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La insignia
23 de setembro de 2002


Elogio da incerteza
ou como evitar as linhas retas para andar direito (I)


Nivaldo Tetilla Manzano
La Insignia. Brasil, setembro de 2002.


"A verdadeira oposição social elementar deve ser buscada no interior de cada indivíduo social, sempre que ele hesite entre adotar ou rejeitar um modelo novo que se lhe oferece, uma nova maneira de falar, um novo rito, uma nova idéia, uma novo estilo de arte, uma nova conduta. Essa hesitação, essa pequena batalha interna, que se reproduz aos milhões de exemplares a cada momento da vida de um povo, é a oposição infinitesimal e infinitamente fecunda da história; ela introduz na sociologia uma revolução silente e profunda".
-Gabriel Tarde, As leis sociais-


O humorista filósofo -ou filósofo humorista- Luís Fernando Veríssimo expõe numa de suas crônicas o drama interior que dilacera o turista: enquanto o seu paladar, aventureiro, quer viajar em busca de novos sabores, os seus intestinos, sedentários, querem permanecer em casa. Eis o conflito que, se resolvido em proveito excludente de um lado ou de outro, além de eliminar o outro - a parte que teria perdido a contenda - elimina ipso facto a própria pessoa do turista: não há como viajar desacompanhado de ambos.

Assim é que a pessoa do turista, para se exercitar no desafio prazeroso e arriscado de ser turista, precisa necessariamente de seu conflito, assim como a noite precisa do dia, Deus do Diabo e o branco do preto, já que o turista, que preza a si mesmo, não quer desapontar as razões convincentes de seu paladar nem as razões legítimas de seus intestinos. Ele as acolhe em si como um pai ao filho, como expressão de si mesmo, outros modos de ser si mesmo, da complexidade da pessoa que ele é. Partes conflitantes, é verdade, mas é nelas e graças ao conflito entre elas que ele se reconhece, a despeito das aparências, que podem dissimular cólicas nos intestinos como resultado de mudança na dieta, ou protestos do paladar por não suportarem mais comer a mesma coisa. Nessas ocasiões, tem-se a impressão de que o turista será partido ao meio, paladar de um lado e intestinos de outro, e a sua unidade esfacelada, tamanha é a tensão do drama em seu clímax, ponto de ruptura, proclamação da independência, ou revolução, em casos extremos.

Se ele se decide, enfim, viajar, não é porque consegue atenuar ou conciliar os interesses conflitantes, como se acredita, equivocadamente, a propósito dos pactos políticos ou dos desentendimentos entre casais. Longe disso. Pois as partes conflitantes seguem junto, ainda mais teimosas que antes na sua oposição: os intestinos ainda mais temerosos de novas experiências gastronômicas, e o paladar ainda mais desejoso de provar novos sabores. Se a pessoa do turista se dispõe a viajar, é justamente por motivo inverso: é a exacerbação do conflito, no transbordar da crise, que o estimula a partir. E se ele embarca inteiro, paladar e intestinos juntos - sistemas racionais logicamente opostos entre si - é porque consegue enlaçá-los na solidariedade que os une - ele próprio, o sujeito, que não é intestino, isoladamente, nem paladar, isoladamente, mas ele mesmo, que é também um outro de si mesmo quando acolhe em si, isoladamente, as razões de seu paladar, e as razões opostas de seus intestinos. Assim, pode dizer-se, com igual pertinência, que tanto o turista é a expressão solidária de suas partes correlatas em conflito, quanto o conflito entre as suas partes correlatas, ou interfaces, é a expressão solidária do turista.

Além de humorista, é preciso ser filósofo, o que no fundo é a mesma coisa - um ativista geralmente mal-sucedido na prática de remoção de emplastros mentais -, para reconstruir de forma complexa o drama interior do turista, que não se dissocia do drama inteiro do Pensamento, em toda a sua história ocidental, da Grécia antiga aos dias de hoje. Pois essa história não é outra senão a da dificuldade - da obstrução ideológica - de se assumir, num mesmo espaço de possibilidades, a diversidade e a unidade, o conflito e a solidariedade. Cimentar nos alunos essa obstrução é parte essencial de seu desaprendizado formal no sistema público e privado de ensino. Ou, então, como explicar o sucesso retórico da cibernética e das ciências da computação, que vivem de assegurar que tudo no universo pode ser dividido ao meio, Zero de um lado e Um do outro? Ou que o espaço da política internacional possa ser dividido, como querem os EUA, em terroristas e não terroristas?

Como se sabe, a história da parceria entre o conflito e a solidariedade, recalcada como obscurantista desde o início da idade moderna, teria começado com o filósofo Heráclito, "o obscuro", como se tornou conhecido, aquele do rio de águas que não banham duas vezes o mesmo banhista. Na verdade, ele somente parece obscuro a quem é obscuro em relação a ele. Heráclito, na filosofia, retomando o que Homero fizera antes na poesia, ainda semi-embebida no mito, foi o primeiro a advertir de que não se podem separar os opostos na sua unidade, sob o risco de se perder o sujeito, o sujeito da história, o turista de Veríssimo.

Na sua Odisséia, Homero ilustra a mesma idéia de mil maneiras. Assim, por exemplo, no episódio de Odisseu na ilha de Ogigia, ele faz seu herói dizer, a um só tempo, não a Calipso, a mais linda das deusas que o queria entre seus lençóis, e sim à Penélope, a esposa que o esperava em casa desde a sua partida para a guerra de Tróia. Sim e não, opostos entre si, unidos porém na unidade da pessoa de Odisseu, suporte e referência dessa oposição - eis para o que nos chama atenção Homero. Da mesma forma, Odisseu faz-se atar com cordas no mastro da nau por seus marinheiros, para não ceder à sedução das sereias, dizendo a elas e a si próprio não, o que se traduzia, no mesmo gesto, em sim, para Penélope, sempre à sua espera. É de imaginar que o desejo de retornar a Penélope intensificava-se tanto mais quanto mais o premia a sedução das sereias, de modo que, se se pudesse eliminar o conflito, Odisseu não encontraria estímulos para resistir à sedução das sereias nem para ansiar pelo retorno à casa. O conflito, sob o enlace da solidariedade, é o gatilho da espingarda de cano duplo que dispara a mudança, no caso, a decisão de dizer não às sereias e sim a Penélope.

Depois de Homero e Heráclito e antes de Veríssimo, Machado de Assis deteve-se em sua ficção a elucubrar sobre o mesmo tema. É o que leio em sua novela "Esaú e Jacó", ambientada no Rio de Janeiro no período de transição do Império para a República. Santos, o protagonista, é ao mesmo tempo barão e banqueiro, papéis opostos entre si, que se digladiam sob uma mesma pele: enquanto o banqueiro quer que a República venha, o barão não quer que o Império se vá. O barão não quer a República, porque esta não lhe reconhece a aristocracia, como símbolo de prestígio, status e poder; o banqueiro não quer o Império, porque este não lhe reconhece o dinheiro, como símbolo de prestígio, status e poder. Longe de eliminar o conflito entre seus papéis, Santos o exacerba, para dele tirar proveito na solidariedade (ele) que os une. Como o exacerba? Exercitando-se, alternada e reciprocamente, no papel de barão e no papel de banqueiro. Assim, por exemplo, ao assumir perante si mesmo, como banqueiro, o papel de barão, ele enxerga melhor os rumos do Império; e ao acolher perante si mesmo, como barão, o papel de banqueiro, ele enxerga melhor os rumos da República. Como o eventual advento da estabilidade na mudança em uma ou outra direção lhe seria favorável, ou como ambos os contextos lhe são favoráveis, Santos oportunista tem os seus pares de sim e não preparados para ambas as eventualidades.

Já um outro personagem de Machado, de vocação sacerdotal e messiânica, caiu na ilusão de que é possível remover o conflito - e assim removeu de si mesmo, no mesmo gesto, a solidariedade. É Simão Bacamarte, o médico cientista, protagonista tragicômico de seu conto "O alienista". Bacamarte, com sua autoridade apoiada em diplomas de doutor obtidos nas melhores universidades de Portugal e Espanha, instala-se na vila de Itaguaí e se põe a separar os seus habitantes em dois grupos, os loucos e os sãos. Iluminado pela fé na sua racionalidade científica, na certeza absoluta do conhecimento, que separa a verdade do erro, acreditava que conseguiria divisar com precisão a linha que separaria a razão da loucura. Como, porém, há sempre alguma pitada de loucura na razão e de razão na loucura, Bacamarte acaba por querer trancafiar a todos no hospício - e somente não completa a tarefa porque, antes disso, trancafia-se a si mesmo, de espontânea vontade, no manicômio que criara. A tragicomédia de Bacamarte expressa a ilusão de que os opostos podem ser separados da unidade que os une.

Disso não se deram conta também as feministas nos primórdios de seu movimento. É o que pode observar-se num episódio recente ocorrido nos Estados Unidos. As marinheiras norte-americanas, que a esse papel chegaram na coroação da luta feminista pela igualdade de direitos no trabalho, uma vez embarcadas no projeto de novos submarinos, recusaram-se, no tratamento recebido do almirantado, a serem iguais aos marinheiros, depois de estes terem apoiado democraticamente, em nome da igualdade, a remoção da discriminação contra a mulher no trabalho. Postados diante de sua igualdade, agora reconhecida, ambos os sexos, com exceção dos almirantes, dão-se conta de suas diferenças, que é preciso respeitar.

A história é a seguinte: o projeto de novos submarinos não reserva espaço suficiente para a construção de dependências sanitárias distintas para homem e para mulher, em razão de na sua distribuição ter-se dado prioridade ao armamento. Com tantos mísseis igualitários a bordo, pouco espaço restou para acomodar as diferenças. Dando-se conta do engodo, agora elas batem o pé perante o almirantado, exigindo em nome da privacidade (diversidade) banheiros exclusivamente femininos, enquanto os marinheiros, em defesa de si mesmos, na afirmação de sua respectiva diversidade, tratam de apoiá-las, sob o argumento de que homem nenhum é de ferro. Os iguais, apoiando-se reciprocamente na afirmação de suas diferenças. Em resposta, o almirantado diz que não se podem confundir as lidas da guerra com as coisas do amor. Se vence o amor, perde-se a guerra.

De fato, o amor não combina com toda dialética de opostos que suprime a sua unidade. No início de seu conto, Machado introduz o problema de Bacamarte, antes que este se ponha a separar a razão da loucura, como um conflito entre a racionalidade científica e o amor. A ciência do erro e da verdade mutuamente excludentes não convive em paz com as manifestações da vida. Se vence a objetividade da ciência sem sujeito (a das partes sem conflito), falece o amor. Assim é que Simão Bacamarte renuncia ao amor de Dona Evarista no casamento, levado por suas convicções científicas. É ele quem o diz: nela interessavam-lhe apenas as suas prendas fisiológicas e anatômicas, intestinos que digerissem com facilidade, uma cabeça que dormisse regularmente, um bom pulso, uma excelente vista e aptidão para lhe dar filhos robustos, sãos e inteligentes. E se Dona Evarista não era bem composta de feições, tanto melhor, pois assim "não preteriria os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte".

Atente o leitor desaprendiz para o seguinte: se diante do objeto sobre o qual debruça a sua atenção não reconhecer nele ao mesmo tempo o conflito e a solidariedade, a exemplo de Bacamarte, desconfie de que está diante da própria abstração que construiu, e não diante da realidade que tem à sua frente, uma abstração que o obriga a optar entre a luz e as trevas, sem direito à escolha do lusco-fusco. É o que ocorre ao presidente George W. Bush, por exemplo, quando diz que "Quem não está com os Estados Unidos está com os terroristas", como se a realidade fosse naturalmente dicotômica. Dicotômica é a abstração, que separa vencedor e perdedor, sem se dar conta de que na realidade ambos os papéis podem ter como suporte e referência uma mesma pessoa, um mesmo mundo humano. Razão teve no episódio a diplomacia brasileira ao afirmar, discretamente é verdade, que o Brasil não estava nem com Bush nem com os terroristas. E razão teve também Odisseu, que não abdicou de realizar o desejo de se comprazer na existência: em vez de optar entre o prêmio e o castigo, elegeu como pólos prazerosos e arriscados de sua alternativa a Calipso e Penélope, colocando assim tanto o bem quanto o mal de cada um dos lados, para evitar que na sua oposição dicotômica se eliminassem um ao outro. Assim procedendo, estava convencido de que na realidade não existe situação sem saída. Situações do tipo "ganhar ou perder" existem somente no plano do jogo, que é o plano da abstração. Já no plano da realidade, o problema inverte-se, como se observa no episódio das sereias: difícil é escolher entre as muitas saídas que se podem divisar. Enxergar a diferença entre um plano e outro, para dela tirar proveito, é ser capaz de se reconhecer no contexto, no "aqui e agora". Contextualizar os problemas é uma arte que, infelizmente, não se aprende na escola. Por isso, este livro pode ser considerado como uma introdução aos princípios da contextualidade, e é dirigido a quem está interessado em reconhecer o caráter contextual da existência, para nela se comprazer, com risco porém.

Desconfiado de quem, auto-iludido pela abstração que construiu, pretende que o mundo esteja ordenado segundo um par de opostos excludente, Machado de Assis rejeitou em sua ficção a idéia de um Deus único, criado à semelhança de um G. W. Bush, a ordenar na sua auto-suficiência o mundo de cima abaixo. Em um de seus contos sobre a parceria entre Deus e o Diabo, na construção de uma opereta, o autor de Quincas Borba corrige o mito bíblico da Criação, afirmando que o mundo não teve começo, para se evitar a disputa excludente entre Deus e o Diabo pela primazia na paternidade da idéia. Como Veríssimo, Machado percebeu o risco para a humanidade embutido na idéia de se fixarem hierarquias entre os papéis, fazendo prevalecer a vontade dos intestinos sobre o paladar ou vice-versa. Ou seja, ambos os autores, mais Deus e o Diabo, mais Heráclito, mais Homero e tantos outros enxergaram na pretensão de um Deus egoísta, sádico, vaidoso e prepotente o risco metafórico de se introduzir a tentação do poder possessivo no mundo humano, como réplica caricata do poder divino.

Segundo a alegoria de Machado, a emergência da Criação dá-se no transcorrer de um jogo, no qual os contendores, Deus e o Diabo, iguais e diferentes entre si, se entretêm. De que jogo se trata? Do jogo de remover as regras que eles próprios se dão, pelo prazer de criar outras. Assim, remove-se a fixidez das hierarquias entre os papéis, com a vantagem de poderem ambos se comprazer na exploração da diversidade dos pontos de vista, pois o jogo nunca é o mesmo. Dependendo contexto, mudam tanto as suas regras quanto a posição dos parceiros, quanto o tabuleiro. Divertem-se, desse modo - ao mesmo tempo que estimulam reciprocamente a sua criatividade - , no jogo de criar mundos diferentes, novos modos de perceber o mesmo mundo, para evitar o aborrecimento da eternidade.

Infere-se daí que o desespero da monotonia, da mesmidade, o ódio puritano a si mesmo, o delírio e a violência contra outrem, que a ficção bíblica do monoteísmo estimula, é fruto mosaico do poder hierárquico, impotente e imobilizado na sua incapacidade intrínseca de estabelecer um enlace solidário com outrem, olhar com olhar, como ocorre entre os amantes, para evitar de se reconhecerem como iguais na sua diversidade. Assim procedem todos os que se deixam levar pela ilusão de poder remover o conflito, ou controlar a realidade. Esquecem-se de que quem tudo controla é a realidade, incluída a ilusão de se poder controlá-la. Já no jogo entre Deus e o Diabo, no qual um não consegue impor-se ao outro, em razão do reconhecimento recíproco de sua interdependência, mantém-se o conflito, graças à solidariedade entre os parceiros, que se manifesta na disposição de ambos de continuarem unidos na parceria, assegurando a continuidade do prazer de jogar. Não ocorreria o mesmo no diálogo humano? Na arte? No amor? Na evolução da ciência? Não é o que se passa com Santos, dividido entre as regras do jogo do barão e as regras do jogo do banqueiro? Com o turista de Veríssimo? Com Odisseu, na sua indecisão prazerosa entre jogar com Calipso e jogar com Penélope?

Antes, porém, de ser machadiana, parece tratar-se de uma sabedoria oriental. Pois aprendemos com os orientais que o mundo também não teve começo; é fruto do embate entre forças opostas e solidárias. Os sopros terrestres e os sopros celestes, ao se chocarem, de modo recorrente, provocam turbilhões, que geram um novo estado de mudança no mundo, este estado em que nos encontramos e que mudará outra vez por força de uma nova configuração suscitada pela ocorrência de novos turbilhões. Basta a ocorrência de uma nova idéia, para se recombinarem, de modo diferente, todas as idéias que se tinha na cabeça.

O resultado prático e a vantagem dessa visão de mundo é que o sábio chinês desconhece o que seja um herói, um especialista, um self made man, à moda ocidental, um sujeito auto-suficiente, que se acredita capaz de crescer à força de puxar para cima os próprios cabelos e dobrar o mundo à sua vontade - controlar a realidade. Da mesma forma, desconhece o equívoco simétrico - a passividade do ser humano, que se deixaria manipular, como uma marionete, seja pelos seus intestinos seja pelo seu paladar. Enquanto o herói ocidental, à moda de Dom Quixote, levanta-se contra seus moinhos de vento, para se fazer notar, o sábio chinês mantém-se discretamente atento ao entrechoque dos turbilhões, na expectativa de divisar o momento favorável que lhe permita reinstalar-se no novo estado de mudança do contexto, para tirar proveito da sincronia que assim se estabelece, como o faz o surfista diante das ondas do mar. Assim como o surfista não se enxerga como um Deus, capaz de converter o mar em geléia, em proveito de sua imperícia e desgraça de sua destreza, também o sábio chinês, por não se enxergar como um Deus, capaz de separar a luz das trevas, instala-se no lusco-fusco à espreita de um estímulo do contexto, por definição em estado de mudança, que o induza a responder ao desafio.

O herói ocidental, o líder auto-proclamado, tem por vocação remover o conflito, rachar as águas do mar ao meio, para que seus liderados o atravessem sem molhar os pés, como o fez Moisés, ou parar o sol, para fazer a vitória pender para o lado do povo eleito antes do anoitecer, como o fez Josué na batalha de Jericó. Eis o fundo judeu-cristão do imaginário ocidental, que irá inspirar o individualismo liberal e a sua álgebra de Boole. Quando se converter em cientista, na idade moderna, a mesma figura mitológica, dotada de poderes demiúrgicos, criará a Física, com a sua lei da ação e da reação, das forças iguais e contrárias, a lei dos corpos que não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, etc. Criará depois, na Revolução Francesa, a guilhotina, para separar a Razão das paixões. Decapitará o rei, que encarnava o poder divino, para distribuí-lo em migalhas aos súditos, agora transformados em cidadãos, estilhaços do poder divino, divididos ao meio no seu ressentimento, por não serem rei nem Deus. Auto-iludidos diante da facilidade com que assim se poderia controlar a realidade, os novos cidadãos cuidarão de zelar pela afirmação do caráter universal de tais abstrações, estendendo a legitimidade de sua aplicação a todo o universo, ignorantes de que paladar e intestinos, forças iguais e contrárias, além de ocuparem o mesmo espaço, na pessoa do turista, não se equilibram nem se eliminam uma à outra. A prova é que o turista parte em viagem.

Diferentemente dos judeus e cristãos, os orientais jamais conheceram um Deus de barbas longas, a conferir a mesma potência de seu poder transcendente e soberano às coisas, como o fez Newton, num supremo gesto de rendição da inteligência humana à própria obra, impedindo-a assim de voltar a criar. A realidade primordial da cosmovisão chinesa não é uma coisa, e sim um estado de conflito entre sopros celestes e sopros terrestres, solidários na recorrência de seu entrechoque. Não sugere isso que Norbert Wiener, da cibernética, o médico Guilhotin e Boole se tenham deixado levar pelas implicações do monoteísmo, matriz do poder hierárquico?

O momento da sujeição do destino humano à lei da coisa, que o submete tanto quanto a lei da gravidade obriga a maçã a cair do galho, pode associar-se a qualquer instante alienado da existência, à alienação promovida pelo capitalismo ou à alienação de toda hora. Historicamente, o seu marco inaugural teria sido o Neolítico, período que deu início à civilização sedentária, hierárquica e letrada. Ou, então, teria sido o advento do monoteísmo, ou de um dos filhos diletos de sua moral do dever-ser, o puritanismo. O certo é que a prevalência da lei da coisa - dos intestinos ou do paladar sobrepondo-se soberanamente à vontade da pessoa do turista - é indissociável de uma ontologia ou de um Padre Eterno, que se teria antecipado ao ato criador, ao privar o Diabo e o ser humano do prazer de desenhar o seu destino a gosto - em contexto, obviamente: de acordo com as regras do jogo que estiverem jogando.

É desse modo que enxergam o mundo os olhos do artista criador. A arte é também um jogo de criar regras, novos modos de se enxergar e sentir o mundo. A realidade que se exibe ao olhar do artista apresenta-se como uma diferença em relação à realidade costumeira, enxergada pelos olhos do hábito. Uma nova obra de arte é uma nova maneira de se conceber e sentir a realidade, que enriquece a percepção que dela se tinha. Enriquece tanto em razão da continuidade com a visão anterior ao seu advento quanto em razão de sua descontinuidade em relação às obras anteriores, introduzida pela proposta de uma nova visão. Continuidade e descontinuidade, disputando um mesmo espaço conflitante e solidário de possibilidades, é o que caracteriza a tensão dramática entre o paladar e os intestinos. Se se remover uma ou outra, suspende-se o drama, o prazer e o risco, e perde-se o turista.

O mesmo ocorre quando do advento de toda inovação. Ao contrário do que supõe a linguagem binária da cibernética, toda inovação é percebida no espaço unitário que compreende ao mesmo tempo o seu lado novo, ou estranho, e o seu lado familiar. Não existe a possibilidade cibernética de se reconhecer algo que seja absolutamente estranho. O objeto da percepção é, por definição, diferencial. O novo somente é percebido como novo sobre o pano de fundo contínuo do que não é novo; do contrário não se saberia dizer em que consiste a novidade, a diferença. Assim, por exemplo, para se fazer reconhecer como nova religião, o cristianismo teve de se apresentar - no seu ritual, na sua liturgia, nos objetos de seu culto - revestido de símbolos, gestos e representações do paganismo, para que os pagãos pudessem reconhecê-lo, primeiro como religião, e depois como nova religião. É o mesmo que dizer que a percepção, para se dar conta de que reconheceu algo de novo, precisa incidir sobre um espaço unitário de possibilidades, como é o do turista, que se caracteriza pelo conflito e pela solidariedade entre a continuidade e a descontinuidade. Ocorre descontinuidade quando o paladar pretende instituir, na afirmação individualista e excludente de suas reivindicações perante o turista, a sua oposição lógica (sim ou não) à afirmação, igualmente individualista e excludente, dos intestinos. Ocorre continuidade quando o turista acolhe em si, como um outro de si mesmo, na solidariedade que promove entre os pólos da tensão, tanto os argumentos do paladar contra os intestinos, quanto os argumentos dos intestinos contra o paladar. Observe o leitor o contraste entre o caráter abstrato, lógico (sim ou não) da pretensa auto-suficiência dos argumentos do paladar e dos intestinos e o caráter não-lógico do comportamento do turista - não-lógico, porém, real, pois o certo é que, a despeito da tensão assim criada, ou graças a ela, ele vai partir em viagem. Aos olhos de cada uma de suas partes, consideradas isoladamente, o turista é uma contradição consigo mesmo. É dela, no entanto, ou seja, da unidade de sua pessoa, que ele retira estímulos para se comprazer na existência. Lógico: princípio de identidade (A = A); não-lógico: princípio de equivalência.

Algo semelhante ocorre também a meu amigo Jorge, que é pai, médico, amante, tenista, gastrônomo, vizinho, motorista, entre outros papéis conflitantes entre si que desempenha pelo prazer de fazê-lo, sem deixar de ser ele mesmo. Jorge desempenha cada um de seus papéis de acordo com o seu (deles) sistema próprio de regras, que os caracteriza. Essas regras opõem-se umas às outras, nos seus respectivos sistemas racionais. Assim, por exemplo, o desejo de Jorge de estar na quadra de tênis opõe-se ao desejo de estar no consultório; e os respectivos sistemas de regras não se confundem entre si, a ponto de Jorge embaralhar as regras da gastronomia com as regras de trânsito. Esses sistemas racionais e lógicos são, pois, de acordo com o princípio de identidade, incompatíveis entre si, ao mesmo tempo em que Jorge os compatibiliza na unidade de sua pessoa. Jorge é um sujeito lógico e não-lógico, que respeita e não respeita as regras que se dá, a um só tempo. Não por inconseqüência ou irresponsabilidade, ao contrário. Pode ocorrer que seus cuidados médicos sejam convocados na quadra de tênis, assim como pode ocorrer-lhe tirar proveito da exercitação de seus reflexos como tenista nos momentos em que é motorista. Existe, assim, continuidade e descontinuidade entre Jorge e seus papéis. Se se remover, por hipótese absurda, porém real na ciência, a pessoa de Jorge de seus papéis, ter-se-ão somente descontinuidades - e é a isso que corresponde a noção de indivíduo, ou cidadão, no liberalismo, ou a noção de função em matemática, noção que está na origem da ciência funcionalista, a da estrutura e das funções, ou da ciência sem cabeça.

De acordo com a ciência funcionalista, que contaminou com sua pestilência fragmentária o conjunto das ciências humanas, não se poderia jamais reconhecer a evolução da personalidade de Jorge, que tira proveito de sua interação com seus papéis, mudando em conseqüência a si mesmo e as suas "funções", da mesma forma como não seria possível explicar a transição do Império para a República. Assumindo os papéis de barão e banqueiro como meramente funcionais - ou seja, descontínuos - , eliminando-se a possibilidade de se entrecruzarem no conflito, que tem como suporte e referência o espaço comum da política, estaríamos até hoje contemplando as trajetórias paralelas, retilíneas e contíguas de ambos os regimes políticos, sem a possibilidade de transição de um regime para outro. O que a história mostrou, no entanto, é que a solidariedade que enlaçava o conflito, exacerbando a tensão da transição, somente a tornou possível porque barão e banqueiro (na época, a voz do povo não se fez ouvir), em vez de se tocarem apenas na sua contiguidade, contagiaram-se na sua interação, graças à mediação da pessoa de Santos.

Explico como teria ocorrido o contágio. Ao contrário do que dizem os manuais escolares, não é verdade que o advento da República levou para o museu todos os atributos associados ao papel do barão, já que em seu lugar pontificaria agora o banqueiro. Pois, antes que o barão lá fosse atirado, com as suas vestes rendadas e os expoentes de valor a elas associados, que agora supostamente de nada lhe serviriam, o banqueiro Santos retirou-lhe o prestígio, o status e o poder que elas encarnavam, para juntar a seu dinheiro e, assim poder mandar na República. Tem-se, assim, não a eliminação pura e simples de um papel pelo outro, mas, graças à mediação da pessoa de Santos, uma nova distribuição e recombinação dos mesmos suportes de valor, agora associados a novos expoentes, de acordo com uma nova referência contextual.

A pessoa de Santos é, pois, o locus do enlace, da Política do Sujeito, ou o espaço unitário de possibilidades no qual se exercitam as políticas do conceito, na sua pretensão ilusória de fazerem valer a sua auto-suficiência, assim como procedem os intestinos e o paladar no espaço unitário que caracteriza a pessoa do turista. Assumo didaticamente que a Política do Sujeito está representada, aqui, quanto ao aspecto solidariedade, na pessoa do turista, e as do conceito, quanto ao aspecto conflito, em cada uma de suas partes. Trata-se de uma divisão artificial e canhestra - solidariedade, de um lado, e conflito, de outro -, pois ambas na realidade são indissociáveis, embora distintas. Assim, quando o liberalismo, uma abstração que se pretende auto-suficiente (única e universal), afirma apoiar-se na racionalidade somente, está tomando partido de uma parte apenas, no conjunto dos valores humanos. Toda ideologia é enganosa por ser excludente, porque assume a parte pelo todo. Assim, a ideologia dos direitos individuais é excludente, porque não contempla os direitos coletivos.

A redistribuição, segundo um critério não-dualista, dos expoentes de status, prestígio e poder entre os papéis de banqueiro e barão, leva-nos reconhecer que os limites não são propriedade da realidade, mas das abstrações que construímos para lidar com ela. Toda delimitação de um espaço abstrato, como um papel, ou um órgão, como os intestinos, caracteriza-se por uma certa ordem, que permite distingui-lo de outro espaço. É o que ocorre também com o espaço das instituições sociais, como o conhecimento. Conhecer significa selecionar, classificar, ordenar, arrumar, construir configurações simétricas e estáveis e periodicidades. Selecionar, classificar, etc. significa impor limites a uma realidade que em si mesma é ilimitada.

Nenhuma fronteira que se desenhe na realidade, por estímulo da prática social, é propriedade intrínseca da realidade que, por definição, é indeterminada, não porém desprovida de referência - o desejo de se comprazer na existência. O recorte de um determinado conjunto pressupõe a seleção de um ou mais critérios, para se poder separar o dentro do fora, o interior do exterior. A escolha é necessariamente convencional e arbitrária. Assim, por exemplo, posso incluir a flor rosa no conjunto estético das flores do jardim, ou no conjunto das iguarias comestíveis, ou no conjunto das matérias-primas das quais se extraem aguardente, entre outras possibilidades. A flor rosa é um mero suporte capaz de assumir variações nas suas propriedades de acordo com a variação dos contextos em que ocorre, propriedades que não lhe são intrínsecas, mas são conferidas pela referência do contexto.

Por serem convencionais, os limites podem ser questionados a qualquer momento por quem esteja convencido de poder oferecer delimitações conceituais supostamente mais aderentes à realidade como a está enxergando. Assim, por exemplo, com o advento da biotecnologia, a goiaba vermelha, que era enxergada apenas como alimento - uma "função" até então isolada das demais -, converte-se agora em fonte de carotenóides, de ação eficaz no seqüestro de radicais livres. E assim, remove-se - com a redistribuição dos expoentes de valor, apostos sobre as suas interfaces, entre os usos que nela se divisam -, o biombo até então existente entre a cozinha e a farmácia. Então, o que é a goiaba? Ou o que é ser banqueiro? Ou o que é dinheiro?

Não se pergunte o que é. Impossível de responder antes que se reconheça a referência do contexto no qual interagem, que nos dá a chave explicativa de como se comportam. Com certeza, o papel do banqueiro Santos do Império não se comportava como o papel do banqueiro Santos da República. A coisa em si mesma não se sabe o que é, pois ninguém nunca se defrontou com ela: ao incidir no contexto humano, ou seja, ao se deixar impregnar de algum valor, ela deixa de ser coisa, limitada por definição, para se contagiar do humano, que é ilimitado na sua capacidade de fazer variar, redistribuir e recombinar expoentes de valor sobre esse mero suporte não-categorial, dando origem a infinitos contextos. Assim, a coisa, ou o fato, deixa de ser o "si mesmo", supostamente dotado de limites intrínsecos e fixos, para se tornar a contraface mutante do desejo, testemunha de mil intenções conflitantes, de mil propósitos conflitantes, que atestarão o que se pretende fazer dela na variação infinita dos contextos, de acordo com a variação de sua referência. A figura do banqueiro de hoje, que continua mandando na Nova República, diferentemente de como o fazia na República Velha, não passava de uma função subordinada no contexto da civilização islâmica. Eis o papel de banqueiro delimitado diferentemente em três contextos: em cada um deles interfere de modo diferente e, como resultado singular de suas interações com os demais componentes do contexto, induzirá à geração pelo contexto de estímulos diferentes. E um sapato com barro colado à sua sola é enxergado como adequado no contexto do jardim e inadequado no contexto da sala de visita. Se, epistemologicamente, se separar do sapato a pessoa que o calça, remove-se o conflito e a solidariedade entre seus limites, e já não se saberá dizer como se comporta o sapato fora de contexto - eis o objeto científico da ciência sem cabeça. Assumimos aqui, com tantos outros, que fato e valor, diferentemente do que pretendia Émile Durkheim, não se dissociam, embora sejam distintos. Coisas opõem-se a coisas, na sua relação excludente; valor opõe-se a valor, na sua interação includente. E o caráter includente vem de o valor não se dissociar do ser humano, ao passo que a coisa define-se pelos seus atributos de exterioridade e coerção.

Se Machado de Assis preferiu colocar Deus e o Diabo juntos no ato da Criação, é porque estava convencido de que um único Criador estabeleceria os limites de uma vez por todas, um lugar para cada coisa e uma coisa para cada lugar, deixando o ser humano desencantado, de mãos abanando, sem saber o que fazer de sua liberdade e sem poder exercitar a sua criatividade. Um único Criador oferece uma existência sem risco, mas desprovida de prazer e encantamento, enquanto o que buscamos é prazer no encantamento, ainda que ao preço do risco. Não há prazer ou necessidade de esforço moral algum em se optar entre o Bem e o Mal, entre o prêmio e o castigo. A maçã da ciência também sabe fazê-lo, ao cair do galho dizendo sim, sem risco. Difícil, prazeroso e arriscado é optar entre coisas boas, pois entre o bom e o ruim não há escolha.

Observe, leitor, que é o relativo desconforto em relação ao estabelecido que estimula o cientista, por exemplo, a mexer-se em direção a uma posição mais confortável frente ao seu objeto de estudo, que em conseqüência deixa de ser o mesmo, quando o cientista passa, por exemplo, a enxergar na goiaba não apenas a fruta que alimenta, mas também a fruta dotada de vigilantes biológicos na prevenção do câncer. Qualquer ação, além da científica, tem como resultado a geração de um estímulo que, ao incidir sobre o contexto, induz à mudança nos limites. Assim, uma nova expectativa na correspondência do amor muda o estado em que se encontrava o amante, que mudará outra vez quando de sua realização. Estamos, pois, em mudança permanente de estado na construção e reconstrução prazerosa e arriscada dos limites. O espaço em que isso ocorre é o lócus da auto-recorrência, ou da Política do Sujeito.

***

Antes, porém, de concluir a conversa sobre esta parte do tema, chamo atenção para um outro aspecto, que já mencionei e sobre o qual é preciso insistir. Creio que posso apresentá-lo assim: o paladar sente mais intensamente a sua identidade de paladar, a sua própria delimitação, não quando se recolhe para dentro de si mesmo, isolando-se, como o exige o individualismo metodológico, mas, ao contrário, quando se transfere em imaginação para o lugar dos intestinos, para sentir o que estes sentem como intestinos que são. A identidade abstrata, racional e lógica (A = A), desprovida por definição de diferença, não enxerga sequer a si mesma. Já a identidade real, a do turista inseparável de seu paladar e de seus intestinos, incorpora também a diversidade e, ao faze-lo nela se reconhece. Ao se instalar no lugar de cada uma de suas partes, o turista enxerga-se melhor na sua continuidade como um outro de si mesmo, diferentemente, reconhecendo-se assim na própria identidade, uma diferença.

Quanto mais intensamente Jorge sentir o seu papel de pai no desempenho de seu papel de motorista, e quanto mais intensamente sentir o seu papel de motorista no desempenho seu papel de pai, mais pai e mais motorista será, tudo a um só tempo, para o prazer exponencial de sua pessoa, que será mais intensamente ela mesma, por se reconhecer mais igual e mais diferente de si mesma. Se se estender o exercício, será possível imaginar que quanto mais alguém se exercitar na diversificação e na troca lúdica de papéis, a exemplo das crianças, mais ampliará a sua visão de mundo, mais conflitos enxergará, mais solidariedade promoverá, mais portas de acesso ao mundo se abrirão para ele, mais próximo estará o mundo dele e ele do mundo, mais intensa será a sua comunhão com o universo, na sua identidade e na sua diversidade.

Mas, atenção: a experiência de se aderir intensamente a um papel é enriquecedora somente sob a condição de que aquele que o desempenha seja capaz de tomar distância lúdica dele com igual intensidade. Essa é a questão central em nossa conversa. O ator desempenha tanto melhor o seu papel quanto mais distante e quanto mais próximo dele se coloca. Aprecia-se tanto mais a sensação de saciedade quanto mais se antegoza o sabor do alimento e quanto mais se prolonga a expectativa de saciedade, que estimula o apetite. O amante ama tanto mais quanto mais é capaz de se distanciar de si mesmo e do objeto de seu amor e quanto mais se aproxima de si mesmo e de seu amor.

Quando não consegue descolar-se de seu estereótipo, o papel transforma-se em um consumo doentio de poder. Esse poder emanaria, ilusoriamente, dos estereótipos, um poder ao qual se atribuiria uma força sobre-humana, por não se enxergá-lo ao alcance da possibilidade humana de sua deposição. O papel, imobilizado no seu estereótipo, assim como toda abstração auto-suficiente (Razão, Raça Ariana, Mercado, Estado, etc.) escraviza, enquanto o sujeito, que por ele responde, liberta. Por isso, diz-se que a carreira do poder hierárquico, um papel, tem início com a rejeição de si mesmo, na auto-confissão de impotência - na rendição do papel ao seu estereótipo. É dizer que Durkheim, Hegel, Foucault, Habermas, etc., procedem como a maçã da ciência. Em vez de confiarem à unidade contextual da pessoa a decisão de legitimar os caminhos que escolhe e de agenciar as opções que faz, confiam-na à racionalidade impessoal do papel colado no estereótipo: subordinação da Política do Sujeito às políticas do conceito. O papel, ou a sujeição da pessoa a alguma coisa, é "a caricatura de si mesmo que se leva para toda parte, levando consigo a responsabilidade de nele fazer valer a sua ausência" (Vaneigem, R. , 1967)). Razão tem a pessoa do turista que, ao não se dobrar à racionalidade excludente de seus papéis (as suas partes), mantém-se inteiro, capaz portanto de se comprazer na existência, com risco. Entregue às suas pretensões absolutistas, o papel vampiriza a vontade de viver¨" (Vaneigem, R., 1967)).

Observe-se que a pessoa não se confunde com um realejo. Ela também gosta de música nova. Nela, repetição e invenção interagem. Um gesto, que se atualiza na sua repetição, inova ao se atualizar, pois não há gesto humano capaz de se repetir do mesmo modo. Norma inventiva e invenção normativa são dois aspectos inseparáveis da ação humana. Retomarei essa questão mais à frente. Não existe quem seja capaz de desempenhar o mesmo papel de um mesmo modo e, inversamente, pessoas diferentes desempenham um mesmo papel. Isso é possível porque entre o papel e a pessoa existe uma distancia, a auto-recorrência, como se disse. É dizer que o papel, como representante do estereótipo (o social), e a pessoa que o desempenha (o individual), como seu suporte e referência, integram um mesmo espaço dentro do qual mantêm interações conflitantes e solidárias: o papel repete, e a pessoa que o desempenha inova, a um só tempo.

Não é o papel, isoladamente, que "causa" mudanças na pessoa que o desempenha, nem é a pessoa, isoladamente, que "causa" mudanças no estereótipo, que o constitui como instituição social para uso individual. E, como aqui não funciona o raciocínio por inferência ("se isso, então aquilo"), não é possível saber previamente o resultado dessas interações, pois se é a pessoa que controla a sua resposta aos estímulos advindos do contexto do papel, não é ela que controla, isoladamente, a construção do estereótipo, e sim a prática social. A pessoa de um burocrata, por exemplo, pode assumir o seu papel de modo solícito, displicente, arrogante, distante, subserviente, etc. , dependendo da variação do contexto, que se define como comunicação entre as partes que nele interagem.

É preciso admitir, pois - e isso é de suma importância para a compreensão da Política do Sujeito -, que o papel, a exemplo da deusa Juno, tem duas faces, uma voltada para a pessoa que o desempenha e outra, para o seu estereótipo. Esquematicamente, uma face interage com a pessoa, e a outra, com a sociedade, mediada pela pessoa. O que se enxerga como seu desempenho é expressão unitária de suas interações, impossíveis de prever, embora presumíveis, pelo seu caráter humano. É, portanto, no espaço unitário entre as duas faces que se institui o locus da Política do Sujeito. Se se isolam uma da outra, a Política do Sujeito degrada-se em política do conceito, assumindo uma dentre as muitas de suas formas reducionistas.

O caráter bifronte do papel corresponde à multivocidade do sentido da palavra no diálogo. Cada interlocutor o apreende de acordo com a referência de seu próprio contexto, por definição diversa e una a um só tempo, pois, quanto à sua unidade, é indiscutível que remete à referência comum e última - o desejo de se comprazer na existência. Diz uma piada, maldosa contra as mulheres mas ilustrativa neste contexto, que o marido batia na esposa sem saber porque batia, enquanto a esposa sabia porque apanhava. O reconhecimento do caráter bifronte do papel e da liberdade contextual da pessoa, na escolha da resposta que dá aos estímulos vindos do contexto do papel, é de capital importância epistemológica e política (ética) para a destituição das políticas do conceito, em suas pretensões de auto-suficiência e, inversamente, para a reafirmação da interação indivíduo-meio como locus normativo da Política do Sujeito.

A desqualificação dessa evidência intuitiva, em proveito das idéias claras e distintas, veiculadas pelas políticas do conceito, é responsável, na atualidade, por toda a confusão e pelo enorme quiproquó na discussão sobre as estratégias sociais e políticas de superação do liberalismo e do capitalismo. Limito-me a dar um exemplo, sobre o papel do dinheiro na sociedade atual, como instrumento de mudança social e política, reportando-me a uma experiência de economia solidária, a do banco popular Grameen, de Bangladesh, criado pelo economista Muhammad Junus. O Grameen opera em mais de 40 mil aldeias, das 60 mil do país. O exemplo é ilustrativo da falsa questão dicotômica que costuma alimentar tais debates: o banco Grameen é capitalista ou revolucionário?

A exemplo de todo papel, o dinheiro, como suporte de relações sociais, é bifronte: presta-se a veicular um sentido, que é assumido diferentemente pelos interlocutores nos seus respectivos contextos, de acordo com as suas respectivas referências. A face interna corresponde ao caráter humano de sua instituição, susceptível de encarnar uma diversidade de propósitos; a face externa corresponde ao seu valor monetário capitalista, ao seu aspecto de coisa, como objetivada pelo capital. Para o pessoal do Grameen, a dupla referência, unitária, dispõe-se da seguinte forma: a primeira, que corresponde à sua face interna, diz respeito à promoção humana, mediante a utilização do instrumento dinheiro, atributo diferencial do "negócio financeiro", que é o seu, "negócio" porém não apenas financeiro, nem apenas "negócio", pois sob a referência da promoção humana, que não é a do valor monetário capitalista, o recorte de sua realidade é qualitativamente outro. A segunda, que corresponde à sua face externa, diz respeito às regras de valorização do capital, com as quais a primeira tem de lidar necessariamente nos contextos que os integram, neles interagindo com os demais elementos. Ambas as faces qualitativamente diferentes do dinheiro digladiam-se num mesmo espaço solidário. Com efeito, por parte de Junus e dos acionistas e prestamistas do Grameen, o seu objetivo, com o uso do dinheiro, opõe-se ao objetivo do sistema financeiro capitalista, e o que caracteriza essa oposição são as suas respectivas referências (uma real, como valor humano; e outra vicária, como coisa, no lugar do humano) apostas sobre um mesmo instrumento - o dinheiro.

À luz da dupla referência, tem-se, pois, que ambas as faces opõem-se estrategicamente de modo includente: ambas estão implicadas e interagem num mesmo espaço comum normativo, regras do Banco Central, na condição de capital, por exemplo, e prioridade social, na alocação dos recursos, na condição de instrumento de promoção humana, por exemplo. Do lado do pessoal de Junus, o dinheiro bifronte presta-se tanto a se constituir como suporte das relações capitalistas com o seu entorno capitalista, quanto a se constituir como suporte de suas estratégias de mudança nas relações sociais, culturais e políticas. Prestar-se-á como estratégia de mudança enquanto o pessoal associado ao Grameen conseguir manter o seu caráter bifrontal (coisa e valor humano), frente às aspirações excludentes do mercado capitalista, que quer reduzi-lo a simples coisa (valor monetário capitalista). Esse é o espaço sobre o qual deve incidir a estratégica de transformação. Esse é o espaço real do conflito, e não o espaço dicotômico abstrato, representado pela oposição excludente entre o capital e o seu contrário. Nem somente coisa, nem somente valor-não monetário, mas ambos num mesmo contexto - eis caracterizada a distância. ou a tensão, de que falava acima. Não há por que razão estranhar essa "fluidez": tudo que cai sob a nossa percepção encontra-se no estado de já não ser o que era e ainda não ser o que será. Nessas condições, a despeito da vocação profética do marxismo-positivista, é certo que o desfecho é imprevisível, tanto na perspectiva de um lado quanto do outro. É insensatez sonhar com a ablação artificial da tensão no conflito, como o fazem intestinos e paladar, em favor de certezas, soluções completas, ou ortodoxias, tão puras quanto estéreis. Um século de estratégias positivistas, embebidas num marxismo "à la Escola de Frankfurt", não produziu absolutamente nada, além de redundâncias e tautologias.

Com a migração, de Bangladesh para o Brasil, da idéia de banco do povo, o papel dinheiro perdeu uma de suas faces, aquela susceptível de participar, na sua condição associada a um valor humano, como um dos agentes da metamorfose, para se deixar conduzir pela outra, a coisa, na pressuposição mecânica de que a universalização do acesso ao dinheiro, por parte dos mais pobres, vai prestar-se à indução da mudança social. Refiro-me às experiências com o banco do povo realizadas sob a condução de governos "democráticos e populares" do PT e dos governos do PSDB. Tem-se, assim, mediante o recurso a um mesmo instrumento - o dinheiro -, duas propostas, uma de mudança real, e outra, ilusória, de reiteração ampliada da mesma coisa. Em contraste com a transposição caricata do banco do povo, tem-se no País a experiência transformadora do Movimento dos Sem-Terra, que se vale do espaço institucional assegurado pelo Estado para diversificar os centros de poder e, assim, contê-lo nas suas aspirações anti-democráticas e absolutistas a serviço do mercado. Nas áreas sob a sua influência e resistência, processam-se mudanças sociais e culturais substanciais, tais como novas relações de trabalho, socialização de tarefas familiares e profissionais, distribuição trabalho/equivalente dos resultados, novo currículo escolar, etc. O que caracteriza a mudança de estado de um contexto (problema) para outro não é a natureza supostamente intrínseca das partes, mas o modo como as partes interagem, orientadas por suas respectivas referências.



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