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La insignia
10 de outubro de 2002


Elogio da incerteza
ou como evitar as linhas retas para andar direito (IV)


Nivaldo Tetilla Manzano
La Insignia. Brasil, outubro de 2002.


Como dizem Deus e o Diabo em um dueto de sua opereta, não existe começo ou ponto de partida. A sua primeira edição da opereta já é uma nova edição revisada de alguma das edições anteriores, também revisadas. O ser humano é uma errata pensante, observa um dos personagens de Machado de Assis. No começo era a ação, ou seja, a diferença.

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Num sonho em que deparei com Simão Bacamarte - não mais o louco que Machado conhecera, mas um Bacamarte refeito de sua insanidade - ouvi-o perguntar-se: "Por que o macaco deveria ter-se posto de pé, em seu novo papel de homo erectus, liberando os membros anteriores, apenas para empunhar uma ferramenta? Não poderia tê-lo feito ao mesmo tempo para se entregar mais confortavelmente ao amor? Uma vez liberto do constrangimento quadrúpede, por que deveria ter-se decidido primeiro suar a golpes de machado, no trabalho, para somente em seguida suar de prazer na cama? Marx não foi feliz na escolha da locomotiva como metáfora de sua antropologia. Prefiro a metáfora do artesão. Tanto a mente, em seu aprendizado, tem a ensinar às mãos quanto estas àquela, num processo recorrente. Entre as mãos e a mente, não é possível decidir sobre o que vem primeiro". E antes de desaparecer, Bacamarte advertiu-me de que era o que bastava para se desenhar um programa de auto-gestão da vida quotidiana, ou para se definir uma Política do Sujeito.

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Na literatura antropológica, como se aprende na leitura de Pierre Clastres (1980), a sociedade primitiva parece ter-se dado conta de que é grande o risco da violência quando se confere auto-suficiência ao plano dos duelos lógicos. Por isso, sem renunciar a eles, ela protege-se contra toda tentativa de divisão de seu corpo social. O chefe guerreiro nele não exerce poder algum de comando. Para assegurar-se de sua unidade, o corpo social faz da paixão guerreira uma aspiração de prestígio, incitando assim o guerreiro a seguir sempre em frente, em busca de um prestígio maior, de um desejo de glória que o conduz à morte. Desse modo, evita-se que ele traga a infelicidade para dentro da sociedade, ao introduzir nela o germe da divisão, tornando-se um órgão separado do poder.

A divisão e o poder nela se estabelecem somente no momento em que o grupo organizado de guerreiros profissionais consegue transformar a situação da sociedade primitiva na situação particular da sociedade de guerreiros. A partir desse momento, o poder de decidir sobre a guerra e a paz já não pertence à sociedade como tal, para pertencer à confraria dos guerreiros, que coloca seu interesse particular acima do interesse comum, fazendo prevalecer seu ponto de vista sobre o ponto de vista geral da sociedade. A contradição interna nela se instala, opondo de maneira radical o desejo de unidade do corpo social, de um lado, e o desejo individual do guerreiro, do outro, para quem todos os meios são bons para aumentar a sua glória. Em momentos agudos desse conflito, relata-nos Clastres, a vontade de dar a morte choca-se com a recusa de dar a vida: as jovens indígenas do Chaco não querem ter filhos, embora desejem esposar os jovens guerreiros.

O poder hierárquico, por definição, assenta na usurpação da unidade da pessoa. Nas democracias modernas, a pessoa consente em abrir mão de seu próprio poder, confinando-o aos limites da cidadania. Dela fazendo uso para chegar ao poder, os homens de Estado não relutam em investir contra ela, pondo assim em risco a unidade da sociedade; em resposta, a sociedade reage, como corpo indiviso, para impedi-lo.

Na história das instituições políticas, o drama social vivido pela sociedade primitiva de Clastres encontra o seu desfecho evolutivo, esquematicamente, em direções opostas, uma que exalta e fortalece o poder do Estado, outra que o assedia e o subverte, estimulando a diversificação e o fortalecimento dos centros de poder, como um seu contrapeso. Nas sociedades modernas, a promiscuidade entre o Estado e os interesses do capital tem levado ao paroxismo a tendência de se fortalecer o Estado, como guardião das regras do livre mercado, contra a sociedade.

Como exemplo paradigmático, e muito precário, dos dois tipos de oposição, têm-se na Grécia antiga os casos de Atenas e Esparta, cidades-estados rivais. Observe-se, porém, que os gregos em geral não chegaram a distinguir claramente Estado e sociedade, plano político e plano social, cidadão e pessoa. A cultura espartana é a expressão da uniformidade; a ateniense, da diferença. Em Esparta, a organização da sociedade tende a fortalecer o Estado, em detrimento da sociedade; em Atenas, ocorre o inverso. Em ambos os casos, a emergência do Estado expressa-se na separação das funções. É essa separação que levará nos casos extremos, ao longo da história, ao divórcio entre Estado e sociedade. Limitemo-nos a registrar a separação das funções, deixando de lado os demais processos intervenientes no contexto.

Em Atenas, único ponto da Grécia em que a continuidade da época da realeza palaciana não é rompida de forma brutal, a presença ao lado do rei, do polemarca, como chefe dos exércitos, já separa do soberano a função militar. O comando conquista a sua independência e define uma realidade propriamente política. O sistema de eleição do polemarca, inicialmente por dez anos, e depois a cada ano, implica uma concepção nova de poder. O comando é delegado por uma decisão, por uma escolha que supõe disputa e discussão. Essa delimitação mais estrita do poder político, que toma a forma de magistratura, relega o sacerdote para uma função especificamente religiosa.

À imagem do rei, senhor de todo o poder, que unificava e ordenava os diversos elementos do reino, sucede a idéia de funções sociais especializadas, cujo ajustamento cria difíceis problemas de equilíbrio, que precisam ser resolvidos dentro dos limites civilizados da discussão. Surgem, então, as questões iniciais da filosofia política, ensina-nos Jean-Pierre Vernant (1973): Como uma vida comum pode apoiar-se em elementos discordantes? Como, no plano social, manter a unidade na diversidade? Está-se diante de uma nova situação em que se enxerga o Estado como uno e homogêneo, enquanto o grupo humano é diverso e heterogêneo.

O problema não era estranho à matriz mitológica grega que, na sua cosmogonia, fazia o uno sair do múltiplo e o múltiplo do uno. Ou seja, originalmente, em outro contexto, não era um problema. Se ele é formulado agora, nos primeiros esboços da filosofia política, é porque se supõe que os mitos encontram-se em vias de deixar a vida pública, para se recolherem à história, para dentro das obras de Homero, sem se advertir de que outros deverão tomar o seu lugar. Poder de conflito e poder de união, entidades divinas opostas e complementares, são dois pólos que marcavam a vida social no mundo aristocrático, embebido no mito e anterior à democracia, que sucede às antigas realezas. Nesse mundo, a exaltação dos valores de luta, de concorrência e de rivalidade associa-se ao sentimento de dependência para com uma só e mesma comunidade, para uma exigência de unidade e de igualdade. Hesíodo observa, em "Os trabalhos e os dias" que toda rivalidade supõe relações de igualdade: a concorrência jamais pode existir senão entre iguais.

"Esse espírito igualitário é um dos traços que marca a mentalidade aristocrática guerreira da Grécia e que contribuiu para dar à noção de poder um conteúdo novo. A política converte-se numa disputa oratória, um combate entre argumentos cujo teatro é a praça pública, antes de ser um mercado. Trata-se de uma prova de forças, palavra contra palavra, num torneio sujeito a regras, comparável ao que põe em combate os atletas no curso dos Jogos. Assim, o comando não poderia mais ser a propriedade exclusiva de quem quer que seja. O Estado é precisamente o que se despojou de todo caráter privado, particular que, escapando à alçada das famílias guerreiras, aparece como a questão de todos..." (Vernand, J-P., 1972).

A vida mitológica no Olimpo já prefigurava uma exigência humana de justiça, que cabe agora ao Estado não separado da sociedade distribuir. Violência e Justiça são os dois acólitos de Zeus, que não deveriam afastar-se um instante de seu trono, porque personificavam o que o poder do soberano comporta de absoluto, e passam agora a personificar a Lei, uma tentativa de estabilizar o conflito, equilibrar as forças sociais antagônicas, ajustar atitudes humanas opostas. A injustiça engendra a escravidão do povo e esta provoca a sedição. Por isso, a sabedoria de Sólon, o legislador de Atenas que recusa a tirania que lhe é oferecida, é celebrada: ele uniu, sem descaracterizar a sua oposição, a Violência e a Justiça, na Carta que outorgou aos atenienses.

A solução proposta por Sólon, sobre a qual assenta a democracia ateniense, retira formalmente a sua matriz do mundo mitológico de Homero. É preciso deter-se aqui para compreender como foi possível, na democracia moderna, saltar da diversidade na unidade, que presidiu à sua origem, à uniformidade que agora se nos apresenta como a sua negação, na forma de pensamento único, ou sujeição dos valores humanos e democráticos às regras do livre mercado. Isso vai obrigar-nos a fazer uma digressão sobre a formação do homem ocidental moderno.

Na origem da formação do homem ocidental moderno, dois tipos de predisposição moral antagônicos fertilizam-se mutuamente para modelá-la: os valores helênicos e os valores judaico-cristãos. A afirmação de uns constitui a negação de outros. Para ambas as tradições, no entanto, os ideais da perfeição são igualmente infinitos.

Para a tradição judaico-cristã, a distância entre o homem e Deus é infinita. O homem, a partir de sua pequenez e de sua finitude, só alcança a graça por bondade divina. Ele jamais poderia almejar estar na presença de Deus, possibilidade que este lhe oferece e que deve ser conquistada por esforço moral. É Deus quem, exercendo seu narcisismo na forma de infinita bondade, concede ao ser humano o prêmio celeste por seu comportamento virtuoso (obediência ao dever-ser da lei divina). Assim, para a tradição judaico-cristã, a elevação moral é obtida pela prática da virtude. A virtude é a força moral para se fazer o que é bom. Bom é o que é absolutamente bom, sempre bom, não importa o contexto, pois emana da vontade absoluta de Deus. Bom não é beber água quando se tem sede - é fazer o que se deve fazer por disposição divina, mesmo a contragosto. O Bem é transcendental, do outro mundo. Ao ser humano resta a obediência: essa é a sua virtude (Auri Cunha, J., 1997).

Já para a tradição herdeira do mundo de Homero, a distância entre os homens e os deuses não é infinita. Existe uma continuidade entre todos os seres, das pedras aos deuses, passando pelos animais, pelos homens e pelos heróis míticos. Quanto maior o grau de nobreza adquirido pelo ser humano, maior seu grau de parentesco com os deuses. Estes, além da imortalidade, possuem apenas alguns graus a mais de nobreza, coragem, bravura e justiça, em relação ao ser humano.

Bem e Mal não são transcendentais ou absolutos. Não se situam no outro mundo, mas surgem e devem ser apreciados no contexto da ação humana. Bem e mal são valores cujo sentido varia de acordo com a variação do contexto, que tem como referência necessária o ser humano. O que é bom e o que é mau depende do que o ser humano eleja como fim da ação moral, do que pretende fazer de si mesmo. Na visão de Sólon, a justiça, desejável para quem vive em sociedade, embora se apresente com ressonância religiosa e transcendental, aparece como uma ordem natural que por si mesma se regulamenta. É a maldade dos homens que produz a desordem, sua sede insaciável de riqueza. A justa medida para restabelecer a ordem, que cabe ao ser humano buscar, deve quebrar a arrogância dos ricos e fazer cessar a escravidão do povo. Como aponta a esperança no fundo da caixinha de Pandora, existirá sempre a possibilidade de o ser humano reconhecer a justa medida, depois de explicitada pelo sábio, mesmo a que a lição seja momentaneamente rejeitada (Vernant, J-P., 1973).

Assim, para Sólon e Homero, o destino do homem está inteiramente em suas mãos e é jogado aqui na Terra. A busca da transcendência limita-se a alcançar maior proximidade com os heróis míticos e os deuses. Por isso, o princípio de sua educação era a excelência, a força e a nobreza dos sentimentos. O grego do período anterior ao advento da filosofia socrática (a busca da moral do dever-ser) desconhece a obediência como atitude moral. Orienta-o a auto-superação, o ideal de beleza, de coragem, de amizade, de honra, de glória e de sabedoria, ideal que ele retira não de um além, mas da competição entre os melhores, como ocorre nos jogos olímpicos. Esse é o motivo por que o homem grego se tinha em alta conta: submeter-se a qualquer vontade, mesmo divina, era-lhe uma ignomínia, uma vergonha (Vernant, J-P., 1973).

O mito judaico-cristão do pecado e da queda, do castigo de Adão e Eva, com a sua expulsão do paraíso e a sua condenação a obter o alimento com o suor de seu rosto, contrasta com o mito prometeico de maneira flagrante. O mito de Prometeu celebra a dimensão moral do ser humano, a liberdade com que assume o próprio destino. Segundo o mito grego, a humanidade conquista o que há de mais valioso para a civilização - o fogo - à custa da ousadia criminosa de roubá-lo aos céus, conferindo dignidade humana ao sacrilégio divino. Segundo o mito judaico-cristão, a origem do Mal está num cortejo de sentimentos negativos, da mentira e da cobiça. O que para o judeu-cristão é pecado merecedor de castigo, que o afasta do céu, para o grego é virtude sublime e eficaz, que o aproxima do Olimpo. É como se o homem grego, para alçar-se à condição humana, devesse conquistá-la aos deuses, escapando às disposições de um roteiro transcendental prestabelecido, para inaugurar na Terra um destino propriamente seu; ao passo que para o judeu-cristão, feito com barro do outro mundo, condena-se a viver exilado num vale de lágrimas que não escolheu. Aqui, está condenado à lei da coisa, ao dever-ser de uma moral que não é a sua. Por isso, a sua ascese e a sua educação deverão consistir da remoção do sentimento de si mesmo. Leia-se: da remoção do que haveria de desprezível dentro de si, para dedicar-se ao amor ao próximo; da renúncia às delícias terrenas que, diabólicas, insistem em sujar-lhe a alma de mundanidade, que paradoxalmente faz dele um ser humano.

Para evitar que isso ocorra, é preciso sair em busca de uma verdade enlatada, à prova do tempo e da ferrugem. Disso se encarregará a filosofia de Platão, origem de uma das vertentes do dogma cristão. A vantagem da lata é que ela presta-se à conservação por tempo indefinido de todo tipo de respostas para perguntas que não se sabe quais são. Seu conteúdo consiste de um conjunto de respostas estereotipadas predefinidas, que correspondem a soluções prontas para problemas que se desconhecem.

Ao contrário da visão grega, que exalta, celebra e se compraz no prazer sem culpa, a visão judaico-cristã, culpada e condenada, não se detém na fruição criativa, obrigada que está à lei do dever-ser, que perdoa somente se o cristão a ela se submete renunciando a si mesmo. Para um grego, o que distingue o animal do homem é que este é capaz de desfrutar do prazer de beber vinho e partilhar o seu pão com o hóspede, enquanto para o judeu-cristão a distinção está no suor bíblico e na culpa, ele que teria sido concebido originalmente para desfrutar as delícias do paraíso.

Mas mesmo nesse estado febril de culpa, que mantém o judeu-cristão quase exangue, é possível entrever sinais vitais, uma evidência de que a realidade não se rende, por mais que a mutilem. Os sinais expressam-se na exacerbação do desejo, que resulta de sua incapacidade de se decidir entre a virgem inatingível e a puta desprezível. A perfeição não é grega; é de natureza monoteísta, escatológica, moralista e ontológica.

Diferentemente da visão grega, em que deuses e homens estão no mesmo barco, em razão da continuidade da realidade unitária do mundo, na visão judaico-cristã, de realidade descontínua, existe uma não-correspondência entre o estatuto de Deus e o do homem. Enquanto o cristão pode perder-se e extraviar-se do plano da Salvação, Deus, não. Um livre e soberano, está acima de qualquer destino; o outro, miserável e indigno, exerce a sua "liberdade" no espaço normativo do sim e do não da maçã newtoniana. Está proibido de imitar o seu Criador, imitando também, criando outros jogos eqüivalentes de sim e não, com os quais possa entreter-se.

O mesmo conflito entre as duas visões manifesta-se, em esboço, já no interior da filosofia grega e expressa-se exemplarmente na divergência entre a filosofia política de Aristóteles e a de Platão. Ambos refletem sobre o modo de pensar dos sofistas, para rejeitá-los. Os sofistas, mestres da oratória, que ganhavam dinheiro ensinando retórica a quem queria fazer da política uma profissão, defendiam em geral a idéia de que a qualidade que se buscava para a verdade tinha a sua matriz na política, no diálogo incessante que a caracteriza - no acordo de ocasião entre pontos de vistas conflitantes, conflito que não convinha eliminar, um acordo em princípio renovável de forma recorrente, quando da mudança de contexto.

Platão, inconformado com a instabilidade da democracia ateniense, buscava para a vida política da cidade uma verdade com fundamentos tão sólidos como os axiomas da matemática, para ele de origem divina. A sua filosofia traduz-se na tentação permanente de suprimir o diálogo para, em seu lugar, consagrar o monólogo. Chegou a admitir a diversidade sob a condição de que esta pudesse ser estruturada em hierarquias fixas. Insatisfeito com ambos os tipos de resposta, Aristóteles acreditou poder desbravar uma nova solução - mas, como nos mostra Barbara Cassin (....), ficou a meio caminho entre uma visão e outra. Assim, o filósofo que construiu a mais poderosa máquina de moer sofistas, rendeu-se à dificuldade de reduzir o diálogo ao monólogo, quando na sua Política volta as suas baterias contra Platão, para desmanchar-lhe as hierarquias fixas. Ao advogar contra Platão que a política na cidade define-se como uma polifonia de vozes, a partir de cujas diferenças obtém-se um efeito harmônico, Aristóteles toma o partido dos sofistas. Rejeita, assim, a homofonia, ou o monólogo, que converterá, estranhamente, em fundamento de sua lógica e de sua metafísica. Como se disse, foi ele o criador do princípio lógico da identidade.

Ao contrário dos pensadores da escola eleática, à qual pertenciam Platão e Aristóteles, que fazem da abstração um duplo da realidade na forma de pensamento transcendental, os sofistas viam na reflexão sinais de humanidade, ao conceberem a verdade como resultado de um processo coletivo e prático de construção recorrente. Dessa forma, a sofística destitui sensatamente da fala humana o dom demiúrgico de enunciar adequadamente a realidade. "O homem é a medida de todas as coisas", afirmou o sofista Protágoras, para estupefação de Platão, que põe na boca de Sócrates a sua desaprovação, ao perguntar ironicamente por que, em vez do homem, a medida não poderia ser o porco ou o cinocéfalo. Uma objeção a que os sofistas haviam respondido previamente: a verdade somente poderia ser colhida no espaço do discurso, um espaço disputado por falantes, a partir de perspectivas necessariamente divergentes, que é preciso juntar na solidariedade de um acordo, sem o qual não é possível a vida na cidade, sujeita ao juramento da concordância, provisória, embora a referência última seja sempre a mesma, o desejo de se comprazer na existência, sem que para isso se deva eliminar o desejo de outrem.

Assim, enquanto Platão, em sua República, configura a cidade política segundo um modelo de diferenças hierárquicas e funcionais, definidas de uma vez por todas, para afugentar o risco da sedição, os sofistas enxergam o espaço da política como um processo, ou um estado de mudança para o melhor ou para o pior, no qual tanto pode ocorrer a sedição do poder por parte dos ricos quanto a sua remoção por parte de quem se sente injustiçado, em razão de sua ambição desmedida. Daí a noção eminentemente grega da justa medida, ideal de sua sabedoria. Ao contrário do que ocorre na geometria ou na aritmética, aqui não há certezas absolutas, fundamentos ou garantias prévias, transcendentais e indiscutíveis, senão a evidência intuitiva de que se deseja viver com prazer, ainda que não isento de risco, razão por que o sofista buscará, mediante a retomada incessante da conversa, ampliar tanto quanto possível o espaço da negociação. Ou, como diz Aristóteles recorrendo a uma analogia, é mais prazeroso, para o exercício e o aprimoramento do paladar, participar de um piquenique, no qual cada um dos participantes traz a sua comida de casa, oferecendo assim aos demais a oportunidade de provar sabores diferentes, do que ser recebido para um jantar por um anfitrião, que oferecerá aos comensais o mesmo prato. O Diabo cristão teria comentado a mesma coisa a propósito de um banquete oferecido por Deus às suas criaturas.

Para o sofista, a justa medida, ou o ideal de justiça, não está, portanto, inscrito em qualquer céu metafísico, no qual se poderia identificar com absoluta clareza a distinção entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A realização do ideal da justiça, sempre precária, é de ordem prática; resulta da retomada de um procedimento, semelhante ao do discípulo, que somente mediante o exercício migra do estado de ignorância para o estado de conhecimento, para se reconhecer ignorante outra vez; ou ao do doente, que migra da doença para a saúde, sem garantias de que em outro contexto o seu estado atual não vá reverter-se: o risco, inerente à condição humana, é sempre possível, não existindo imunidade contra ele. O futuro está aberto: tudo vai depender do entrechoque retórico entre os falantes que, embora divirjam entre si, buscam legitimar o que dizem acenando para uma referência comum - o desejo de se comprazer na existência.

Não é meu propósito aqui evocar a história da filosofia política de seus primórdios aos dias de hoje. Interessa-me a eleição da praça pública como o espaço institucional da política, compreendida nos limites da Democracia. Saltemos para o tempo presente. Quando Estados, partidos, grupos de pressão, indivíduos se afetam uns aos outros no processo de Poder - ou seja, no projeto de conquistar pela persuasão ou pela força o poder sobre outros seres humanos - tem-se reafirmada a dimensão política da sociedade. Numa democracia, a regra do jogo do poder político consiste em fazer uso da palavra com o objetivo de exercer influência sobre a ação política dos outros, quanto ao seu peso, ao seu alcance e ao seu domínio. Por influência entende-se a posição e o potencial de valor de uma pessoa ou grupo. Um valor é uma ocorrência desejada. Que Y valoriza X significa que Y age de maneira a ocasionar a consumação de X. Do conceito de valor, em termos de ato de valorização, decorre que os valores são conflitantes e concorrentes entre si. Conflitantes, porque opõem-se uns aos outros; concorrentes, porque dependem uns dos outros para terem reconhecida a sua legitimidade (Kaplan & Lasswell, 1979).

A ascendência de uns sobre outros é a fruição do poder hierárquico, ou o desfrute da deferência reconhecida por parte dos outros - na forma de respeito, prestígio, status, honra, temor, etc. -, para com aqueles que detêm Poder. O drama social e cultural na sua dimensão política é um drama de legitimação, encenado por cada um dos atores com o objetivo de legitimar a sua autoridade persuadindo os outros de que a sua proposta de ordem é necessária para a salvação da humanidade.

Como na vida democrática é pelo uso da palavra que se exerce o direito legítimo de influenciar, a arma utilizada é o argumento. Este não pode ser de natureza exclusivamente racional, porque o que se pretende é conquistar a adesão da audiência, seduzi-la - e esta não decide somente apoiada na razão ou somente apoiada na emoção. A sua resposta, como ação humana, é constituída ao mesmo tempo de razão, intuição, sentimento, emoção, paixão, ética, estética. Uma decisão, ou um ato, por mais concretos que sejam, carregam necessariamente consigo a utopia, porque são também uma aposta sobre o futuro, que se desconhece, e nessa medida são fruto de conjetura, de apelo, de encenação, de esperança, de promessa, de subjetividade. Por isso, qualquer apelo feito à razão ou em nome dela, unicamente, é um embuste; visa tão somente camuflar o desejo patológico de mandar nos outros, submetendo-os a seus desígnios, jamais legítimos. O Poder hierárquico é uma doença, e não se conhece melhor antídoto contra ele do que a reciprocidade, ou o poder de destituição que caracteriza a rede libertária do mexerico, dos sofistas, de Aristóteles, de Espinosa e - ainda que, de longe, sem a mesma genialidade - de Gabriel Tarde.

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Como se insere o poder hierárquico na espistemologia, na política, nas ciências, nas instituições, na existência quotidiana? Camuflando-se de objetividade, ou racionalidade. Nessa condição, a racionalidade imuscui-se como um verme intestinal no interior da abstração auto-suficiente, para se converter em um seu atributo intrínseco, endógeno, que a capacitaria a conduzir o ser humano, em vez de se deixar conduzir por ele, mediante a sua contribuição indispensável. Corresponde à operação do cocheiro que assumisse o lugar do burro na carroça; ou à operação dos intestinos ou o paladar, que assumissem o lugar do turista. Operação ilegítima, pois a racionalidade é um dos valores, entre outros. Observe-se, a propósito, ainda uma vez, como procede a ciência racional. Antes de se debruçar sobre a realidade com que trabalha e dela extrair o que chama de objetividade, a ciência sem sujeito precisa construir os seus objetos, ou seja, retirá-los de seu contexto (do campo do sujeito, que é a sua referência), para dar-lhe uma destinação universal, vale dizer, descontextualizada. Não existiria ciência do singular, de José ou de Maria. Além disso, o cientista sem cabeça precisa fragmentar a sua realidade em partes, à semelhança dos papéis em que se divide Santos. Como resultado da fragmentação, o objeto de estudo apresenta-se ao cientista sem cabeça como susceptível de ser manipulado mecanicamente - é nisso que ele está interessado, para poder variar as condições de seu experimento, sob controle, e sentir-se senhor da realidade. As crianças divertem-se de modo semelhante, dizendo "isso é meu", quando apontam para uma nuvem, por exemplo. Mas a diferença é que elas o fazem por inocência. Uma terceira condição para se compor um objeto científico é que ele apresente alguma utilidade, ainda que somente para a ciência. Esta não se embevece com o desenho que o vôo de um pássaro risca no ar. Ela quer, sim, saber o que lhe vai nas entranhas; por isso, sacrifica-o. Aí está a utilidade do pássaro para a ciência sem sujeito: ser coisa.

A ciência procede desse modo para realizar o seu ideal de conhecimento, supostamente neutro, do ponto de vista ético. Conhecer, nesse caso, significa tornar obrigatória a capacidade de predizer o efeito em todo o sistema, ao se mudar uma de suas partes. A previsão requer do sistema que seja passível de ser descrito de uma forma manejável e lógica, de modo que enunciados do tipo "se isso, então aquilo", possam ser feitos. É uma garantia para o turista de realização de uma viagem sem risco - e, portanto, sem prazer. Para que o conhecimento seja universal, nem a natureza das partes nem a natureza das relações entre as partes podem mudar.

Para o cientista, para o político, para o capitalista, são óbvias as vantagens em se proceder dessa maneira. A primeira é que se passa a acreditar que se pode simplificar o problema. A segunda é que, em conseqüência, tem-se a impressão de que a solução ganha aplicação universal, sendo também completa. A terceira é que se acredita em que se pode manipular o mundo, supostamente sem risco. Isso eqüivale a dizer que Santos, por exemplo, contraditório e solidário como se apresenta em seu contexto, não poderia ser objeto da ciência conceitual. Santos, na sua complexidade individual, não é matematizável. Não é passível de operações lógicas, uma vez que o princípio de identidade (A = A) exige respostas binárias, do tipo sim x não. Eis o problema para a ciência sem sujeito: Santos é banqueiro, mas também não é banqueiro, porque é barão e vice-versa, um sujeito ilógico.

Para se reconstruir o objeto "científico" Santos, barão e banqueiro, no idioma que os cientistas entendem - o da lógica matemática - seria precisa começar por remover-lhe o conflito, que as linguagens formais não toleram. Para estas, nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Assim, para se conformar o "objeto" Santos aos princípios de identidade e de não-contradição, o banqueiro deveria ser separado do barão, e ambos de Santos, passando a receber cada um tratamento em separado, de acordo com o sistema racional e lógico que preside a cada um desses papéis, como se os regimes do Império e da República, na condição de entidades binárias, devessem manter-se um ao lado do outro até o fim dos tempos. Ou, como se um regime político devesse remover radical e subitamente o outro, como o zero binário remove o um binário e vice-versa.

No plano da prática social, porém, as coisas se passam de modo diferente - e, se assim é, pergunta-se para que serve a ciência sem sujeito. Sim, porque no dia seguinte ao advento da República, os mesmos coches e carruagens que transportavam barões no Império, transportavam agora banqueiros. Os suportes materiais do transporte eram os mesmos, mas os expoentes de prestígio, de status e poder associados a eles eram outros. Coches e carruagens já não transportavam sangue azul, por exemplo, o que os desqualificava como transporte da nobreza, que deixava de existir.

Contrariando a precisão da lâmina racional de Bacamarte, dos intestinos, do paladar, o contexto dos transportes de luxo no Rio à época da transição de Regime político estava, portanto, com um pé no Império e outro na República. Ao observar o desfile de coches e carruagens pelas ruas, nenhum transeunte poderia reconhecer o momento preciso em que o pé republicano pisou pela primeira vez no terreno do Império. Mesmo o cocheiro, e possivelmente muito menos ele, saberia dizer, ao transportar Santos, se conduzia o banqueiro, que conspirava contra o Império, ou o barão, que conspirava contra a República. E, contudo, o passageiro era o mesmo, Santos, postado em ambos os lados das trincheiras e, nessa condição, inabordável pela ciência sem cabeça. Ninguém poderia prever se da portinhola da carruagem sairia o banqueiro ou barão e, no entanto, o lugar que Santos ocupava no assento era o mesmo. Que utilidade tem nesse contexto a aplicação do princípio de identidade, isoladamente? Ocorre que a ciência funcionalista, essa da subordinação do cocheiro à carroça, que supostamente saberia de seu destino, desconhece a metamorfose, a ação dramática, as expectativas, as frustrações, as incertezas e os riscos, o encantamento, a transição, a mudança, a auto-recorrência. E ainda assim, os cientistas dessa ciência sem cabeça ousam oferecer-nos a possibilidade de controlar a realidade, assim como pensou fazer o aprendiz de feiticeiro da lenda de Goethe.

A Política do Sujeito leva-nos ao reconhecimento de que é a unidade do ser humano que caracteriza e articula um modo de ser das coisas em que tudo é revogável e em que nada é definitivo. Já não sou o que era e ainda não sou o que serei. Assim, encontro-me em condições de acolher em mim a pergunta que a Política do Sujeito me faz a cada instante: O que pretendo fazer de mim mesmo?



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