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7 de outubro de 2002 |
Urariano Mota
A perdição de Samuel foi a sua carência de beleza. Isto João gostaria que fosse escrito no epitáfio do companheiro morto. Noites inteiras ele se dizia: "Foi aquela praça. Foi aquele rio aberto na vizinhança da praça. Foram aquelas árvores. Ele já me havia falado do leite de luz que as árvores filtram, do leite de luz que vai até o cais. Tinha nada que fazer um ponto queimado?" À noite mais lhe insistia essa gênese do fuzilamento. "Ele sabia que aquele ponto estava queimado. Mas é claro. Foi isso. Ele já devia estar de mudança pra Fortaleza, e resolveu se despedir de sua paisagem. Com perigo era mais excitante. Pulou a trincheira pra beijar a namorada. Precisava, rapaz?"
A exigência de uma morte detonada pela beleza, beleza que era sem dúvida um elemento interno de afirmação da pessoa de Samuel, mais lhe vinha na medida em que retirava da lembrança o nome do brutalizado. Era como um expurgo de Samuel, de sua feição morena, magra, em camisa de imitação de seda, que subia à praça para olhá-lo. João evitava aqueles olhos escuros, eloqüentes no puro exercício de fitá-lo. "Precisava, João?" eles iam lhe dizer, mas João os cortava, cruzando rápido: "Precisava, rapaz? Precisava você repetir um ponto queimado? Loucura, rapaz". João havia entregado Samuel. João havia aberto um ponto que teria com Miro. Deste último, do qual nada sabia do ocorrido em frente ao Colégio Alfredo Freyre, ele dava as costas, não por desprezo, mas por sentir limitada a sua capacidade a carregar apenas um morto. Ele não queria saber, e agia, e fazia nascer em si uma nova consciência, não mais como se de nada soubesse, mas de fato nada sabendo. Ajudava-o nisso o seu isolamento. Ajudava-o nesse desconhecimento a descida para o ostracismo, que era em parte um afastamento, um gelo, que lhe impuseram os companheiros, e era em parte um degredo voluntário, por se desconfiar culpado, caído em desgraça. A sua solidão aguardava um julgamento, que não vinha, ou antes, sem se declarar já havia sido feito, porque ele amargava a sentença. Injusto, ele se dizia. "Fui ao limite", e ao dizer limite ele próprio se interditava, ele não mais se escavava, ele, João, que outrora fora tão cioso de sua capacidade de separar, para examinar por análise. Pois seu pensamento estava cheio de interdições. Havia pontos demarcatórios, dos quais ele não ia além. Havia pontos entrevistos, num relance, dos quais ele se afastava. Havia lacunas, entre duas câmaras de um mesmo ponto de aprofundamento. Contra essas lacunas, e de seu visível mal-estar pelo vácuo que não lhe permitia um só desenvolvimento, ele se defendia com algumas idéias recidivas. "Fui ao limite". Ponto. Ao que houvera antes e depois ele não ia. À coisa mesma, que era o delicado músculo, móvel, vivo, que era carne e expressão do limite, ele evitava. Ao que ele evitava não evitemos nós, que estamos em cadeira mais confortável. Uma reação em cadeia assim poderia ser expressa: Délio atingiu Vevê, que abriu João, que abriu Samuel. Vevê, desconhecendo a cilada, levou Délio a Cíntia, que nada abriu, que teve os pulmões estourados. Vevê, testemunhando a crueldade sofrida por Cíntia, pensou em iludir a morte: abriu João, o secundário, um simpatizante que oscilava para a militância. João abriu o ponto com Samuel, pois considerou a hipótese, entre os golpes recebidos, que Samuel por aviso não faria esse ponto. Não satisfez. Como o temor era muito e o serviço prestado pouco, João abriu também Miro, como prova, excedente, de que nada mais teria a abrir. Não satisfez ao carrasco. Louco foi João em achar que os torturadores possuíam um nível de saciedade. Eles queriam mais, e mais, moldá-lo por ferros a um objeto dócil. Aquilo que os torturadores desejavam, essa coisa autômata, um robô, passava é claro pela subserviência, a destruição do amor-próprio do torturado. Quem rasteja, implora. Quem mendiga resíduos de vida, doa-se.... Apresentaram-lhe fotos de terroristas. Entre elas estavam as de alguns companheiros conhecidos, procurados. João tentou, a princípio, responder por generalidades:
- É de AP, sim, é de AP. A luta era desigual. Frágil era o caminho da generalidade. Havia inteligência naquela violentação. Foi quando João, perdido no escuro, se fez mais louco. Salvou-o uma descida à margem, salvou-se da queda, da total e absoluta colaboração, a saída por uma fresta indigna. E havia, naquelas circunstâncias, uma salvação digna? ele mais tarde se perguntou. Na hora, em meio ao sofrimento, ele apenas conseguiu dizer, às cegas: - Eu falo. Recebeu folhas de papel, que numerou. Em letras grandes, legíveis, ele escreveu. Disso ele se arrependeria, envergonhado, pela visibilidade, indubitável, do que fez. O que constituiria mais tarde no seu pensamento uma interdição, ao se dizer, "fui ao limite", na hora foi um desenho consciente, que ele afundava o traço no papel, como se marcasse a goiva numa talha. "Nunca fui terrorista. Fui presa fácil. Ingênuo também, quando me deixei envolver por uma ideologia que prega a subversão pela violência". Parou. Quase risca o escrito. Ah, soubesse o que isso lhe custaria mais tarde, quando estacaria num bloqueio mental, para não reconhecer que sua vida, inerte, deitado na pensão, bem merecia ser balançada, subvertida à força com toda violência! Naquele momento não. Nesse instante, que é um descanso entre uma tortura e outra, que ele quer evitar, ele se diz: "aos fatos, aos fatos, sê objetivo". Então ele escreve, sinuoso, para retardar a infâmia: "Os dobres que repercutiam no Recife, da guerra do Vietnã...". Detém-se, risca. Relê. Ao parar, sente-se observado. Então ele desce mais fundo, "rápido, eu tenho que ser mais rápido", e marca: "Samuel: estudante pobre..." Isso é o mais difícil. Ele ainda não sabe do ocorrido aos companheiros que delatou sob choque elétrico. Treme, hesita, mas ainda assim vai em frente: "Samuel, estudante pobre, parece que de Beberibe. Dava aulas de História, hoje é operário. Não sei qual é a fábrica. Vem tentando me convencer para o trabalho na sua área. Sectário. Temos ponto regular. Miro: é do curso de sociologia. Amigo de Vevê e Samuel. Dá aulas de português no Curso Pernambucano. Gosta de fazer poesias revolucionárias. Queria me fazer entrar para um grupo de estudos marxistas. Temos ponto". Pulou uma linha e acrescentou: "É tudo o que eu sei". Olhou, contou as linhas: era muito pouco. Com aquilo ele não garantiria a sua salvação, que, óbvio, era a fuga à tortura, a sua liberdade, vivo. Ele sabia mais, e estava impedido de dizer, até pela natureza e método que existem na delação. Dizer, falar, por exemplo, denunciar que Samuel era seu amigo. Denunciar que compreendia, e essa compreensão lhe chegava num sentimento de desculpa, que compreendia as razões de militância de Samuel. Que, até, se não estivesse preso, encurralado, achava até justas as suas razões. Que um certo dia, que em muitas incertas noites, pensara em amar Cíntia, estúpido que foi. Que Vevê era um indivíduo simpático, nos seus arroubos, nos seus rompantes, na sua inteligência de adolescente de exceção. Que espírito precoce naquele menino, ele sabia. Delatar que comungava da fome de reino de espírito de Miro. Aquele Miro, do qual indicara o ponto. E isto, esta indicação, a indicação de um indivíduo com quem comungava afinidade espiritual, era como um dedo voltado de sua própria mão, um soco em seu rosto com as próprias mãos. "Eu irei na Zeferino Agra, em frente ao Colégio Alfredo Freyre. Lá, atinjam-me". E não era um atingir-se, um ferir-se na superfície do peito, na carne, era um ferir-se em algo bem mais precioso, era um atingir-se no que o diferençava dos dados prosaicos, de certidão de cartório, do seu nascimento e morte. Toda aquela delação, ele começava a se angustiar, não era uma entrega de informações exteriores, um relato objetivo de indivíduos objetivos numa subversão objetiva. Ele estava nela, era parte dela. Naquelas linhas ele se arrancava uns dedos, entregava-os. Amputava-se uma perna, entregava-a. Seccionava-se outra perna, dava-a. Se aquilo era a moeda de sua liberdade, ele sairia vivo como um homem-tronco, arrastando-se. Por outro lado... a sua fronte porejava. Ele não podia ver esse por outro lado. Estava entre o poço e o pêndulo, e buscava com os olhos dirigidos para o alto uma telha transparente de luz. Era observado, sabia-o. Exigiam-lhe resultados, práticos, geradores de dossiês, objetivos. Ou isso ou o inferno antecipando a morte. Desaparecer de vez, com todos os seus membros. Quebraram as pernas de Vevê, fuderam os pulmões de Cíntia, meteram fios eletrificados nos seus rins. E somente ficaram as cáries da guerra: parafusos, sangue e ferros. "Que seja!", ele se disse. E com a mão trêmula, correndo sem controle, passou a escrever com sofreguidão em outra folha: "Eu vi Cíntia pela primeira vez numa festa, na casa de Vevê. Quem quiser conhecer comunista que vá a uma dessas festas. Lá se achavam, pelo que me lembro: Samuel, Miro, Cíntia, Tonhão, Carlos, Valfrido, Pepe, Lígia, Humberto, Aninha, Eremias, Ivo e Joaquim. Desses quem eu mais conheço é Samuel. Era professor de História e virou operário. Acho que fundou um núcleo comunista na fábrica de alumínio, em Igaraçu. É um militante corajoso e sectário..." Aquilo que o pudor e a contenção suprimira antes, resumindo, selecionando e montando um microcosmo na falação, agora corria solto, sem peias, numa escrita bêbada cuja censura se ausentara, porque João queria se fazer eloqüente, a fim de resguardar o corpo, ainda que com a alma mutilada. Havia de vencer a desconfiança do carrasco, mostrar serviço, mostrar-se um bom menino, que descobrira a tempo o seu erro, e com mágoa se mudara para outro sítio. Isso ele havia que dar a entender, deixar bem patente a impressão. No momento mesmo de sua escrita de aparência automática - e automática não era, porque seguia um projeto, uma deliberada intenção -, ele olhou para os lados, com medo. Medo de ser flagrado, num resquício de vergonha. Não a vergonha do próprio ato, mas vergonha que do seu ato fosse dado um público conhecimento. "Ninguém", assegurou-se. Só a cumplicidade do carrasco. E clandestino foi escrevendo. Se ninguém conhecesse as circunstâncias daquela delação, era como se o crime não tomasse existência, ele se disse, no mesmo recurso dos amantes que reincidem, cínicos, no adultério, ao mesmo tempo que à luz das pessoas referem-se a suas esposas, a seus esposos, à constituição da pura família, num pervertido e manhoso fingimento. Olhou e foi em frente, marcando a goiva a sua queda. Entalhando, mas diferente do artesão ele queria o anonimato, pois aquela relação de nomes lhe era estranha, uma lápide de nomes de um jazigo de pedra num cemitério distante. Ainda que marcando-os, aquilo repugnava à sobra do João que ele queria manter, nos restos de dias de sua vida. E marcou, sem Deus, sem referência e sem alma, com a mão que lhe ficara estranha: ** Poupemo-nos. Como a marca do batom no cigarro que à noite passada era da boca que amamos, e hoje resta no cinzeiro, mistura e azedo de álcool tresandando, e a este último estágio nos recusamos, e se o enfrentamos confundimos o próprio amor que houve; assim como se furtam os olhos e a lembrança à decomposição feroz do que em seus melhores tempos foi cara e apaixonante vida, poupemo-nos: a nossa realidade, ainda que cruel, não precisa escarafunchar a morbidez, que nem é mais incisiva nem mais verdadeira. Os olhos que avançam para a decomposição, decompõem, nesse avanço, a própria crueldade. Uma amputação, uma perna, as vísceras, examinadas com minúcia, parte por parte, elidem e iludem a violência sobre o ser íntegro que houve antes da explosão. Acostumam os olhos, e esse acostumar perverte e torna prosaico o ser, que se dilui entre os objetos. Recusemos tal verismo. Mas não ocultemos a totalidade do ato: João, para sobreviver, entregou mais nomes do que o esperado. Com a ausência de pudor dos casais que vão ao divórcio. Era este o rosto de Samuel, o conteúdo de sua pergunta, insistente, que João na cama do seu quarto não compreendia: - "... precisava descer a este nível, João?" A cama de solteiro na pensão era estreita. Ela apenas ganhava margens de consistência de nuvens de inverno, à resposta imediata de João: - "Fui ao limite. Compreende? Limite". E essa palavra para ele era um vocábulo grego, que se dizia para cessar o desconforto, à semelhança da ignorância dos médicos que dão um nome a uma doença como se esse batismo trouxesse a sua resolução. "Vivo fumando" passou a ser uma câmara necessitada por seu espírito. Descia as pálpebras, e com os dedos em torquês tocava os globos cobertos nas órbitas. "Estou sem Deus e sem guarida. Vivo fumando". Os dias no trabalho eram longos e as noites na pensão um vácuo, que ele desejava fechar com cigarro após cigarro. Fumaça, a cova se enchia na superfície de fumaça, que logo era engolida e deixava em seu lugar uma cara escura e funda. Levantava-se, e para não ficar como doido aos círculos andando no quarto, ia à janela. Sim, que irônica felicidade, seu quarto agora possuía janela, num primeiro andar que dava para a Rua Doutor Leopoldo Lins, transversal da Avenida João de Barros. Morava só, e essa era outra irônica felicidade, estava ganhando dinheiro suficiente para pagar duas vagas e ficar só, nessa nova pensão. De tamanha irônica ventura não lhe ficava nem a ironia. O prédio, um sobrado de 17 quartos e 2 banheiros, com jardim e alpendre, que chamavam de varanda, daria em sua descrição física uma imagem falsa, em razão dos dramas das pessoas que encerrava. Uma radiante fachada, que se obscurecia como a Casa de Usher, pela conformação escura que lhe davam os seus participantes. Inquilinos à primeira vista, proscritos revelavam-se, ao se sentir a sua vizinhança. Ainda que fossem mudos eles conformavam uma atmosfera. Invisíveis, João sequer trocava com eles um cumprimento. Estava por demais afundado na própria treva. Na janela ia, petrificado a quem o visse na rua, como se fosse um totem único. Pois não é típico do candidato a suicídio a percepção exclusiva do seu desespero? Que lhe importavam os outros, se os outros, quando com eles se importou ....? As suas orações verbais não se concluíam, tornavam-se, nos seus impedimentos, autênticas jaculatórias. Ah se lhe fosse dado crer, com a razão, para atingir a graça de um redimido! As suas lacunas eram preces fervorosas, a que ele apertava os olhos, quase descendo de joelhos. "Senhor, dá-me a paz (se eu for digno). Fulmina-me (se eu não tiver o merecimento). Perde-me na areia, faz-me teu mais mísero grão, devolvendo-me a paz". João em nenhum instante de sua vida teve a paz. Agora no entanto buscava-a, como se em algum lugar ignoto da sua alma a paz existisse. Virava o rosto para o edifício em frente, "ali não reside a felicidade, nem a paz, para quê vê-lo?", desejava a chuva, o temporal, queria chorar, e os olhos e o tempo resistiam secos. A diluição, a resolução do ser que a lágrima dá, a chuva mansa que vai destruindo a mágoa e o nó, seriam bem-vindas. Fumava, mais uma vez na esperança. Alguém já viu o abrasamento do próprio tecido, a destruição íntima da própria carne, o saneamento tragando a dor, a assepsia, matando-se, que a queima do fumo dá? Sim, Álvares de Azevedo nos seus 20 anos, 122 anos antes. "Dei-me agora ao charuto em corpo e alma". A chama e a fumaça voltavam, "passeio os dias pelo meu corredor sem companheiro, sem ler nem poetar. Vivo fumando". Fechava a janela, e ele bem queria que seu corpo e seu quarto esvanecessem, em nuvem de fumaça. "Solitário passo as noites aqui e os dias longos: dei-me agora ao charuto em corpo e alma. Vivo fumando". Fumar para viver, parecia, viver para fumar, ele se dizia, fumar para sentir a duração de sua morte, da ponta do cigarro ao filtro, era o seu passo. "Acendo o meu último cigarro", dava-lhe vontade de dizer. Mas ia ao seguinte, emendando-o. "Só mais este". Fumava então para mais fumar, fumava por fumar, realizando-se, pela ilusão de se desfazer em fumaça. João buscava, desintegrando-se, uma ambientação religiosa. Incenso, de altar, onde em vez de alegria imolava-se, sacrificando o inútil corpo. A ambição era tosca, quimérica e grande: queimar sua alma, incendiando-se. E isto lhe parecia uma possibilidade alcançável, manifesta a seu estado. Deitado, jogando fumaça, fixava os olhos no teto, e de tanto os fixar num só ponto, abstraía o pequeno continente em volta. Esquecia-se de si, do intratável corpo, enevoava-se, enevoava teto, cama, livros, mesa. Então era fácil queimar a sua alma. Ele era um objeto gelatinoso, de forma plástica, elástica, que poderia ser tocada por incêndio e reduzida ela própria a névoa. Assim como o olho que fitamos no espelho, e que se deixa esquecer, levado pela perturbação do hipnotismo íntimo, refletido. Num espelho, dele para ele, para ele sem ele, sem ele para a névoa, ela, a alma. Mais que verossímil, tangível pela realidade virtual que o seu desfazer-se alcançava. O que a princípio era um dar-se aos cigarros em alma, fazia-se um dar a alma aos cigarros. Queimando-se queimando-a. ("Estrela morta", ambição vã, "havia uma outra imagem que eu sonhava no meu peito": cantavam juntos, batendo com as mãos na mesa, e com os pés no chão, Yellow Submarine. Bebiam e repetiam a ficha na Wurlitzer, Miro, Vevê, Cíntia e um indivíduo como João. Sentiam e gritavam que mundo louco e urgente, tudo estava por se resolver num átimo, a humanidade estava por um fio, e enquanto não vinha, que mundo louco, todos os amigos juntos moravam num submarino amarelo. Embaixo das ondas.) Espichava as pernas, deixava as mãos cruzadas sobre o peito. Que viesse o sofrer, era bom. Inspirava, exalava-se, ao ir e vir dos pulmões. Ao cheiro empestado do quarto ele estava adaptado. Quando sentia dificuldade em respirar, expirava forte, abrindo os braços, crucifixo. Aquilo, se não era a paz, era um bom anestésico. E não é ela, a paz, também um anestésico? Súbito, ao vir descendo manso na rua do sono, ouvia passos na escada. O seu corpo se levantava. Sentado na cama ficava a aguardar batidas na porta. Estariam vindo buscá-lo? Das esquinas do sono ele mais uma vez era arrancado. "Estão voltando". Via-lhes as botas, cercando o quarto, com as armas apontadas contra a sua cabeça, aguardando que ele desse a volta na chave da porta. Já deviam estar espalhados na varanda e no jardim, para apanhá-lo, se ele tentasse a fuga pela janela. E tudo recomeçaria: algemas, porradas, afogamentos, pau-de-arara, interrogatório: abre logo, porra! Quem sabe, dessa vez teria a queda definitiva no escuro, papel queimado, pois nada mais ele sabia. Dias houve em que não lhe foi possível distinguir se os passos existiram na escada ou na imaginação de um cochilo. O som de atropelo e correrias na madeira era conhecido, desde o tempo do sótão na Princesa Isabel. Estes sons agora eram duros, pesados, fechando-se num cerco. Vinham de animais de maior porte, mais perigosos. Não eram passos dos habitantes dos quartos vizinhos, que subiam a escada sem cautela, apresentando-se límpidos, francos, e desapareciam no destravar metálico da fechadura. Já os passos do terror davam um primeiro golpe, lá embaixo, e depois, como que arrependidos do rumor provocado, aproximavam-se num abafo, evitando o choque dos saltos contra os degraus. Escorriam por fim arrastando-se, antes da primeira batida na porta. Viriam, era certo, pois ele sentia pendente a sua ameaça. Que ele esperava, "é agora", e não chegavam. "A colher não tem côncavo nem convexo", ele se dizia, vendo essa colher. Ela estava tão disforme que o escavado e o dorso eram indistinguíveis. Isto queria dizer que tanto fazia ter ouvido os passos no sono ou na escada, ou porque a batida na porta continuava pendente, ou porque sua angústia não separava o acontecido do aguardado. Era o mesmo sentimento, era uma só realidade, vivida, como prenúncio ou objetiva. O quarto, o seu lugar naquele quarto, eram transitórios, sabia-o. Para onde? A possibilidade de que viesse a sofrer mais uma queda deixava a sua vida em suspensão. Retirava de seus dias um acabado plano. Ascender à burguesia, e portanto estudar, para trabalhar, para jogar-se às feras, ao mercado? - Digamos que sim, se isto lhe fosse possível. Havia um quarto escuro, separando-o, entre ele e a sua possível outra vida. Ele se encostava às paredes e sentia que era preciso ultrapassá-lo, ao fosso, que existia nesse quarto, de sua próxima queda. As pernas restavam frouxas, sem músculos inteiriços. Inferno em segredo. Estava condenado. Aquilo era uma punição injusta. Sem pagamento definitivo. Depois de ser preso, sofrido tortura, o que mais eles queriam? E aqui, ao dizer "eles", João se voltava para os ex-companheiros de militância. Ele se desviava das botas da repressão, que afinal cumpria o seu papel, desviava-se da própria consciência, filha indefesa, e se virava para os ex-companheiros, assim como as mães resguardam o erro dos filhos, atribuindo-o às más companhias. Mas não só. Tinha o sentimento ruim de um homem caído em pecado, ante um tribunal permanente. Pois não representavam "eles" um tribunal sem clemência? "Eles" estavam na origem dos seus males. Sabia-se sem perdão, no íntimo. Transformava isso num saber que deles não podia arrancar o perdão, e essa transformação ele externava, num resmungo, sentado na cama. Nessa altura a angústia se mudava em mágoa. "Como são estreitos! Estúpidos. Burros. Grosseiros. Imbecis. Cegos". E continuaria, praguejando, numa série de adjetivos para se aproximar do que ele próprio não conseguia a expressão. Pois ele não era o seu melhor advogado de defesa. Faltava-lhe o cinismo. Queria receber bondade, indulgência. Ponto. A partir desse desejo era incapaz de fundamentar as razões do seu pedido de clemência. Pois o que ele acusava nos ex-companheiros nele próprio estava feito: a intransigência de um princípio ético: Não Delatarás. Isto estava escrito em ferro ardente, que ele desejava ter vencido. Esse impedimento não o deixava ver-se, voltar-se sobre o seu estado, para daí enformar a sua defesa. Como, se nele agarravam-se juiz, réu e acusação? Ah se ele pudesse ver-se, e nisso vai a impossibilidade que é altear-se sobre a própria condição num tempo verde, impróprio ao fruto, anterior ao conhecimento que dá o fim das estações, ainda assim, sabendo-o impossível, ah se ele pudesse ver-se! Ele estava aprisionado, num quarto de pensão, amaldiçoando-se por haver perdido a sua têmpera. Acreditara, com a mais pura e pia inconsistência, que a revolução era um caminho entre alas de flores. Entrevira jardins de perfume, alvos a serem alcançados. Talvez ocorressem traumas, num azar, num acidente, suportáveis. Sangue, pouco, era até provável. Ela, a revolução, jamais despiria a sua face, a sua caveira e boca de horror. Liberdade e igualdade e justiça, objetivos tão altos que não seria possível que por eles os homens não se convencessem de sua humanidade. Quase como uma revelação, atingida pela força dos bem-aventurados. E por que não? Acreditara, com a mais sólida fé, que com eles, a começar deles, na militância socialista instaurava-se o reino da fraternidade. A fé, ela começara a quebrar-se ao quebrarem os ossos de Vevê, que o entregara. Quebrara-a mais, ele próprio, ao fazer uma relação tão completa dos seus irmãos. Enterraram-na quando o deixaram só, sem um pingo de compreensão. Pois o que era ele, a não ser um jovem que não suportara os dentes escuros da morte, e num ponto infeliz do seu aço, numa fratura, descera aquém do que mandam a vergonha e a decência? Falavam que ele havia perdido o amor-próprio, a dignidade. Diziam-no um traidor. E isto era mais do que insuportável. Não transigiam, para não ver que o seu pesar ainda era um resíduo do princípio Não Delatarás. Desconsideravam que naquelas condições a sua angústia era o seu maior patrimônio. Angústia que para ele mesmo era um mistério: o João que não se deixava ver. Delatou. Sim, delatou. "Mas em que circunstâncias? Estão cegos?!". Quebrara a sua fé. Porque, porque, porque ... apertava as mãos na cabeça, em pesadelo, em vigília, e muitas vezes, durante a noite, gritava: - "Basta!". Delatou, infringira um princípio. Verdade. Mas até que ponto mais fundo poderia ainda cair? E ajoelhando-se por fim, João chorava: "Senhor, mata-me, se eu deixar de ser um homem". As lágrimas, o pranto, se nutriam de sua dúvida. |
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