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14 de outubro de 2002 |
Urariano Mota
Naquele ano de 1973, depois daquelas sucessivas mortes, dispersaram-se. Quase como uma diáspora. E não só no sentido físico. Houve uma pulverização de destinos também. No romance a ser escrito sobre a vida de alguns dos sobreviventes, deles seria dito que o seu coração os abandonou. Porque o seu coração não mais formou os seus espíritos. As táticas, as adaptações de sobrevivência estabeleceram o seu império. E com isso, o que antes era luminoso, transcendente, passou ao grotesco, ao grosseiro, ao caricatural, sem mediação. Quem os visse anos depois, tendo presente a lembrança do que foram, diria que perderam a aura. Isso de imediato. Mas, apurando melhor a vista, assim como abrigamos as pupilas quando saímos de uma região de luz para uma região de sombra, esse alguém, procurando os traços do que foram, acrescentaria que o magro se fez gordo, tumefato, que a tensão dos seus rostos, antes altaneira, à beira do abismo, se fez relaxada, decomposta, em sua entrega e descida das armas, que à antiga crença, de uma fé quase mística, substituíra um ar de mofa, que, e isto não era o menos importante, os jovens e fogosos, que eram cavaleiros e montaria a um só tempo, transformaram-se em burras carnavalescas, solitárias, de uma quarta-feira de cinzas.
Em resumo, eles não mais eram da revolução. Alguns, sequer, eram mais favoráveis à revolução. Passaram a apagá-la, como se desejassem apagar um erro do passado, vexatório, que nem mesmo sob hipótese deve ser insinuado num currículo. "É lamentável", diria um penitente romântico, para dar prosseguimento ao "antes estivessem mortos". E com isto o romântico quereria dizer, "que fossem ceifados no ardor; suprimidos quando o sangue nas veias era um látego; que tivessem suas gargantas cortadas, antes, bem antes que ...", e tamanho seria o horror desse romântico que à conclusão, ao desenvolvimento, ele se fecharia. Pois o que é o romântico senão o desejo do impossível, ou seja, a retirada do movimento do real, para assim ter o seu real mais puro? O que fazer? Pelo menos para aqueles destinos, a sua adaptação foi uma subida do inferno luminoso para o cinza. Anjos caídos, sem asas e sem chifres, dir-se-ia. Mortais e simples mortais. Acomodemos a nossa pupila. Assim como os olhos encandeados retêm na lembrança a incandescência que se foi, e com isso mal vêem os objetos à frente, assim o seu tempo posterior, nos anos que se seguiram a 1973, retém o drama que viveram. Em vez dos corpos, sobreviventes, vemos esboços, sombreados. Em vez de pessoas, caricaturas. E difícil é dizer se a caricatura não é a sua essência. Porque a caricatura anda, fala, e sente, e se despe das criaturas anteriores como um animal recente brota de sua velha pele no chão. Uma perspectiva desapaixonada diria que a caricatura do que foram era o seu novo drama. Terminamos? Seguremos a vontade. Num artifício, num artificialismo, sentindo o esgotamento do limite que viveram, sustentaria a narrativa um incidente desabado em suas vidas, como um bólide dos céus. Seria folhetinesco, falso. Ocorreram é certo incidentes, - é do caos, é do real - mas não como numa seqüência, tais incidentes, tais conseqüências, em tempos imediatos. Dizendo de outra maneira, não houve incidentes como uma bomba a que se segue uma explosão. Os incidentes brotaram, invertidos, como se a explosão, surda, silenciosa, ocorresse antes mesmo que houvesse o artefato da bomba, vista muitos anos depois dos estilhaços. A destruição, sem barulho, precedia a bomba, no lento movimento do cotidiano. Bebia-se, queremos dizer. Ou melhor, começamos a dizer. Bebia-se, e eram bebidas as sextas, sábados, domingos e feriados. Depois bebia-se, às terças, quintas, sextas, sábados, domingos e feriados. Depois ao almoço, indo-se às tardes, daí às noites e até a madrugada. Bebia-se. E isto, sabe-se, é de uma corrosão que se produz como num passeio, e a imagem do passeio quer dizer, o álcool era bebido como se fosse um prazer, veneno entrando no sangue, no cérebro, caminhando, a pé, entre jardins. Os efeitos da jornada virão, tarde ou mais tarde, pisando as flores do jardim. É natural, é da natureza. Um moralista, conservador, diria que o mal veio desse álcool. Porque a bebida, e este é o pressuposto desse moralista, é um mal. E por ser um mal ... o seu discurso iria do óbvio ao tautológico, o mal porque é um mal, e porque é, é o mal. Mas não podemos, nem devemos, condenar o diabo porque ele tem chifres. Ou antipatizar com o glutão porque come em excesso. O mal vem antes dos chifres e da boca. Os que não bebiam, aqueles que não bebiam, apenas tiveram uma degenerescência sem escândalo, em sucessão de quadros mais lenta. Em lugar do estouro rápido - o escândalo, o incompreensível, a surpresa, "mas como é possível que ele tenha agido dessa maneira?!" - a separação das matérias, corpo e alma, veio a ocorrer nos sóbrios com a absoluta naturalidade dos anos. Como se fosse uma destinação física, uma lei da natureza, um acontecimento vindo como um peso gravitacional. No entanto, se suprimimos os anos em que pareciam não ser, tamanho era o seu existir com gélidos movimentos, se aproximamos dois quadros de suas vidas, em 1973 e 1994, o escândalo não é pequeno. Assim, o ardoroso e sectário Vandilson, que fez parte de um grupo de estudo de Marx, no tempo em que era aluno do Colégio Alfredo Freyre, em Água Fria, foi mais longe: foi à Suécia, para de lá voltar muito envergonhado da barbárie de ser brasileiro. Ponto, deveríamos nada mais acrescentar. Mas... continuemos. Em 1993, chegando àquela idade em que um homem se ressente de não ter mais a disponibilidade de um jovem, e por isso mesmo quer voltar a ser, apaixonou-se por um desses produtos do cadinho genético do nordeste, uma senhorita loura, de olhos azuis, aluna sua no curso de antropologia. Esta senhorita - e aqui não vai nenhuma carga de mão pesada, de ironia - chamava-se Linda. Linda, que se dizia, na sólida intimidade e devaneio dos amantes, ser prima, por vias transversas, de um certo gênero da família Bergman. Ele acreditava, apaixonado. Ele, um professor de antropologia, cioso do seu saber! Que fazer? A Suécia lhe voltava. O problema é que sua esposa, morena e mais fria, não gostou daqueles rompantes do entardecer. Peitou-o, e não somos cruel se acrescentamos que a esposa, estando bela a caminho do fenecimento, peitou-o a seio flácido, sem o rijo e a juventude da lourinha louca. Heróico, Vandilson não recuou - fugiu. Passou quatro dias num porre de amor e ardência com sua Bergman em Fortaleza. Desculpem, a imaginação destas linhas não é torpe. Pois, descrente da resolução de Vandilson, a sua esposa o procurou por todo o Recife, nessa ordem: entre cadáveres do necrotério, entre acidentados e esfaqueados no Hospital da Restauração, entre ocorrências de boletins terríveis das delegacias policiais. Vandilson havia sumido, subido aos céus ou descido às profundas, num pipoco. Então, mais sensata, a sua recifense esposa abriu os olhos ao real: por coincidência, a loura sueca também havia desaparecido da turma onde Vandilson ensinava. E chorou, e jurou vingança, de cometer uma infidelidade de arrebentar, se Vandilson reaparecesse vivo. Ele voltou, cabisbaixo. Temeroso e infeliz, como um cão vadio que retorna ao lar, depois de muito fuçar as lixeiras. Ela se fechou, a ele, pelos dias e noites na cama, ainda que se deitasse perfumada, no exercício precário que lhe dava a majestade do fenecimento. Vandilson sofria, sem dizer a ninguém o que lhe ocorrera nas farras de volúpia entre o hotel e os restaurantes da praia de Iracema. Pior, nem mesmo confessava a sua fuga de paixão em 4 dias. Perguntado, tomava um ar misterioso, entre o aborrecido e o cínico. Respondia com vagueza, como um desmemoriado, e mudava de assunto. Já a loura dizia, a quem estivesse disposto a ouvi-la, que Vandilson como homem era covarde. Como amante, um sueco em seus impedimentos. E isto, para Vandilson, era uma ignorância e um insulto à civilização que ele vira nos países nórdicos. Carlos viajou para os Estados Unidos, para a cidade de Nova Iorque, tendo como conhecimento básico do inglês o verbo to be. E o de responder a perguntas do gênero, qual o seu nome, e de onde vinha. Soube-se depois, 20 anos mais tarde, que se havia tornado cidadão norte-americano. Mas, ou mais, que havia contraído Aids, ao fim de um casamento com uma inglesa. Soube-se, e dizia-se, que estava aidético, numa entonação de vingança, carregado de um "bem feito" infantil, porque, em Nova Iorque, ele tomava distância de relações com brasileiros, de um modo geral, e de um modo particular, de brasileiros do Recife. Se contraiu de fato, ou se esse era um desejo que virou verdade na malquerença, não ficou decidido. Jamais se teve uma prova científica, um resultado de exame, ou uma foto de Carlos magro, em estado terminal, apartado dos nacionais. Pelo contrário, as notícias que chegavam, pelo ar de troça do que ele teria dito, davam provas de boa saúde: "Chega de feijoada, abaixo a caipirinha, nunca mais queijo de coalho. Detesto festa de samba e de barulho de frevo". Assim era dito que ele escrevera, em carta a Virgínio Canhoto. As manifestações regionais ter-se-iam mudado em folclore, marcas de atraso de um terceiro mundo, abomináveis. "Pois ele é um novo norte-americano", dizia-se. "Cucaracha sem identidade", acrescentava-se. Como sempre acontece numa guerra, o ódio é nutrido por vilanias, incompreensões. E por preconceitos básicos, que sendo chãos, cobrem-se de vergonha, pois não se dizem. Numa época em que a debandada corria para o Chile de Allende, a nova pátria do socialismo, Carlos escolhera os Estados Unidos, a pátria do capitalismo. Isto foi o mesmo que uma carta de princípios rasgada, para os que ficaram. "Carlão, hem, quem diria? Americano...". E por não se achar algo mais concludente, pois ele havia partido para os Estados Unidos, o que isso mesmo queria dizer?, acrescentava-se uma pesquisa dirigida para os dados de Carlos que fossem mais eloqüentes que a velada insinuação. E aí, numa relação entre inimigos, pois Carlos se transformara num sujeitinho desprezível, difícil é dizer o que é infâmia e o que o indivíduo tem de fato de infame, por se haver tornado a encarnação da infâmia. O desenrolar dos acontecimentos parece confirmar o que a infâmia previra. Por acerto lógico, irrepreensível, científico, ou por confirmação raivosa, magoada, contra o descrédito. "Quem são eles? Por que estão me vendo dessa maneira? Pois vejam! Falem agora com mais acerto", parece o segregado dizer. O certo, e o que mencionaremos é concreto, é factual, o certo é que Carlos facilitou o trabalho dos que o queriam ver como um cucaracha sem identidade. "Louco é quem pede ao tempo frutos que nem germinaram", Carlos se disse. E fugiu. Partiu para Nova Iorque, deixando no Recife o seu caminhar um pouco de banda. Com um cemitério no bolso. Ali, na terra da livre iniciativa, soube-se depois, desejou conjugar diferentes modos do verbo to be: foi pintor de paredes, motorista de táxi, balconista e sócio de uma joalheria. De um judeu. Estivera casado com uma inglesa. Deveria estar com Aids, da qual estaria se defendendo com miraculosas dietas macrobióticas. Era um self-made-man, ele se acreditava. Mas não houve, como desejou, diferentes modos de to be Carlos. Veio a ser, apenas, um cucaracha que deu certo. João tentou entrar para um convento. Num sábado foi ao mosteiro de São Bento, em Olinda. Lá, acercou-se de um monge que passeava em frente à igreja, sereno e de barbas brancas, o primeiro que viu. E por não saber por onde começar, ou de que forma dizer o seu propósito, foi objetivo aos círculos: - Padre, irmão ... monge... - Sim? Pois não... - Eu estou com uma dúvida. Talvez o senhor pudesse me tirar uma dúvida. - Se estiver a meu alcance, estou a seu dispor. O monge tinha uma voz doce, ou melhor, uma voz que imitava o doce, que soava para deixar a impressão de voz mansa a sorrir, mas que João recebia como uma voz de timbre afetado. Voz mergulhada num riso superior, que fez João pensar, "estarei por acaso com uma aparência de bobo, de desnorteado?", enquanto o religioso lhe concedia: - Sim, fale... Os lábios do monge de fato se entreabriram num sorriso. "Por que não dou as costas a esse pretensioso? O melhor seria desaparecer daqui", João se disse. Mas falou: - Quais são as exigências para uma pessoa entrar na Ordem? O monge sorriu com mais franqueza: - Ordem, exigências ... não há exigências. Se se é cristão, se se tem o desejo de servir a Cristo ... é um chamado, não é uma exigência. - Então basta ser cristão, só isso? - Existe um chamado ... Olhe, seria melhor que você falasse com Dom Amico. Ele tem mais condições que eu para orientar. - Não, o senhor mesmo. O que o senhor sabe já me esclarece. Escute: se por acaso, por hipótese, eu quisesse entrar para o mosteiro, eu teria que fazer algum teste? - Não há um teste. Não há como testar a fé. É uma graça de Deus. - E como é que se sabe que o indivíduo tem fé? - A gente percebe, por seus hábitos, por suas ações, por seu modo de agir... Aquilo que as pessoas dizem, "fulano é um homem de muita fé". A gente percebe. João ficou achando vago o perceber dessa fé. Originado de um meio onde vira a fé ser uma paixão, provada em atos de dor e fogo, ele achou muito estranha essa fé percebida. Seria um halo, em que se crê por boa vontade? Então era um conforto. O cristianismo praticado ali era de uma disciplina bem frouxa. Ou de uma disciplina exterior, sem cobranças. E estranha. A falsidade ali era mais possível que no partido. Ali um indivíduo poderia passar o resto da vida numa boa e santa farsa. Sob o aval dos superiores, cúmplices. Isto se o indivíduo não cresse. Mas se o indivíduo cresse, estava condenado, ao inferno. Mas então, se cresse, ele não fingiria. Que disciplina mais engraçada. Admitia o falso e o verdadeiro como se tudo fosse verdadeiro. Bem complacente. Por um lado era boa. Mas por outro lado não purificava, a quem houvesse caído. Faltava-lhe um elemento de purgação. O monge entendeu o silêncio de João como o término da entrevista. E falou, paternal: - Está bom? - Não, ainda não. Só mais duas coisas... Abstinência. Existem abstinências? - Sim, muitas ... Sexual, não é? (E João sentiu o peso e o valor disso na voz do religioso, ao dizer como coisa natural, simples, a palavra "sexual". Os olhos do monge brilharam acompanhando um hiato em sua entonação) É, não possuir bens. Não existem bens... - E comer, e beber, pode? - Comer, à vontade. (E João sentiu aqui a naturalidade do "comer", por quem não se aflige para consegui-lo) Beber, um pouco, sem exagero, não é? O normal. Então estes seres não têm angústia? João se perguntou. Como é que se bebe assim, tão sem calor, como se o mundo e o peito não estivessem em choque? E para não perguntar, ressaltando uma diferença, concluiu seu pensamento com uma observação em voz alta, ambígua: - Quem entra na Ordem recebe uma outra educação. - Isso. Existe um período de assimilação da doutrina, da vida monástica: "por quê? para quê?"... A doutrina é fácil. Viver a doutrina é que é o difícil. Aprender é fácil. Basta a boa vontade. Está bom? João queria mais. A palavra que buscava não ouviu. O conforto apontado era por demais sensato, ramerrão. Ele queria qualquer coisa de santo, uma revelação do milagre. Quando nada, um conforto gerado por uma experiência superior, ética. Mas aquele monge, e o que ele dizia, era falado de má vontade, para se desfazer de um obstáculo. O monge se portava como um superior, por hierarquia. E isto, esta atitude, ele já sentira antes, em outra circunstância: o indivíduo que se acha repleto da mais alta verdade trata o alheio à sua crença com desdém. Inferioriza no trato a quem não é, como ele, salvo das trevas. Existe Deus nisso? Deus, e sua revelação, não podem ser isso, João se disse. Pensou em dar as costas àquele recolhimento imóvel. Mas uma esperança renitente ainda o espicaçava. E perguntou: - Como saber se o ato de entrar para o mosteiro é uma convicção ou uma crise? E com isto ele queria perguntar, "estou numa crise? o que devo fazer? o senhor tem o milagre que suaviza minha chaga?". O monge sorriu: - Eu sempre digo que ninguém entra para uma nova vida porque perdeu, mas porque ganhou. É uma graça. É o atendimento a um chamado de Deus. Quem entra, tem a consciência de que Deus o chama. Não é um desengano, por ter perdido alguma coisa. Perder um parente, uma namorada, um amigo, não faz com que a gente venha por este caminho. O jovem entende? Às vezes o homem ouve mal o chamado de Deus, e por isso hesita. Isso pode durar. Paciência. Quem puder ser assim, seja. João não mais se conteve ante a suavidade daquelas palavras, que apenas o alisavam na superfície: - Por que as pessoas mais religiosas são as de instinto mais pecador? - Como? - E a voz do monge ficou grave, áspera, despindo-se da doçura anterior. - Por que o gosto do pecado é mais forte nos cristãos mais fervorosos? - João repetiu. - Isto não é uma pergunta. É uma tese. Isto não encontra nenhuma base em nossa tradição. - E depois de um silêncio, em que pareceu refletir: - Um pregador velho, de antiga formação, diria que isto é o demônio. Que é a tentação do demônio. Nisso deve haver razão. Se isto, que você diz, existe ... eu acho que é porque as pessoas mais chamadas por Deus são as mais tentadas. A vida é misteriosa, meu jovem. A vida humana é um mistério ... Está bom? Havia que estar. Na sua voz mansa e doce, recuperada, o monge demonstrava que estava sendo incomodado. E julgando não ter sido incisivo o suficiente, estendeu as mãos, numa despedida fraterna. Apertar aquelas mãos foi o mesmo que cumprir um ritual. - Está bom? Farsante! João quase lhe diz. Mas calou e foi descendo a ladeira, resmungando: - Eles não sabem vender o céu. Em vez da boa nova, do aumento da Ordem, eles se plantam na defesa. Querem é manter os privilégios. Custava nada me esclarecer? Eu só queria uma palavra. Eu vim fértil para ser aceito. Eu poderia ser arrebanhado. Toma! Em vez da revelação, do transcendente, o que ele me deu foi a rotina. Aquilo é uma generalidade de regras. Estúpido. Eu é que fui estúpido. Bem feito. Estão longe dos primeiros cristãos. Desse jeito eles nunca vão produzir um único santo. É só reza ... Como é que se pode enfrentar o mundo, se meter contra o injusto, se o indivíduo se guarda entre muros? Mas isso eu já sabia. Por que é que eu vim? Sim, isso: por que é que eu vim? Vamos, responde. (E João viu um claro amarelo sobre a sua cabeça, uma cabeça sem o resto do corpo, que deveria estar ajoelhado numa cela ). Eu sei. ( Fala o que não diz, brotando sons inarticulados): tá, hum, ah ... Isto ele fala, aos saltos, aos resmungos, enquanto assalta-o no pensamento, às vezes muda em palavras: a sua imagem recolhida numa cela, guardada, resguardada, recuperada em sua dignidade, prenhe de substância etérea, prenhe de uma razão regenerativa de sua vida. "Deus, faz que eu me refaça em Ti", este seu ser ideal lhe diz. João quer mais substância, e não a encontra nesse João assim tão idealizado, e por isso volta à realidade mais imediata: "por que frustram assim uma esperança? Com um toque eu acreditaria", na própria voz ele se diz. E os sons inarticulados voltam, e isso quer dizer: "Eu fui rejeitado. Eu fui rejeitado. Rejeitado". E se dirige a este seu ser, conhecido e humilhado: "Até nisso, rapaz? Nem no abstrato céu és aceito? Que te resta?". Então ele se fala, em voz alta, numa lógica última, irretorquível: - Que sorte! Eu ainda posso matar-me. Desce a ladeira e pega um ônibus no Varadouro. |
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