da existência. Se se eliminar o drama, no sentido brando e forte do termo, elimina-se com ele o problema e a solução.
** Eis o problema e a solução: quanto mais se acirra o conflito, mais intervém a solidariedade; e quanto mais intervém a solidariedade, mais se acirra o conflito. A questão é auto-recorrente: Política do Sujeito. ** Ao assumir a metáfora de Veríssimo, desejo chamar atenção para o seguinte: a ação, antes de ser racional, é humana. É dizer que a racionalidade é apenas um dos valores que integra, juntamente com os demais, o espaço unitário de valores que caracteriza a decisão, o ser humano, na sua existência contextual. Assim como ocorre com os intestinos e o paladar, também o racional, o lúdico, o estético, o ético, o passional, etc., valores distintos porém indissociáveis, disputam entre si o direito de precedência, ou a exclusividade, de instituir o campo no qual vai incidir a decisão. O convívio entre os valores é conflitante, mas o conflito é de caráter includente. Na paixão amorosa, o passional não combina com o racional, por exemplo - para a sorte de ambos - ; nem por isso, a prevalência das emoções num determinado contexto exclui a possibilidade de intervenção da racionalidade no espaço da decisão, e vice-versa. O fato é que o resultado da decisão é expressão da interação conflitante e solidária das partes. Mas observe-se: o caráter includente do conflito mantém-se somente graças à presença do turista, que integra na sua pessoa a oposição entre as partes. Uma vez entregues à própria sorte, descoladas da pessoa, as partes eliminam-se mutuamente em duelos lógicos. As abstrações, que os constituem, passam a mandar em nós, em vez de sermos nós a comandá-las. É o que ocorre a Dom Quixote, ou a quem se deixa subordinar pela lógica da acumulação do capital. Por isso, é preciso estar atento para as ambições das partes, ou das ideologias, que aspiram a comandar o todo de forma excludente, totalitária.
"Existe também uma sociologia latente, eminentemente maniqueísta, nos grandes revolucionários, de Rousseau a Robespierre, de Lutero a Calvino, de Prudhom a Karl Marx: para todos eles, a evolução histórica divide-se em estados satânicos e estados divinos, em encarnações sociais do inferno terrestre e do paraíso celeste, da iniquidade e da injustiça, predestinados a se combater eternamente". O maniqueísmo ignora que há sempre alguma reserva de humanidade na desumanidade. Mesmo a dominação do capital, e a alienação que promove, nunca é completa. Por mais que o queira o capital, o operário nunca será aos próprios olhos apenas uma mercadoria. Assim como Simão Bacamarte recupera a lucidez ao cabo de muita insensatez, Dom Quixote ao fim da vida pôde afirmar: "Fui louco e hoje estou no meu juízo". Por mais que um escravo seja considerado coisa, como objeto de propriedade, nem ele próprio nem o seu proprietário conseguiriam convertê-lo em coisa somente. É possível observar nos potes de barro que o escravo fabrica, sob o guante do feitor, preferências, sentimento e gosto estético, por exemplo, que o seu dono dele não exige nem controla. Há sempre um excesso de humanidade, para além das abstrações que pretendem assumir o seu lugar. Os estereótipos, que se assumiriam, funcionalmente, como espelho fiel da "estrutura" social - os opostos na luta de classes, por exemplo -, têm a pretensão de conduzir mecanicamente os seus respectivos papéis e, estes, a pessoa que os desempenha. Mas é preciso observar que entre a pessoa e o papel que ela desempenha há uma distância, o espaço da auto-recorrência. Cabe à pessoa, na sua auto-recorrência, decidir, fazer infletir, na afirmação de sua humanidade, o modo paradigmático como o estereótipo exige que o papel seja desempenhado. A pretensão alucinada dos estereótipos funda-se na ilusão de que, não sendo a pessoa, titular dos papéis, capaz de controlar a realidade, cada parte, considerada isoladamente, o é. Ao se simplificar indevidamente a complexidade da realidade, acredita-se ingenuamente que esta se deixa controlar. Ocorre que o caráter infinito das possibilidades de modos de se responder às investidas das abstrações acaba por manifestar-se, emergindo no interior do espaço delimitado por elas. Ou seja, enquanto a pessoa se mantiver à frente de seus papéis, o caráter includente das oposições há de prevalecer sobre a sua exclusão mútua. A prevalência dos duelos lógicos, que impõe por inferência conclusões necessárias, elimina o espaço em que o ser humano, em contexto, se coloca a pergunta sobre o que fazer de si mesmo: elimina a liberdade e a responsabilidade. Se a história é movida por um êmbolo, uma necessidade endógena, não se saberia dizer, por ocasião de sua realização, se lá se chegou por mérito ou resignação. Jorge Luís Borges chama atenção para o caráter delirante das abstrações auto-suficientes na sua alegoria fantástica dos cartógrafos. Os Colégios de Cartógrafos fizeram um mapa do tamanho do Império que tinha o tamanho do Império e coincidia ponto a ponto com ele. A fantasia cartográfica alimentava-se da ilusão de que a abstração que ela gera é capaz de representar adequadamente a realidade. Assim procedendo, os cartógrafos não se davam conta de que a própria evolução da cartografia, por eles promovida, altera a sua visão do território, ao enriquecê-la, e de que, em conseqüência, o território, já não sendo o mesmo aos seus olhos, desafia-os, de modo recorrente, a refazer o seu mapa. Quanto mais adequado o mapa, mais diferenças emergirão entre o mapa e o território. A diversidade dos aspectos do território não corresponde à diversidade dos aspectos que os cartógrafos nele conseguem enxergar. O território é a expressão de sua habilidade cartográfica, mas esta não é a expressão do território. Da mesma forma, a prática social não se identifica com o recorte conceitual da luta de classes, embora dela seja suporte e referência. O capital, por mais que pretenda, com a sua presença hegemônica, não é senhor da realidade e não detém o monopólio da representação da realidade. Outras perspectivas de convivência humana disputam com ele o direito de enunciá-la, denunciando-o, por exemplo, como uma patologia social. Isso é dizer que o entrechoque real não se dá no plano dos papéis, mas no plano das pessoas que os desempenham. Há, portanto, mais coisas envolvidas na luta de classes do que as classes em luta. Esse "mais coisas" é o meio, o ambiente, a arena, o contexto, o espaço unitário de possibilidades, a referência. As interações que ocorrem nesse espaço, assim como as que ocorrem no espaço ambiental propriamente dito, não são orientadas previamente numa direção determinada, porque, em se tratando de incidências de interações sobre conjuntos de interações, e não de causação mecânica de um elemento por outro, o resultado é imprevisível. A incerteza está inscrita no coração da luta entre as classes. A luta de classes é luta de classes, em primeiro lugar, porque é humana (contextualmente). A referência não é a luta de classes, mas o desejo de se comprazer na existência. ** Antes de prosseguir, parece necessário explicitar a noção de solidariedade, que será apresentada no seu cotejo com a noção de cooperação. Nesta exposição, apóio-me em Kaplan & Lasswell (1979). Sendo apenas funcional, a cooperação apenas não basta e, se nela insistem a escola e a retórica dos meios de comunicação de massa, é porque ela se presta ideologicamente a escamotear o que é fundamental, o conflito e, juntamente com este, a solidariedade. Por ser funcional, a cooperação, além de não levar ninguém a sair de seu próprio papel, obscurece o reconhecimento de sua interdependência. O individualismo moldado pela ideologia da coisa comporta-se como coisa: promove um curto-circuito no jogo, ao isolar os parceiros em trajetórias paralelas, fechando-lhes assim a possibilidade de reencontro pela iniciativa solidária. A cooperação expressa a idéia de que as pessoas tendem a coordenar entre si os seus atos, como ocorre na divisão do trabalho. O "nós" da cooperação é uma equipe de trabalho, na qual cada um faz a parte que lhe compete, sem olhar para os lados, senão para exigir dos parceiros que não atrapalhem. A equipe assim constituída é uma soma homogênea de partes e não um entrechoque qualitativo entre pessoas, aí presentes como suportes de seus papéis, entrechoque que lhes arrebente os limites que os definem. É uma reunião de especialistas, não uma reunião de competências. A cooperação coordena operações funcionais diversificadas, mantendo os operadores idênticos a si mesmos do início ao fim do trabalho, como se tratasse de engrenagens de uma máquina. É, pois, puramente mecânica; opera no fundo contra si mesma, empobrecendo-se, já que ninguém é uma ilha. Já a solidariedade é a integração de expectativas desencontradas, que não pretendem conciliar-se ao preço de se eliminarem mutuamente na soma vetorial, de elementos homogêneos. Pois a sua eficácia resulta da exacerbação do conflito e da colaboração, e não de sua escamoteação. Além do fazer, a solidariedade expressa o sentir o conjunto, respeitando-se a singularidade de cada um, a sua irredutibilidade, necessariamente conflitante com a singularidade do outro. Ela não consiste em um simples paralelismo das subjetividades: isso acarretaria compatibilidade, como a existente entre a chave e a fechadura, mas não a interação entre solidários, necessária para a sua co-evolução. A interação co-evolutiva entre os parceiros leva necessariamente à sua transformação, cada um deles aprendendo com a própria experiência no seu cotejo com a do outro. A criança amadurece junto ao adulto, e o adulto revigora o seu sentimento de infância junto à criança. Na cooperação, ao contrário, a não-interação entre os membros do grupo começaria e se encerraria apenas no contato, próprio das coisas inertes, e não no contágio, próprio do que é vivo. Para que um grupo experimente a solidariedade, é preciso que seus membros levem em conta as expectativas dos outros, para fazerem valer as suas próprias e não para abrir mão delas; que estejam interessados no interesse dos outros, mas em causa própria, sem abdicar de seu próprio interesse. Na solidariedade, não há apenas um certo número de egos promovendo a mesma reivindicação, mas um certo número de eus que se juntam para reforçar mutuamente as suas diferenças, o pleito individual de cada um, inconfundível com o pleito do outro. É a diversidade dos pleitos que convoca à união, não a sua uniformidade. Um agregado de pessoas que cooperam mecanicamente entre si não é um grupo solidário. O fato de partilharem expectativas recíprocas não é suficiente para construir a solidariedade. Mesmo a identificação mútua entre membros do grupo não a constitui, pois ela é feita, como se pode observar no comportamento do turista, de diferenças na unidade. A cooperação, que iguala a todos na suposta funcionalidade dos papéis, é um aglomerado de átomos sociais, que se juntam artificialmente para se darem a ilusão de unidade, ao promover e consolidar a sua separação: "Cada macaco no seu galho", diz o provérbio funcionalista. É tanto mais provável que surja a solidariedade no grupo quanto mais difícil seja a realização de cada objetivo singular. É tanto mais provável que se rompa a solidariedade no grupo quanto mais os seus membros se sintam estreitamente ligados por interesses comuns. Uma vez removidas todas as diferenças, irromperá, com a uniformidade assim estabelecida, pelo menos uma diferença. É da uniformidade que brota a tentação do poder hierárquico, que irá prevalecer enquanto seus membros não se derem conta das diferenças irredutíveis que carregam consigo. As pessoas são iguais somente perante o espelho da abstração: todos são cidadãos a igual título; nenhum o é como pessoa, que é igual e diferente de si mesma. É tanto mais provável que uma reunião de opiniões atinja a solidariedade quanto mais controvertidas forem as opiniões. Um conflito intenso entre opiniões estimula e intensifica o reconhecimento mútuo, e a expectativa de cada membro do grupo dá apoio à expectativa dos outros: as reivindicações podem ser feitas em nome de um eu que transcende o eu individual, na referência da unidade dos opostos. As diferentes expectativas somente reforçam o conflito e a solidariedade, sem risco de neles se desfigurarem, quando os membros do grupo sentem reconhecidas as suas diferenças, e não quando promovem a sua uniformidade. Como exemplo de conflito e solidariedade, tem-se a integração social. Esta dá-se pelo reconhecimento de si mesmo e dos outros, dos outros em si mesmo e de si mesmo nos outros, como membros de uma mesma comunidade. Dá-se mediante o diálogo que, sendo construtivo, explora a igualdade nas diferenças para reconhecer as diferenças na igualdade. ** A temática do conflito e da solidariedade pode ser escandida em todas as claves, na cozinha, no trabalho fora de casa, na arquitetura, na pescaria ou na arte. Assim, por exemplo, no debate sobre a necessidade de gestão ambiental integrada da Zona Costeira brasileira, registram-se conflitos entre os usos da região em competição por recursos (recreação x navegação x lançamento de esgotos urbanos, exploração de petróleo x pesca, etc.); competição por espaço (preservação x expansão urbana, portuária, etc.); conflitos por impactos de rejeitos (as atividades de um setor interferem negativamente no ambiente de outro setor, ou no próprio ambiente); e conflito de valores (diferenças na percepção dos valores da região costeira por diferentes grupos sociais, econômicos, políticos, etc.). A orientação assumida neste livro é que não se trata de eliminar liminarmente tais conflitos, pois dessa forma se removeria o problema em vez de solucioná-lo. Conflitos por razões de espaço, recursos, valores, sempre existirão, e é graças à explicitação de sua emergência que se constrói um espaço comum e pedagógico para a busca de soluções. Trata-se, pois, de estimulá-los para que venham à luz e, assim, se possa enxergar melhor a complexidade da realidade, ou o contexto com o qual se está lidando. Como condição para que a sua resolução seja adequada - o que significa uma resolução necessariamente incompleta -, é preciso neles enxergar-se o aspecto que os integra na unidade de sua diversidade. Observe, leitor, que a exigência de unidade e de visão integrada por parte do ambiente é a contraface do caráter integrado da ação humana, no sentido preciso e universal da expressão, o que se traduz na prática em acolher o critério de obter-se o máximo proveito na exploração econômica desses nichos sob a condição de que seja realizada mediante o reconhecimento e a explicitação de seu valor não apenas em termos monetários, mas também e principalmente em termos de sustentabilidade. É dizer que o aspecto econômico da exploração não pode ser dissociado dos demais valores, tais como o estético, o ético, o social, o antropológico, o lúdico e o ambiental. Obviamente, o caráter unitário da gestão ambiental não se concilia com a lógica da acumulação de capital, que é excludente. Em que pese a proliferação de programas, instrumentos e normas para a Zona Costeira, o fato é que a retórica da "gestão ambiental integrada" não avança em qualidade e extensão, na medida necessária, por razões que fogem ao âmbito de nossa vocação legiferante. A exação de normas, expressão do estado de construção da consciência ambiental no espaço do Estado e da sociedade, não produz mecanicamente o aprimoramento da gestão integrada dos recursos naturais. A letra da lei é circunscrita abstratamente e, por isso, não interage com o meio promovendo enlaces solidários. Para se avaliar o contraste esquizofrênico entre a morosidade na obtenção de resultados e a proliferação de normas, é preciso atentar para algo mais, para o que representa, singularmente, a atualização histórica e cultural do paradigma ambiental e a sua contribuição para a gestão da vida em sociedade, aí incluída a gestão dos recursos naturais. A problemática ambiental emergiu, na atualidade, do reconhecimento da incapacidade do Estado e do mercado, considerados isoladamente, de lidarem com as questões ambientais. Essa incapacidade não é fruto de geração espontânea, mas sim um resultado ideológico imprevisto, embora deliberado e contraditório em seus princípios, da visão econômica neoclássica, que consiste em uma profissão de fé nos princípios do individualismo metodológico, do utilitarismo e do equilíbrio, em consonância com os cânones da física clássica e, por extensão, com a sociologia de Durkheim, criadas para lidar com coisas inertes. Trata-se de uma visão de mundo que intenta explicar a economia e a vida em sociedade como agregação das ações de indivíduos racionais, que se comportariam de modo a maximizar suas utilidades individuais, o que conduziria a alguma forma de equilíbrio. Esses são os princípios subjacentes à soberania e ao funcionamento do livre mercado, a partir do comportamento dos indivíduos. Tal abordagem termina por conferir o status de econômico a algum fator ou elemento apenas se este puder ser reduzido em termos das utilidades ou preferências dos indivíduos, que se expressariam em termos monetários. Sendo o livre mercado a estrutura institucional central da economia neoclássica, é o mercado também a estrutura central em sua abordagem teórica da problemática ambiental. Na atualidade, porém, por pressão das circunstâncias reais, que estão a atropelar a crença de Hayek e Friedman na suposta transparência das informações do mercado, a abordagem ambiental neoclássica acabou por admitir a existência de custos sociais que não se encontram expressos em termos de preços de mercado. Ou seja, aqui o mercado, suposto promotor automático do equilíbrio, falha, ao expressar no sistema de preços apenas determinados custos que efetivamente ocorrem. Tais custos, por se constituírem em valores que aparentemente não incidem sobre as preferências subjetivas do agente que os gerou, são chamados externalidades, no caso, externalidades negativas. Nessa ótica, a autoridade reguladora ambiental deveria simplesmente visar, primeiro, à identificação dos custos sociais externalizados e, em seguida, utilizando-se de instrumentos como taxas ou licenças, levar o agente gerador de tais custos a internalizá-los (princípio do poluidor-pagador). Com isso, supõe a teoria, o dano ambiental em questão terá sido reduzido exatamente ao nível entendido como economicamente ótimo de dano. O problema é saber-se como mensurar esses custos, uma dificuldade que não se resolve a contento no âmbito do mercado. Isso porque um recurso natural, ou um valor ambiental, tem associado a si necessariamente um valor existencial, e este, não sendo uma mercadoria, não se expressa no sistema de preços. Ou seja, o critério de avaliação utilizado pelo individualismo metodológico não guarda por construção compromisso com os requisitos de sustentabilidade e de justiça com as gerações futuras. Em contraposição à abordagem neoclássica, tem-se, como resposta epistemológica e ética, ao mesmo tempo imprevista e desejada, à agressão ambiental generalizada, a atualização de uma perspectiva que migra da visão que assume o locus econômico como formado pelo locus dos indivíduos, para o reconhecimento da centralidade da interação indivíduo-meio e dos valores comunitários. E, ao se eleger essa interação como o valor-referência da existência humana, subverte-se em decorrência a própria acepção tradicional de epistemologia, pois de agora em diante a racionalidade instrumental, responsável pela fragmentação artificial do conhecimento e pela correlata fragmentação artificial da realidade, não poderá mais dissociar-se da axiologia, ou da ética e os demais valores humanos. Tal perspectiva encontra suas fundamentações nas elaborações da Economia Ecológica e suas variantes. Resumidamente, destas têm-se que as pessoas - os movimentos sociais, as ONGs e as instituições - constituem, juntamente com o mercado e o Estado, o locus social, econômico e cultural, que é indissociável do locus existencial, da mesma forma como são indissociáveis as interfaces de um determinado ambiente. O próprio mercado não é um fato estritamente econômico, ou natural, mas uma instituição humana, uma construção social e cultural que depende de leis e normas para seu funcionamento. O mercado, com seu sistema de preços, e os indivíduos, com suas preferências, constituem por certo importante elementos, mas os elementos que importam não são apenas esses, quando se considera o aspecto da exigência ética de sua integração. A contribuição específica da participação comunitária no modelo consiste em impedir que ele se dissocie - alçando vôos auto-suficientes e alucinados, a exemplo de orelhas que se desgarrassem da cabeça -, da prática social, terreno do qual brota a legitimidade não somente das exigências normativas como também da necessidade de sua revisão recorrente. Nessa perspectiva, ao se reintroduzir no espaço da reflexão a interação do indivíduo com o meio, como dimensão ética da vida em sociedade, remove-se o paradigma linear e mecânico, da mesma forma que a univocidade autoritária do discurso que lhe corresponde, e se restabelece o paradigma ambiental, ou o diálogo e a contextualidade, ou seja, o reconhecimento da diversidade real dos pontos de vista, conflitantes necessariamente, mas solidários no espaço unitário que vincula e compromete a todos no desejo comum de se comprazer numa existência sustentável. Restabelece-se, em outras palavras, o caráter substantivo e plural da democracia, a diversidade dos discursos, a afirmação das diferenças na igualdade, ou a Política do Sujeito. Têm-se, assim, a remoção da arrogância e do preconceito e o reencontro entre o cidadão e a pessoa, entre o indivíduo e a comunidade, entre o local e o global, entre a dimensão individual e a dimensão universal, obviamente indissociáveis. Uma abordagem adequada ao desafio da gestão ambiental integrada da Zona Costeira exige, pois, que se superem as concepções tradicionais de desenvolvimento, segundo as quais as comunidades participam como mão-de-obra apenas, para a redução de custos. A participação das comunidades envolvidas, como uma das interfaces do contexto, deve dar-se no reconhecimento da realidade, na análise, na decisão e na ação. Mais importante que tudo, a ação integrada e recorrente, daí resultante, deve orientar-se por uma referência última - o desejo comum a todos de se comprazer numa existência sustentável. O processo de consulta e de participação comunitária é um processo político. Quando um projeto, como o do desenvolvimento sustentável da Zona Costeira, é de natureza contínua e abarca a tomada de decisões em todas as fases de seu ciclo recorrente, transforma-se em modelo de valor exponencial para o fortalecimento da sociedade civil, de maneira democrática e aberta, condição prévia do desenvolvimento sustentável. A participação comunitária significa algo mais que simplesmente ser informada sobre os planos de desenvolvimento ou de se levar em conta os conhecimentos da comunidade local e suas prioridades. Introduzir a dimensão comunitária no modelo significa que a comunidade, os planejadores do governo e os agentes do mercado celebram um diálogo interminável, no qual as idéias da comunidade contribuem decisivamente para configurar e gerir os projetos. O desenho definitivo - se é que existiria - de um projeto deve refletir as respostas da comunidade no processo de diálogo. Esse processo deve abrir espaço para um estilo de participação no qual a comunidade compartilha a autoridade e o poder em todo o ciclo de desenvolvimento, desde as decisões normativas e a identificação dos projetos até à sua avaliação recorrente. Com a inclusão da participação comunitária, o conceito de desenvolvimento converte-se num processo que tem como referência o ser humano e não os objetos, e as comunidades passam a ser enxergadas como promotoras e gestoras de seu próprio desenvolvimento. Aí está o fundamento ético de toda atividade, mesmo quando esta se presume estritamente econômica. Isso é dizer que o desenho da gestão ambiental tem como ponto de partida a definição de critérios de sustentabilidade e de justiça com as gerações futuras, tanto quanto isso seja possível. Tais critérios são definidos, analiticamente, do ponto de vista técnico-científico, determinando-se as condições técnicas para a sustentabilidade, e do ponto de vista social e cultural, reconhecendo-se o compromisso ético com as gerações atuais e futuras. Na realidade concreta, porém, esses processos, indissociáveis embora distintos, por definição, dão-se a um só tempo numa mesma perspectiva unitária. Dados tais critérios, a análise deverá então identificar o vetor de valores, monetários e não-monetários, confrontando-os. Um exercício necessariamente conflitante. Mas a realidade é assim, e não há outra. O desafio é, pois, auto-recorrente: o enunciado do problema, por definição, consiste na delimitação de suas fronteiras, ao mesmo tempo em que as fronteiras têm a delimitação que a resolução do problema requer. Em razão disso, ao contrário do que pretende o individualismo metodológico, a solução nunca é completa, para a nossa sorte: assim temos a oportunidade de rever as próprias decisões por ocasião de uma percepção mais abrangente e integrada da realidade. ** A quem me acusasse de relativista, cético ou cínico, responderia que a existência é valor, uma normatividade. E aqui remeto o leitor à obra de Georges Canguilhem, que sigo de perto nesta exposição. A normatividade designa aquilo pelo qual o ser humano vincula-se a seu meio, tornando-se sujeito do meio graças à eleição de valores mediante os quais ele transforma o meio em obra sua. A normatividade subentende, assim, a criação de normas pelas quais o ser humano se mantém e se individualiza. O ser vivo, e o ser cultural, não sofre passivamente o meio no qual se encontra. O comportamento vegetal, animal ou humano (biológico e cultural) não é uma resposta mecânica aos constrangimentos do meio. O ser vivo contribui para constituí-lo, e essa solidariedade no meio é o que caracteriza e constitui a normatividade orgânica e cultural. O ser vivo recorta do exterior aquilo que favorece o seu desenvolvimento, caracterizando-se, dessa maneira, por sua diferenciação. Essa atividade, de manutenção e de produção, atualiza valores biológicos, ou culturais, específicos e particulares. Assim, os termos de obra e de eleição de valores precisam a natureza da atividade. A vida tanto da ameba quanto do ser humano consiste em preferir e excluir. A regulação do organismo, ou da cultura, que é a possibilidade de harmonizá-los com o seu meio interno (harmonia = conflito e solidariedade), valoriza as condições de sua co-evolução, ao mesmo tempo em que desvaloriza as perturbações recorrentes do meio, que o expõem à destruição. Assim, todo ser vivo (ou cultural) individualiza-se pelos valores que atualiza. A normatividade especifica a criação viva de valores que tornam possível a co-evolução do ser vivo e do seu meio, ou seja, seus estados de mudança. O ser vivo e o meio são, pois, processos paralelos e autônomos, não porém auto-suficientes. É a sua interdependência que define o seu contexto, de que é expressão a sua atividade co-evolutiva. Invenção normativa ou normatividade inventiva é como se definiria a existência: instituição de normas valorativas dos fatos com vistas à sua afirmação e defesa contra os obstáculos que se opõem à sua preservação e expansão. A normatividade exprime uma atividade fundamental da vida em todos os seus níveis, para lutar contra o que lhe é prejudicial. Como valor, a normatividade orienta o esforço do ser vivo de se diferenciar, tendo em vista a sua afirmação, como preservação e desenvolvimento, e a sua rejeição a tudo o que se define como negativo, como a doença e a ideologia, que se lhe contrapõem. Assim, a normalidade da existência, ou seja, as configurações contextuais que assume ao lidar com o patológico, vem de sua normatividade. "A norma, para o ser humano, é a capacidade de mudar de norma" (Canguilhem, G., 1966). Em contraste, a doença define-se pela sujeição da existência a uma norma única. Uma norma única de vida submete a existência a uma privação. Já a normatividade, ou a capacidade de criar novas normas, assegura-lhe positivamente a possibilidade de mudar. É nisso que consiste a normalidade homeostática, na reposição de um novo estado do problema, estimulada pelos desvios normativos da própria existência. O estado patológico, sob esse ponto de vista, é o debilitamento de seu poder normativo. A criação de valores pressupõe a existência, como manifestação afirmativa. Seria o que em Nietzsche corresponde à vontade de potência, que o leva a pensar a existência como desejo, ou apetite de nutrição, processo que não pode ser enxergado senão como criação, no sentido de seleção, de escolha e de sua atualização (Le Blanc, G., 1998). "Viver é já valorar. Toda atividade implica uma avaliação, e a vontade está presente na vida orgânica" (Nietzsche). O ato de nutrição pressupõe que o organismo seja capaz de apetite, de avaliação de possibilidades de escolha que permitam satisfazê-lo. O ato de nutrição seria, assim, um ato normativo, que expressa a capacidade criativa do organismo. O corpo vivo, ou a existência humana, torna-se assim o centro de referência absoluto em relação ao qual a vida pode afirmar o seu valor criativo. É a sua criatividade que tornou possível a diferenciação do ser humano quanto á sua participação distinta, porém includente, nos valores. Embora os processos de cada pessoa sejam analiticamente distintos, independentes e paralelos, em razão dos diferentes valores, eles não são auto-suficientes. Todos encontram-se embebidos numa mesma referência, o desejo de se comprazer na existência, desejo indissociável de outrem, pois ele somente se reconhece na sua alteridade. Podem dividir-se os papéis, não a singularidade humana. A quem me acusasse de reformista, por promover o reconhecimento da aproximação legítima das partes como condição para se poder explicitar o conflito, enxergar melhor a realidade e ampliar assim o espaço de negociação, respondo com o exemplo do banco Grameen e com a analogia da transição do Império para a República. Diferentemente do que ocorre na linguagem binária, na qual o Zero toma o lugar do Um, sem tensão conflitante e solidária, um regime não remove o outro de modo súbito a abrupto. A transição do Império para a República ocorreu porque ambos os regimes contagiaram-se na sua metamorfose, sem se confundirem um ao outro. O que é a metamorfose da pupa e da borboleta (para não falar de outras fases larvais de seu ciclo de vida)? São duas fases distintas, opostas e complementares da vida do inseto, que interagem na sua co-evolução, de acordo com uma referência. A pupa, na condição de pupa, desenvolve-se para permanecer no que é, obedecendo a regras de organização que fazem dela uma pupa; a borboleta procede do mesmo modo. Ambos os respectivos sistemas de regras, característicos de cada fase, opõem-se um ao outro, e essa oposição caracteriza a sua distinção. Como, então, explicar a transição de uma forma de vida para outra? Como é possível transgredir pela repetição e repetir pela transgressão? A resposta é a seguinte: pupa e borboleta, ao mesmo tempo em que obedecem aos respectivos sistemas de regras, orientam-se no seu ciclo de vida por uma referência comum, feita de normatividade e inventividade, ciclo de vida cujo sistema respectivo de regras opõe-se e não se opõe a um só tempo aos sistemas de regras da pupa e da borboleta. Quem preside, instituindo, o espaço conflitante e solidário das partes, é a referência. |
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