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La insignia
17 de setembro de 2002


O agente


Urariano Mota
La Insignia. Brasil, setembro de 2002.


Essa arcada dentária, de alvos e salientes dentes, ajudou os familiares a reconhecerem o seu corpo. Uma semana depois, Vevê se achava na mesa do necrotério, irreconhecível. O que era o seu sorriso formava uma careta.

Délio não teve remorso. Nunca o teve, digamos. E como os termos são impróprios quando buscam a sua pessoa! Délio comeu e bebeu com apetite no dia em que Vevê estava sendo moído. "Rotina", ele se dizia, afastando de si aquela visão, num restaurante italiano em Boa Viagem. Quebraram as pernas de Vevê, ele soube, depois. "Não precisavam chegar a tanto", reconheceu em voz baixa, no outro dia. Na ocasião do restaurante, Cíntia já havia sido presa, e também era mutilada. Ele a viu, antes. Sua imagem voltava ao prato, como uma mosca persistente. "Se eles colaboram", dizia-se, fazendo uma rotação no garfo, "tudo vai bem. A escolha é deles". E entrava na sua segunda pessoa: "Nós, nós ainda lhes damos uma chance. Do lado de lá não teríamos nenhuma. Eles nos executariam, com certeza. Ora ora". E mastigando o bocado do macarrão suculento, combinado ao travo do vinho, ao lhe voltarem à lembrança: "Garotos, é a guerra. Nascemos e morremos. Antes ou depois. Morremos por acidente ou por escolha. Velho aqui ninguém fica". E embora não desejasse, ele se dirigia às vítimas emparedadas lá no DOI, como se pudesse vê-las de braços erguidos, penduradas em algemas, à mercê do seu olhar de misericórdia: "Garotos, escolham. Não fui eu quem os chamou para essa vida. Se colaboram, podem comer ao meu lado". Bebia devagar, degustando. "No Chile bebe-se melhor vinho". Délio não estava feliz, nem infeliz. Sentia-se tão-só um pouco aliviado, por haver cumprido mais um importante ponto do seu dever. Nele não havia crueldade, prazer perverso por aqueles dois mortos. Ele não seria jamais a mão que executa, "isso nunca", ele recuaria, nauseado.

Assim como passamos pelo cemitério e abstraímos o defunto, assim como vemos defuntos e abstraímos os nossos mais próximos, assim como dos mais próximos defuntos abstraímos a nossa própria morte, Délio se retirava daqueles assassinatos sem mancha de sangue, asséptico, tendo daquele dia de cores fortes apenas a visão do amarelo, do aroma, do seu macarrão. "Cozinha-se bem aqui. Chega mesmo a ser bom". Ele não tinha do horror o testemunho do fato, os corpos de suas vítimas no necrotério. Que não via como suas. Eram seres preferenciais, de vontade própria: "eles escolheram. Não fui eu." De um ponto de vista técnico ele estava bem aparelhado. Ele se julgava um profissional, com a originalidade de ser também um artesão de gênio. Ao esmero técnico das peças que ele fornecia à repressão ele chamava a sua moral. À "inteligência" (uma dignificação da farsa) ele não faltaria. A essa inteligência ele guardava o dever.

Claro, aproximemo-nos, Délio era um ser emparedado. A liberdade chegava para ele como um ir e vir num cerco. À falta de opção do poço onde caíra ele chamava a sua opção.

Quando foi preso, entre a agonia de sua morte física e a delação, ele optou pela vida, afirmava. Chamemos as coisas pelos nomes. E nos perdoem se fazemos uma dissecação a seco, sem empatia. Délio não chegou a ser mutilado, queremos dizer, de um ponto de vista físico. Quando foi preso, ele não chegou a ser torturado por instrumentos mecânicos, elétricos ou naturais. Ele sofreu a ameaça, ele viu a sombra de punhos fechados, ele ouviu berros e gemidos de indivíduos agonizantes. "Perderam o senso, de boca fechada vão descer direto para os infernos", ele se disse. E resolveu colaborar. Durante o interrogatório ele não atravessou o processo, gradual, de outros presos em queda: descobrir primeiro o descoberto, descobrir depois o menos importante, falar o importante misturado a falsidades, até o último ponto de abrir nomes de militantes, quando eles já houvessem ganho tempo para uma evasão. Délio foi reto para o abismo, enquanto pensava em bordejá-lo. Falou. Falou o que lhe ordenaram e o que não lhe ordenaram, até como uma prova, um selo valioso e rubricado de autenticidade. Mais. Vendo o sofrimento que o esperava nos penhascos, resolveu fazer das pedras uma prazerosa serra. "A desonra", ele se disse, "só ultraja se for pública". E resolveu colaborar, para a sua melhor segurança, daquele interrogatório para a frente. Como um duplo, "um agente da inteligência", ele se cumprimentava. Claro, a sua resolução só foi possível, e nisso ele não foi o único responsável, a sua resolução só se tornou viável porque ela era necessária, desejada, pelos órgãos de combate à subversão. "Sou um homem deste momento. Em mim se encontram a vontade e a história", ele se disse.

"Eu nada mais posso fazer", às vezes, como que desalentado ele se afirmava. E isso queria dizer, por um lado, que braços e peitos de mortos ele pisava nos lugares por onde ia, e por outro lado também queria dizer que as mortes se processavam independentemente de sua vontade. "Não sou eu quem os mata. Jamais levantei, jamais levantarei a mão para bater num só preso. Eles se matam. São intransigentes, sectários, fanáticos. Mesmo sem a minha presença eles morreriam. E depois...". Délio arrota, e isso é um alento de alegria, na medida em que desprende os gases, e sabe, e sente-se forte, em bom estado e vigor. O arroto vem como uma conclusão de corpo e alma, um gozo que atinge até o seu calcanhar, que distende: - "e depois, era eu ou eles. Foram eles. Estou vivo e belo". Ele sorri, olhar vago pairando sobre as mesas, sorri de lábios finos para o mundo em torno do restaurante, enquanto o seu mundo íntimo gargalha. É uma gargalhada muda, sem antecedentes ou móvel cômico. É uma gargalhada sem gosto sinistro, porque os corpos disformes no necrotério não são corpos de coração e juventude, são corpos dos seus inimigos, a quem ele derrubou com argúcia fina. É uma gargalhada que se mostra como sorriso por modéstia, de caçador que não pode trombetear o feito. Ninguém sabe, poucos sabem que ele é quem, saindo da camuflagem, vai até a clareira, prepara a rede, faz-se de selvagem, traz as feras como presas. "Eu não tenho culpa. Faço o meu trabalho". Délio acena para o garçom, chamando a conta. Prepara-se para deixar uma feliz gorjeta. "Os garotos ... não sabem as boas coisas que o dinheiro dá. Burros". Como todo cínico, Délio achava que tinha o patrimônio exclusivo da inteligência. "Isso eles não querem aceitar: por dinheiro os homens se trocam, se vendem. Por um pouco de dinheiro eu posso ter qualquer rapaz ou mocinha a meu serviço. O dinheiro compra vidas, prazer. É tão bom...". E sorri, com mais franqueza, nos seus belos e caros dentes. Passará um tempo inativo, de férias, bem longe do Recife. "É uma pena, a cidade não é má." E sorri, mais uma vez: "Que cidade é má quando temos um bom trabalho?".

Ergue-se, vai até a calçada, a passo incerto, acima bons centímetros nos seus sapatos erguidos. Não sabe se vai direto para o hotel, telefonar, refazer os contatos, ou se passa antes na praia. Não sabe também que face vestir naquela tarde: do revolucionário em fuga, ou do agente que terminou na praça a sua tarefa. Prefere pôr máscara dividida ao meio, cuja metade tomará conta da cara, a depender das circunstâncias que se apresentem. No rosto ele sabe partir-se, o problema é o caminhar, é o seu corpo, que terá de ir do enrijecido heróico ao mole ladino, sem pressa, do agente de inteligência. Súbito, na areia da praia, vindo em sua direção, ele vê um indivíduo com um aspecto conhecido: "Mas ele não morreu? É ele ... parece... é ele! Porra, que é isso?!" Escancara os olhos, já a ponto de virar o rosto, de se desviar ágil, rápido, do rapaz que sobe à calçada. Engano, que sorte, respira: aquele terrorista estava morto há mais de um ano. Mas como era parecido! "Eu podia jurar que era ele". Vai até o hotel, passa o fecho nas malas e voa do Recife.



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