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23 de setembro de 2002 |
Urariano Mota
Não sei se todos se deram conta, mas há cerca de dois meses as santas desapareceram do Brasil. Sumiram. Partiram das terras brasileiras.
É claro que me refiro às santas que apareciam em vidros das janelas das casas, dos hospitais e das igrejas. Elas não falavam, não se moviam, não incandesciam ou brilhavam. Apenas se insinuavam, discretas, em véus azuis onde se adivinhavam, ou mesmo se viam os seus santos rostos. Ainda que discretíssimas, antes que se tornassem comuns, atraíam algo em torno de noventa a cem mil pessoas por dia de aparição. Dir-se-ia, não fossem Nossas Senhoras santas, dir-se-ia que guardavam uma discrição ambígua de casais que se amam à meia-luz, meio ocultos pela transparência de vidros de janelas. Embora a semelhança, se semelhança há, morra aí. Pois enquanto os casais atrairiam os olhos pela transgressão do que se deveria exercer na intimidade, as santas atraíam pelo milagre que é a aparição, em matéria concreta, do que aceitamos e acreditamos, mas jamais de fato vimos. Atraíam como um beijo da Providência em nossa dores. Sabemos todos que não é bom método associar acontecimentos simultâneos a relações de causa e efeito. Assim, por exemplo, se às 5 da tarde o trem passa, não é sensato atribuir-se à passagem do trem a indicação de 5 horas em nossos relógios. Mas acontecimentos simultâneos não podem ter sua existência desprezada, até mesmo em razão da substância, da carne e músculos que dão a uma quadro que de outra forma seria abstrato. Portanto, lembremos. As santas apareceram no Brasil em julho, exatamente à época em que os jornais punham em manchete: "O País Treme". E isto queria dizer que o dólar havia quebrado a barreira de 3 reais, que as bolsas despencavam, que o chamado risco-país, a desconfiança do mercado internacional em relação ao Brasil, aumentava. A Argentina vivia uma onda de saques, o Uruguai seguia-lhe o caminho, e não havia por que não esperar que o Brasil fosse o próximo, imediato, caindo como cai e desaba um gigante: num desastre, um baque colossal. Então as santas vieram. Sem aviso, sem alarde, calmas, suaves, azuis. Respeitosamente, maravilhosamente começaram a ser vistas, entrevistas, de perfil, nos foscos dos vidros que faziam adivinhar os seus rostos. De que valiam as opiniões de físicos e químicos, que sempre existiram, e por isso apareceram, que valor possuíam juízos de especialistas em vidro, que, embora desconhecidos, existem, e por isso também apareceram? Para quê ensinamentos de transformações de minerais, se o vidro, nessa transformação, guardava e gostava de guardar a paz e a serenidade do azul? E se essas transformações não são nenhuma novidade, por que somente em julho elas se fizeram da cor e do perfil da Nossa Senhora Virgem Maria? As santas que toda a gente desejava, e deseja, toda a gente, do povo mais crédulo aos indivíduos mais incrédulos, inclusive os ateus cerradamente das coisas do céu mais descrentes, é aquela Senhora que nos conduza nos momentos de angústia, danação e sofrimento. Que nos dê a paz na tempestade. Que tenha mãos e dedos suaves como bálsamo para nossas feridas. Que, mesmo posta de perfil, só busto, ainda que sem mãos, possua um olhar de agasalho, e seja norte e bússola quando não mais sabemos para onde ir. Que nos fale, em silêncio, para o que dela precisamos. Que nos obre o seu milagre tão-somente pela sua muda presença. Ela, em silêncio, é mais sábia e plenamente amorosa do que se falasse ao mundo. Assim posta, calada, ela abriga todos os desejos irrealizados. É um, é o enigma que se resolve na felicidade. Assim como o encanto que não se quebra enquanto a mulher idealizada não fale palavras terra-a-terra de todos os dias. E que voz ela poderia ter, para que expressasse os sentimentos e as carências de toda a gente? Que entonação deveria, para ser o porto da gente que dorme em pé à espera, pela madrugada, de um ônibus que não vem? Que altura alcançaria para chegar aos com sapatos e aos sem sapatos, aos meninos que aspiram e comem cola, aos loucos e aos loucos que, não lhes bastasse a loucura, se embriagam e falam palavras esdrúxulas com uma cartola na cabeça? Que timbre para atingir aos doentes sem remédio de todos os cânceres, aos com roupa e aos sem roupa, aos empregados como escravos e aos sem emprego, aos que moram em barracos e aos que dormem na rua, aquecidos por papelões e folhas de jornal? Que instrumento vocal, enfim, para falar a toda miséria humana e material, dos que se matam para não morrer aos que matam porque a vida se revelou absolutamente inútil? Uma polifonia era mesmo que nada. Então é natural que ela sintetize tantas vozes e espalhe a graça do silêncio, que faz a voz do vazio de cada peito órfão. Podemos até imaginar, nas circunstâncias do seu aparecimento, as palavras enunciadas na compreensão dos que a viam no azul dos vidros das janelas: "Filhos mui amados, retomem a esperança. Sossegue toda a agitação feroz e sem finalidade. Saibam que sempre será possível a sobrevivência, ainda que por vezes percam a altiva dignidade. Quando nada mais lhes restar, saibam que o assalto a quem os subjuga é por Deus abençoado. Se ondas mais fortes de desemprego se anunciam, mais formas de emprego, de legítima esperteza, rebentam, nascem e crescem. Se não têm casa, se possuem como teto apenas o céu estrelado, invadam os edifícios onde o homem não habita. Tomem os lugares dos ratos e ratazanas que fazem ali a sua morada. Se não têm terra, tomem o lugar do mato e da urtiga que povoam essas terras de ninguém. Em lugar do desespero ponham a serena decisão que descobre os caminhos não permitidos. A sobrevivência dos justos é a nova ordem. E os justos são vocês, que pastam sem feição de humana gente". Em palavras mais práticas, traduzidas para um discurso menos solene, assim seria a compreensão: "É preciso mudar, urgente! Pra começo de conversa, farei surgir 8 milhões de empregos. É preciso salvar o futuro deste país. É preciso evitar que nossos filhos mais jovens caiam no crime. A miséria que todo povo sofre tem séculos de existência. Mas hoje se agravou, sem freios e sem governo. É preciso levar comida, urgente, para 50 milhões de brasileiros. Vou começar a reforma agrária, de verdade, para que a paz chegue aos brasileiros do campo e da cidade. E não só: farei surgir mais casas, para todo o povo pobre, casas com água, com luz, de graça, para quem não pode pagar. E principalmente: o Brasil terá que deixar de ser o país da especulação financeira, o Brasil passará a ser, urgente, o país da produção. Acreditem, tenham fé neste país. Paz para todos os brasileiros. Paz, justiça, sem terras ociosas. Terra para quem nela trabalha. Ó Pátria amada, Brasil". Para quem não percebeu, nos dois últimos parágrafos operou-se o milagre da transformação das palavras pressentidas da santa para o discurso dos candidatos a Presidente da República na televisão. Em ambos instaura-se a esperança. Coincidência ou causa, o fato é que nesse período da propaganda eleitoral, que anuncia um Brasil de mudança, as santas desapareceram das janelas. Coincidência, digamos. Mas ainda aqui se impõe uma reflexão. Se a Nossa Senhora adivinhada, querida, somente existir nas reações químicas dos vidros, será terrível que o desejo humano de suas palavras não se cumpra no governo do próximo presidente. Terrível. O sonho é sempre irmão do pesadelo. |
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