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2 de outubro de 2002 |
ou como evitar as linhas retas para andar direito (III)
Nivaldo Tetilla Manzano
A tragicomédia de Dom Quixote é a de quem, medroso, rejeita o risco da transição, e com ele o prazer, para se prender à identidade reiterativa do mesmo (dualista). A figura de Dom Quixote é um exemplo historicamente antecipado do individualismo metodológico. Dom Quixote busca a coincidência plena entre o mundo real que tem à sua frente e o mundo de sua fantasia cavalheiresca que, recolhida aos livros que lê, já não existe. A sua tragicomédia consiste em fazer com que a abstração da instituição medieval que traz na cabeça corresponda à realidade em mudança de sua época. É uma tal identidade que faria a ilusão de sua felicidade epistemológica: não criar nada de novo, senão confirmar a adequação da realidade à sua fantasia.
Dom Quixote é a mais genial encarnação da tragicomédia de todas as ideologias. Assim como estas, ele procede de maneira racional e lógica, ao juntar num todo coerente, com pertinácia e suspicácia, todos os pormenores e todos os fragmentos da realidade que acredita enxergar à sua volta. O que orienta a fúria delirante de suas investidas é o propósito, não de reconhecer uma diferença, uma novidade, mas de confirmar na realidade à sua frente a fantasia que leva na cabeça. Diferentemente do jogo machadiano entre Deus e o Diabo, cada novo lance de sua aventura consiste, não numa nova aventura, mas na coleta de provas adicionais que confirmem a sua verdade delirante. O mundo não lhe desperta interesse, senão como expediente e suporte para confirmar, por simetria lógica, que o verdadeiro mundo é aquele que traz no bestunto, confirmando assim, inversamente, que o mundo real de Sancho Pança não passa de fantasia. Assim, os tropeços, os riscos, os perigos e os descaminhos fantasiosos nos quais se perde representariam para ele apenas um desvio do percurso lógico, em circuito fechado, que tem início e se conclui em si mesmo, como se nada de real pudesse ocorrer entre uma operação de inferência e outra. Grandes filósofos, como Descartes ou Hegel, que procederam do mesmo modo, por razões corporativas são poupados do apodo de quixotismo pela tradição acadêmica. No mundo funcional da atualidade, o valor ideológico supremo é o quixotismo, ou a "ascensão da insignificância" da coisa, no dizer de Cornelius Castoriadis. No papel de Dom Quixote, tem-se, por exemplo, a figura do turista globalizado: sempre o mesmo aeroporto, as mesmas grifes, o mesmo frankenfood, os mesmos hotéis, o mesmo relógio, o mesmo conjunto de malas - tudo ordenado antecipadamente de maneira tão perfeita que não existiria possibilidade de ocorrência de qualquer novidade, a despertá-lo para a sensação de que ainda não morreu. Eis o certificado da "qualidade do serviço" globalizado. * "À medida que se conforma a um estereótipo", escreve Vaneigem, "o papel tende a se congelar, a assumir o caráter estático de seu modelo. Ele não tem nem presente, nem passado, nem futuro, porque ele é um tempo de pose e, por assim dizer, uma pausa no tempo. A reprodução aqui está assegurada pelos ritmos da publicidade e da informação, pela faculdade de fazer o papel falar e, por conseguinte, pela possibilidade de se erigir um dia em estereótipo". O heroi, o self made man, o vencedor é aquele que, empenhado em se fazer reconhecer aos olhos do mundo pela força de seu próprio engenho, modela a sua personalidade segundo os critérios da impessoalidade do estereótipo. Assim, o vencedor, ou o especialista, é ninguém, um vazio hipertrofiado de nada, que exibe como virtude conquistada com o suor do trabalho (em geral, dos outros) a façanha de se ter convertido numa cópia perfeita do que não existe, senão no mundo de sua abstração. A identidade entre a pessoa e seu estereótipo é o arremate de sua nulidade, uma negação programática de sua existência singular, única e insubstituível, conflitante e solidária. * Todas essas prestidigitações, com vistas à afirmação e garantia da certeza, têm em comum o fato de escamotearem o sentido de interação, a noção de meio. Constituem-se, em projeção reflexa, da falsa segurança oferecida pelo dinheiro/capital. A teoria de Charles Darwin sugere que a seleção, atuante sobre os organismos no meio, dá origem a novas espécies. Sempre mecanicamente, porém, sem interação entre o organismo e os seus meios interno e externo. Em Darwin, que parece espelhar a sua ciência numa ontologia providencial, o organismo é o objeto, não o sujeito das forças evolucionárias. A variação individual entre os organismos emerge como conseqüência mecânica das forças internas e externas, que são auto-suficientes, ou seja, independentes do organismo. Se o meio muda, não é em conseqüência de sua interação com os organismos, e sim de eventos cosmológicos, geológicos, climáticos, etc. O darwinismo clássico faz do organismo uma emergência mágica resultante da justaposição mecânica entre forças internas e forças externas. Da contiguidade entre dois determinismos, emergiria miraculosamente o acaso. A galinha (o meio) é a transição, metodologicamente ausente, entre a evolução de um ovo e a seleção de outro ovo. Santos, em seus papéis de barão e banqueiro, é a transição, metodologicamente ausente, entre o Império e a República. Elimina-se, assim, o espaço do drama, o prazer e o risco, o encantamento, em nome da certeza e do controle sobre a realidade. É mediante tal prestidigitação que se acredita poder afastar o autêntico sentido de interação, identificando-a, equivocadamente, com relações entre funções. Do mesmo modo procede Ludwig von Bertalanffy, em sua Teoria Geral dos Sistemas. Biólogo, Bertalanffy rebelou-se, inicialmente, com o paradigma da física aplicado à biologia. Advertiu que o paradigma não permite distinguir um cão vivo de um cão morto. Seria preciso reintroduzir o cão vivo no laboratório, do qual havia sido banido pelo cientista receoso de que o seu rabo, em agitação contínua, a descrever no ar trajetórias imprevisíveis, esbarrasse numa de suas hipóteses "experimentais", pondo todo o trabalho a perder. Infelizmente, o próprio Bertalanffy acabou procedendo do mesmo modo, ao estabelecer para o rabo trajetórias previsíveis. Em escolho de igual natureza chocou-se o grande matemático do século passado, Alan Turing, ao pretender mediante o uso de sua matemática descrever o processo de diferenciação celular. Não há como sair do impasse, senão abandonando as noções de estrutura e função. É preciso ter em mente que o meio não preexiste ao organismo. Não é uma caixa de correio à espera de que nele se deposite a carta que se quer enviar. Não é um galho inacessível da árvore à espera de que a girafa encompride evolucionariamente o seu pescoço. O organismo não é um mero medium neutro, como o supõe a cibernética, pelo qual as forças externas do meio, ao se confrontarem com as suas forças internas, sem interagir efetivamente, produziriam a mudança. O meio faz-se meio na sua interação com o organismo (espécime), e este faz-se organismo (espécime) na sua interação com o meio. O meio, em sua interação com o organismo, normatiza, ao individualizar, e se individualiza, ao normatizar. E assim procede também o organismo. Não há dois meios idênticos, assim como não há dois organismos idênticos. Ou seja, o organismo influencia a sua própria evolução e a do meio, ao agir ao mesmo tempo como objeto da seleção e como sujeito criador, em interação com o meio, das condições dessa evolução. O organismo participa da criação de seu próprio desenvolvimento, e o resultado de cada estado de seu desenvolvimento não é determinante na transição para o estado seguinte, pela simples razão de que o estado seguinte é dependente de como o organismo influi no que virá a ser o resultado anterior de seu desenvolvimento, quando se encontrar no estado seguinte. Um problema auto-recorrente. A estabilidade dos fenômenos, naturais ou culturais, conjuga-se no tempo passado, aquele que já não existe. * A discussão sobre os aspectos implicados na gestão ambiental integrada da Zona Costeira contribui para se enxergar melhor o caráter unitário do espaço em que convivem o problema e a solução: eis a interação co-evolutiva da pessoa do turista com suas partes. À luz da exposição feita acima, pode assumir-se a pessoa do turista como sendo um ambiente no qual interagem as suas "funções" (paladar, intestinos, etc.), ou papéis. Na referência ao ser humano, o ambiente apresenta-se como um contexto. Um contexto é uma maneira de se representar a realidade, sobre a qual vai falar-se mais à frente. À diferença de uma simples abstração, ou de uma forma, como uma figura geométrica ou um conceito, o contexto, embora seja também uma representação da realidade, inclui num mesmo espaço unitário, prático, real e abstrato ao mesmo tempo, o sujeito que a representa, que é a sua referência. Difere, pois, da noção de objetividade na ciência, a coisa social, que salta para fora do campo da subjetividade do cientista, para que ele possa instalar uma dualidade sujeito/objeto, que não interagem. Sujeito e objeto, isolados um do outro pela visão dualista, são como orelhas que, desprendidas da cabeça, alçassem vôos auto-suficientes e alucinados por conta própria. Encontrar-se em contexto é estar integrado (conflitante e solidariamente) consigo mesmo, com seus papéis, com a sua própria referência, que se assume como adequada para qualquer unidade de referência, o indivíduo, a sociedade, a cultura ou a humanidade. É encontrar-se em estado de mudança, pois das interações resultam estímulos que, ao incidirem de volta sobre o contexto, levam-no a co-evoluir (o contexto e seus componentes). A noção de contexto permite, assim, distinguir, sem separar, o plano da realidade, concebido como o espaço infinito de todos os possíveis (todos os objetos, recursos, noções, abstrações, formas, palavras e também o sujeito, com a sua racionalidade, os seus sentimentos, a sua ética, a sua estética, etc.) e o plano da abstração, ou do objeto, considerado isoladamente, que é parte também do plano da realidade, já que a realidade é tudo. Pode considerar-se como parte do contexto, e somente parte, a arena dos duelos lógicos, paladar x intestinos, na qual se digladiam também o papel de vencedor e o papel de perdedor, a luz e as trevas, o certo e o errado, Bush e Bin Laden, etc. Parte, porque não é possível conceber a disputa entre paladar e intestinos na ausência da pessoa do turista, o ser humano, que é o contexto de todos os contextos. Não há duelos lógicos sem audiência - da mente, por exemplo -, suporte, testemunha e juiz da luta. Opostos que, se se pudessem eliminar mutuamente, seriam como dois insetos fechados numa caixa de fósforo que se entredevorassem, desaparecendo ambos. O vencedor não subsiste sem o perdedor, e vice-versa. São papéis correlatos, e quem enxerga a correlação não são os papéis, que são abstrações, e sim aquele que a constitui, o sujeito, que é realidade. Numa analogia com a lingüística, o contexto é o plano do sentido, da linguagem, do discurso, cruzado implicitamente pela referência. O plano do sentido não pode dissociar-se da referência, sempre ausente do que é explicitado "objetivamente" (segundo o dicionário) no discurso. A referência é tanto o que orientava Sherlock Holmes em suas investigações, quanto aquilo que Holmes buscava reconhecer, para identificar o assassino. Ao dar início ao seu trabalho, o detetive sabia e não sabia do que se tratava e, por isso, cuidava (1) de enxergar sentido nas suas supostas descobertas parcelares à luz da referência que desconhecia e que, no entanto, o orientava na investigação; e (2) cuidava de se apoiar na referência, assumida como mera conjetura, ao emprestar sentido aos pormenores dos quais ia suspeitando pelo caminho. Os rumos da investigação de Holmes no futuro eram dependentes de sua avaliação no presente sobre os resultados do passado. Ao mesmo tempo, os resultados do passado, na sua avaliação do presente, eram dependentes dos rumos de sua investigação no futuro. Ou seja, tanto o problema encaminhava-se para a solução quanto a solução encaminhava-se para o problema. Um problema e uma solução auto-recorrentes: Política do Sujeito. O mesmo ocorria com Holmes quando pedalava a sua bicicleta. Ao dar uma nova pedalada, o ciclista Holmes buscava corrigir o desequilíbrio provocado pela pedalada anterior, tendo em vista, como sua referência, atingir um ponto determinado no futuro de seu trajeto (política do conceito). Assim, a correção do desequilíbrio anterior era dependente, ou estava orientada pela referência de seu futuro. Ao mesmo tempo - aqui entra a auto-recorrência - a garantia de permanência da referência de seu futuro era dependente da correção do desequilíbrio anterior. Ou, ainda: um sonhador idealiza a realização de um sonho, e ao dar o primeiro passo nessa direção, estimulado pela própria mudança de estado (contexto), divisa um novo sonho, um novo modo de sonhar e um novo repertório de sonhos. O futuro do sonho, que ainda não se realizou, incide sobre o presente do sonhador, induzindo-a à mudança no modo de sonhar; e o presente do sonhador, que já não sonha o que sonhava, incide sobre o futuro do sonho, induzindo-o à mudança, que vai mudá-lo. No empenho em remover a auto-recorrência do contexto humano, para fazer evoluir a ciência da objetividade sem sujeito, os "istas", em geral, como os marxistas-positivistas, gastaram rios de saliva e montanhas de papel. Derrotou-os o problema auto-recorrente do catálogo da biblioteca, enunciado por Bertrand Russell, sem que ele próprio dele tenha tirado as conseqüências em toda a sua extensão. Esse catálogo, que é parte da estrutura da biblioteca, tem a função, como se sabe, de fazer dele constar todos os livros nela guardados. Pergunta-se, então: de que livro constaria o próprio catálogo, já que também é um livro da biblioteca? Ora, sabemos, não há livro capaz de contê-lo, e quem o contém é a mente do usuário ou do bibliotecário - e somente ela -, que não é uma estrutura nem uma função, e sim a instância auto-recorrente: Política do Sujeito. A prática da auto-recorrência (re-flexão) que se colhem nesses exemplos, é a mais corriqueira das experiências. Na realidade, não há outro tipo de experiência. Se disso não nos damos conta facilmente, é porque somos adestrados no seu desaprendizado formal desde os primeiros anos de escola, onde se atualiza a ideologia da objetividade funcional, ou das aspirações absolutistas das partes de representarem o todo. A escola, que prepara o cientista ou o cidadão do futuro, visa à universalidade, em prejuízo da singularidade. Visa à igualdade, em prejuízo da diferença. E, assim, ao apontar para o horizonte, desvia-nos o olhar do próprio nariz - do contexto, ou da auto-recorrência. Não se trata de um programa inocente. Nestes séculos de liberalismo e marxismo-positivista - ideologias que professam a mesma a crença na linearidade do destino humano -, é-lhes indispensável acenar com a cenoura à frente do burro na carroça, para que continue puxando a carga e não se rebele. A quem se subtraiu, epistemologica e eticamente, a liberdade e a responsabilidade humanas é preciso infundir a confiança de que, a exemplo da maçã de Newton que não padece de incertezas, cairá do galho por decisão e mérito próprios. A pessoa do turista, que assim se teria fragmentado, em proveito das razões soberanas dos intestinos ou do paladar, busca-se compensá-la da perda de seu sentimento de unidade com o expediente vicário de uma transcendência qualquer, a coisa social ou a classe redentora, por exemplo, que se reconheçam como capazes de contê-lo nos varais. É assim que se produzem as miragens do paraíso capitalista e do paraíso comunista. Enquanto o capitalista acena com o progresso automático, o cozinheiro hegeliano-marxista da "totalidade da lógica dialética" vai enrolando o seu rocambole temporal, como o vem fazendo desde o albor da história, e promete entregá-lo no futuro à degustação somente dos últimos convivas. Aos que foram convocados para a festa antes da hora, caberá conformar-se com terem feito da existência um mero esboço do que poderia ter sido e não foi. São ideologias que se dão as mãos na empreitada de remover de suas vítimas o sentido da contextualidade. E lá vai, descontextualizado, o burro, assim convertido em passarela da História, para a passagem da Idéia, da Razão, da Raça Ariana, da Revolução, do Estado, do Livre Mercado, em resumo, das políticas do conceito dissociadas da Política do Sujeito. O escritor argentino Jorge Luís Borges vale-se da alegoria de seu conto "O espantoso redentor Lazarus Morell" para denunciar a ilusão da conquista da liberdade emancipadora, pela ação do futuro. Ambientada nas plantações do sul dos Estados Unidos, no século XVI, a história narra como o cruel redentor de escravos procedia. Escolhia um negro infeliz e propunha-lhe a liberdade. Morell dizia-lhe que fugisse do dono, mediante a sua ajuda, para ser vendido por ele, numa segunda vez, em alguma fazenda distante. O fugitivo receberia então a paga, correspondente a uma porcentagem de seu preço de venda. Com a acumulação do dinheiro assim amealhado, o escravo compraria finalmente a sua liberdade, das mãos de Morell. Antes, porém, que chegasse o dia da alforria, o futuro alforriado era destroçado pelos capangas de Morell, acumpliciados com ele no processo "libertador". A ideologia do progresso automático, da escatologia, da ontologia ou do messianismo desempenha aqui o papel orgânico de gerar, alimentar e manter o estado de salivação feérica em que se debate a vítima, em busca de resposta à exigência de uma existência plena, que somente se rende quando se deixa fragmentar. Trata-se de uma ontologia que é também uma ética, a ética do dever-ser, que se impõe indiferentemente à maçã da ciência e ao destino humano. O que se pretende com ela é fazer dizer sim à lei da gravidade a quem, senhor da criatividade, não está sujeito a lei transcendental alguma, senão à lei que assume na sua imanência, no reconhecimento de si mesmo em outrem. * Ora, digo eu com meu amigo Jorge, somente uma idéia de futuro que acene com me converter no que já sou conseguirá conquistar-me. O que está além, e se deseja, é um prolongamento de si mesmo, que somente é pressentido porque é também um aquém, a pulsar na intimidade do presente. A existência não se submete ao desdobramento no tempo, porque é simultaneidade e plenitude dos tempos. O mais caro desejo de alguém, de uma comunidade, de uma nação, é ser mais intensamente o que é - um ser votado a se comprazer na existência, diferentemente; pois é na eqüivalência que reside o prazer, e não na identidade do mesmo. E a intensidade nada tem a ver com a linearidade do tempo abstrato, simples autômato criado para representar a experiência da mudança. Entre converter minha sala de trabalho em sala de visita ou quarto de dormir não transcorre tempo algum, e sim uma mudança instantânea (ausência de densidade temporal) de contexto: basta, para tanto, reconhecer os diversos ambientes que nela se consiga divisar. O mesmo ocorre com meu gato "Gatozé": de sua experiência do calor nas cinzas do borralho no fogão à lenha, ele se transfere para o calor da caixa do modem de televisão a cabo, no exercício do princípio de equivalência, sem esperar pelo transcurso do suposto tempo objetivo. E o mesmo ocorre também com as plantas em campos de lavoura: na ausência do nitrogênio biológico do solo, elas recorrem ao nitrogênio mineral extraído do petróleo, em idêntico exercício do princípio de equivalência. São seres de "mente" algébrica. Meu mundo é um mundo interativo de ascensão exponencial. Nessa ascensão sem fim rumo a mim mesmo, admito (Política do Sujeito) subordinar-me ao que me proponho no futuro (políticas do conceito), desde que possa removê-lo em seguida (Política do Sujeito), para superá-lo, ou superar-me. Superá-lo ou superar-se segundo qual referência? A resposta e a pergunta são auto-recorrentes. E a certeza de que não estou delirando está em que sou um ser conflitante e solidário: é na alteridade (outrem) que me reconheço. A exemplo do que ocorre nos esportes, preciso reconhecer-me no recorde de outrem para ultrapassar os pontos por mim conquistados, indefinidamente, pelo prazer de fazê-lo. Eis um sentido de competição que se refugia para dentro das atividades lúdicas, banido da praça, onde se negocia o preço da mais-valia e se acumula capital entre aqueles que ainda não foram excluídos. É preciso restabelecer o sentido da competição autêntica, da festa no lugar do espetáculo, a competição que ocorre entre os papéis de uma mesma pessoa, de uma mesma comunidade, de uma mesma nação, entre nações, competição que, em vez de levar à violência e ao suicídio, conduz à própria exponenciação, na afirmação dos valores que lhe são caros. É graças ao pressentimento da equivalência que fruímos, com prazer no estranhamento, a diferença. Isso é o que ocorre no amor, por exemplo. Da mesma forma, no estudo da história comprazemo-nos na ambigüidade entre o prazer de estar lá - na diferença - para onde ela nos transporta, e o de estarmos cá, onde ela já não nos alcança. Da mesma forma, gostamos de viajar, em busca do reconhecimento de diferenças, desde que possamos retornar à casa. Gostamos de desempenhar um papel, desde que nos sintamos livres para desempenhar um outro. Entregamo-nos no cinema e na literatura a viagens interplanetárias, seguros de podermos retornar ao nosso mundo. De onde vem a ambigüidade desse prazer que é também receio? De se deixar de lado o conforto sedentário e ilusório da identidade, pelo desejo, não dissociado do risco, de provar a equivalência. De provar novas experiências sem abrir mão das antigas. Assim, instalamos a existência no modo do gozo exponencial: um novo modo de enxergar a realidade leva-nos não somente a divisar um novo mundo, mas também a sentir diversamente, de modo novo, o mundo que sentíamos, para dele fruir novamente. Queremos a um só tempo a permanência e a mudança, o que foi e o que será. Sem deixar de ser passado, o passado é convocado pela evocação contextual a retornar ao presente, para se revelar em algumas de suas dobras, até então não reconhecidas, e testemunhar a autenticidade, a um só tempo inaugural e antiga, do novo sabor do presente. Para isso servem as pálpebras, ou a noite, como aprendemos com o poeta Omar Kháyyám: protegidos por elas, fazemos descansar no recolhimento o nosso sentimento do mundo, para sermos despertados por um outro, na continuidade de sua descontinuidade, sentimento que instiga em nós, outra vez, o desejo de nos comprazermos na existência, diferentemente. Para desfrutar esse prazer no estranhamento, um prazer feminino por excelência, requer-se, como se disse acima, uma nova epistemologia, que faça retornar o burro aos varais e o cocheiro à boleia, uma epistemologia que não se dissocie da ética e de nenhum outro valor humano. Não como um seu apêndice, mas como um dos titulares, ao lado dos demais valores, do mesmo direito hoje reservado, de modo excludente, à racionalidade das partes. Então, não fará mais sentido a idéia de escassez, de uma carência intrínseca e matemática que seria preciso preencher, já que a escassez, como expressão da quantidade, é linear: estende-se na linha do tempo como uma flecha em direção ao seu alvo, sem jamais atingi-lo. Instala-se entre um antes e um depois, isolados um do outro, como abstrações fechadas em si mesmas, irresolvidos e frustrantes. Tanto não recupera o passado não vivido, quanto não entrega o futuro, medido pela mesma métrica que o transfere para mais longe ainda. Assim, a noção de escassez, além de contaminar o passado e o futuro, remove do presente o seu valor intrínseco, como momento de fruição plena, para convertê-lo numa ponte abstrata entre o que já não existe e o que não será. * A crença ilusória numa tal carência, irmã siamesa da fragmentação dos tempos, é indissociável do momento inaugural da racionalidade científica e do capital, que removeram, com a sua quantidade normativa, do espaço dos valores todos os demais, espaço no qual deveria residir a sabedoria, por definição unitária. Tome-se a solução dada por Galileu ao problema do movimento. Ao "resolvê-lo", Galileu teria lançado as bases da ciência moderna. Como o resolveu? Escamoteando, mudando o estado do problema, ou seja, criando sem admiti-lo um outro problema, um outro contexto, conferindo-lhe uma nova referência e novas propriedades às suas interfaces, a partir das quais pôde inferir a sua explicação derivada de seu movimento. Deixou dessa forma para trás, irresolvido, o problema da mudança, como o concebiam os medievais, na esteira da filosofia grega. Assim, Galileu reduz o problema concreto da medida da velocidade contínua do movimento ao problema da velocidade instantânea - eis aí a sua contribuição genial, sem ironia, no plano da abstração - , velocidade que não caracteriza nenhum movimento efetivo, uma vez que o corpo galileano não percorre nenhum espaço em tempo algum. A velocidade em Galileu já não é um atributo do corpo em movimento, mas é a velocidade de um corpo num determinado instante e num determinado espaço geométrico (abstrato). Observe-se que o instante, por definição, não tem densidade temporal alguma, da mesma forma como o ponto não tem dimensão espacial. A "solução" de Galileu, em vez de resolver o problema concreto e intuitivo dos medievais, mudou a natureza do problema, convertendo-o em abstrato e racional; não diz respeito ao problema concreto do movimento, por tê-lo reduzido a uma sucessão descontínua de instantes em posições geométricas abstratamente adjacentes. O instante, além de não corresponder à experiência do tempo real, não mantém vínculo real algum com o passado do movimento nem com o seu futuro. O movimento de Galileu, a exemplo de um salame, é fracionado em fatias tão descontínuas que já não se enxerga a sua continuidade. Aí estava o ovo da serpente do qual eclodiriam, séculos mais tarde, o pensamento digital, a cibernética, o pensamento único, as políticas do conceito, os duelos lógicos de que fala Gabriel Tarde, prenunciados em Parmênides e em Platão, para desconforto de Aristóteles. Antes de ser científico apenas, o problema da mudança e do movimento em Galileu, era político. Ele precisava de uma verdade tão capaz de controlar a realidade quanto a verdade do Papado. Assim começa a idade moderna da ciência (e do capital): o movimento, de caráter abstrato (quantitativo), antepõe-se como obstáculo à percepção da mudança (qualitativa). Esse modo de escamotear a mudança, reduzida ao movimento, parece decisivo no desenho da nova percepção que a cultura ocidental passa a ter desde então da relação entre indivíduo e sociedade, ou entre indivíduo e natureza, determinando o novo modo de se conceber a ciência (fragmentos de uma realidade cuja idéia de conjunto, ou referência, se perdeu). Com a mágica de Galileu, remove-se, desqualificando-o, o problema medieval e grego - não resolvido racionalmente -, da mudança, ou da metamorfose. A ciência moderna e o capital têm como seu marco inaugural um logro. * É por essa via que se torna possível aos modernos - de Newton a Darwin ou a Comte - eliminar o meio, o contexto, a relação temporal e espacial referenciada entre o antes e o depois, a continuidade e a descontinuidade a um só tempo, o estado do problema; e este, despindo-se da condição de estado para se converter apenas no Problema (sim ou não), passa então a exigir soluções definitivas, descontextualizadas, universais, totalitárias, excludentes na sua oposição, externas uma à outra: duelos lógicos. Em proveito da auto-suficiência ilusória da abstração, elimina-se o contexto, dissocia-se o sentido de sua referência - um estado de mudança, ideologicamente inconveniente por assinalar a ocorrência indesejada de um novo estado do problema no mesmo espaço da solução, indefinidamente. As Revoluções digitais (sim ou não) são definitivas, por encarnarem a marcha "necessária" da História dicotômica. A inconveniência, como é fácil de perceber, está nesse indefinidamente, na incerteza, na capacidade irremovível, de rever o passado, que nos ensina somente o que não convém, porque o que convém está por ser criado, na incerteza, no prazer com risco. * Se o leito assumir que o diálogo entre sujeito e objeto (o outro de si mesmo) não cessa, então convirá comigo em que é preciso repensar o ideal de conhecimento - e não apenas o ideal, mas o próprio espaço categorial recortado pelo termo "conhecimento". O diálogo somente cessa se se separam, isolando-os, os papéis no sujeito: conhecimento, de um lado, volição, de outro, por exemplo. Com a separação artificial dos papéis, ou das "funções", ou com a eliminação da distância - espaço da auto-recorrência -, entre o papel e o sujeito, tem-se a eliminação do conflito e, com esta, a eliminação da solidariedade. Esse ideal não se realiza mediante a operação abstrativa da redução do complexo ao simples; da redução do caráter unitário da realidade a uma das facetas que se abstraem dela; da redução da realidade intuitiva da mudança à abstração do movimento. Esse novo ideal de conhecimento avança na direção oposta, porém includente: em vez de reduzir, busca reconhecer novas diferenças, novas facetas qualitativas da realidade, indefinidamente, de modo que a cada estado do problema tem-se o reconhecimento de uma realidade contextual mais rica e mais robusta, e não mais simples e mais esquelética. Para além de quê se pretende chegar, depois do Zero ou Um? Quanto mais dimensões e diferenças se reconhecerem na realidade, mais próximo se estará de sua "verdade". Trata-se, pois, de um ideal que se inscreve na dimensão da intensidade, da qualidade, e não da quantidade apenas - necessariamente finita, em contraste com a realidade, que é infinita. Onde se tem a qualidade, tem-se a singularidade, a complexidade da realidade, a sua unidade, a pessoa do turista de Veríssimo, com as suas partes conflitantes e solidárias, a Política do Sujeito. * Retomando, agora com a explicitação das noções de referência e contexto. A linguagem, ou a atividade do detetive Holmes é intencional e visa a outra coisa que ela mesma. A referência é essa "outra coisa", a respeito da qual fala o sentido produzido pela articulação gramatical; fala e a pressupõe, mas não a explicita no mesmo plano em que o sentido é explicitado. Cada novo achado na investigação de Holmes não é portador auto-evidente de sentido para o esclarecimento do crime. A chave do mistério está na referência associada ao sentido, referência ao mesmo tempo presente (implicitamente) e ausente no plano do sentido. Não a explicita, porque seu amigo Watson e as regras da gramática não admitem ambigüidade: todo sentido é unívoco. Assim, por exemplo, posso referir-me, na proposição que enuncio, à "estrela da manhã" ou à "estrela da tarde", não a ambas ao mesmo tempo, se o que pretendo na proposição é evitar que se confunda um sentido com outro. Numa mesma sentença, ambas não podem ter o mesmo sentido, mas em ambas a referência é a mesma, a estrela à qual quero referir-me. Aí está uma das razões do fascínio pela leitura de novelas policiais. Quando digo que Aristóteles é preceptor de Alexandre, não afirmo, ao dizê-lo, que é aluno de Platão, embora a pessoa de Aristóteles, o sujeito real, seja a mesma e suporte de ambos os papéis. A pessoa de Aristóteles é a referência, sempre ausente daquilo que o discurso enuncia como sentido (ser preceptor, pai, naturalista, historiador, etc.). Em outros termos, o sentido corresponde a uma operação de fechamento, ou de delimitação abstrata da realidade, condição para que possa ser enunciada no discurso. A referência é aberta; opõe-se ao fechamento do sentido, porque ela é a fonte inesgotável de todos os possíveis sentidos, logicamente conflitantes. Assim, a pessoa de Aristóteles, além de preceptor, é pai, marido, historiador, naturalista, viajante, etc., podendo apresentar tantas facetas (interfaces, papéis, "funções") quantas se podem reconhecer, num processo infindo. O sentido é o que diz a sentença. A referência é o sobre o que o sentido é dito. A pessoa de Aristóteles é o suporte referencial de mais de um sentido, enquanto o preceptor Aristóteles não o é: segundo a lógica gramatical, o preceptor é preceptor, e não pai, por exemplo. Convém enfatizar que a referência não está compreendida explicitamente no espaço da linguagem, embora este a pressuponha e dela não se dissocie. O espaço (código) em que se produz o sentido é limitado, ao passo que o espaço da referência é ilimitado. Isso implica que a realidade como tal não pode ser dita: ousar dizê-la é já fragmentá-la, abstraí-la mediante uma operação reducionista. Holmes pode identificar o criminoso - uma figura que tem sentido para a polícia, para o juiz e para a sociedade quando esta se enxerga no espelho do Direito, que é apenas uma de suas facetas -, mas jamais se saberá à exaustão as motivações que o levaram ao crime. Da mesma forma, a operação de contagem na aritmética surge da redução da realidade à dimensão da quantidade, deixando-se de fora a sua dimensão qualitativa. É da impossibilidade de se enunciar a realidade como tal (objetivar o "fato") que se alimentam as versões veiculadas na rede do mexerico de Gabriel Tarde. Como implicação, tem-se que a referência não pode ser objeto de consenso, pois este somente é possível no espaço delimitado da linguagem, restrito à acolhida da univocidade do sentido. O consenso, indesejável pelo seu caráter reducionista, aplainador das diferenças, é impossível, pois uma mesma palavra ou um mesmo sentido podem remeter a diferentes referências, da mesma forma como palavras ou sentidos diferentes podem remeter a uma mesma (presumida) referência. A referência é a instância da auto-recorrência, ou o ambiente normativo/inventivo no qual se reelaboram os sentidos veiculados pela linguagem, espaço conflitante e solidário a um só tempo, por acolher a multivocidade dos sentidos. A atividade recorrente de reelaboração de novos sentidos corresponde à produção de novas diferenças, supostamente mais aderentes à realidade que se está enxergando. Os axiomas, que são as condições que permitem definir um objeto, são contextuais. Quanto mais se conhece um objeto de estudo, mais facetas este revela e mais muda como objeto; quanto mais se sabe, mais se reconhece que é preciso saber mais. Toma-se como exemplo a experiência coletiva de degustação de um determinado vinho: quanto mais cada um dos provadores dele experimenta, num contexto comunicativo, mais diferenças de sabor, aroma, textura, cor, buquê, retrogosto, etc. surgirão entre as suas respectivas apreciações. O reconhecimento de que estão provando mais intensamente o mesmo vinho dá-se, não mediante a supressão das diferenças experimentadas - como o faz a ciência sem cabeça, graças à estatística - mas mediante a sua exacerbação e a sua valorização, necessariamente diversa em razão da não coincidência, ou da irredutibilidade dos paladares. Não há dúvida, porém, de que a referência é a mesma - o sabor do mesmo vinho. É dizer que os promotores do consenso racional deixam de ter razão quando pretendem sustar o conflito na comunicação (interação) ao pressuporem a possibilidade reducionista de um acordo definitivo, que tornaria o prosseguimento da conversação desnecessário. Reducionista, explico-me: da comunicação, que brota da percepção, necessariamente conflitante e solidária, no seu caráter unitário, além da racionalidade, participam, de modo indissociável, porém distinto, outros valores, tais como as emoções, os sentimentos, a estética, a ética, o lúdico, etc. Se se eliminar a possibilidade de interação (conflito) entre as partes da pessoa do turista, esvai-se o caráter auto-recorrente de sua pessoa e esvai-se também a pessoa, pois é a auto-recorrência que a caracteriza, e o resultado é que, agora convertida ideologicamente em coisa (em Lei, em Lacan, por exemplo), a pessoa se deixará conduzir pela soberania auto-proclamada da racionalidade dos intestinos, ou pela soberania auto-proclamada da racionalidade do paladar. O consenso é possível e necessário somente no plano da abstração, como o da aritmética, disciplina que exige de quem nela se exercita o reconhecimento da legitimidade de suas quatro operações. Mas a paz, visada pelo consenso, não pode ser construída sobre uma abstração. No plano da realidade, ao contrário, entende-se que a conversação (ou conflito) não pode ter fim. Proponho um desafio a quem me contestar: juntem-se alguns interlocutores e definam com precisão a partir de quantos fios de cabelos perdidos na cabeça alguém pode ser considerado careca. Qual é a unidade contextual gênica? Quantas manifestações de indiferença são necessárias para esfriar uma paixão? Como separar com precisão o estado líquido do estado sólido? Com quantos paus se faz uma canoa? Quantas manifestações de cordialidade são necessárias para fazer de um estranho um amigo? Qual a intensidade necessária de sedução para Cleópatra conquistar Antônio? Em que momento termina o dia e começa a noite? Em que consiste a participação justa nos diferente usos das águas de um rio? Que valor atribuir à biodiversidade? Como separar com precisão o banqueiro do barão? Como separar com precisão a ciência da opinião? No processo de fervura da água na panela, em que ponto de sua superfície explodirá a primeira bolha? O mexerico contribui para a estabilidade ou para a instabilidade dos costumes? Seria o caso de se abandonar a empreitada científica? Tanto não é o caso que o que se propõe é enriquecê-la, mediante o aporte de outras contribuições epistemológicas (e ética, delas indissociável), que capacitem a ciência a lidar com a realidade humana - não apenas a realidade das ciências humanas, mas toda a realidade do contexto humano, a natureza e o universo. Surpreende, como fato de cultura, que todo o empenho epistemológico e metodológico das ciências se tenha voltado para o reconhecimento do universal no particular, do igual no diferente. Por que não investir, em atenção à exigência inescapável da auto-recorrência, esforço eqüivalente no reconhecimento do singular no universal, do diferente no igual? Eis um exercício a que nos convida o espírito original da álgebra de Al Kwarismi. A sugestão não é desprovida de sensatez: não existindo situações idênticas no contexto humano, a única possibilidade de reconhecê-las é aproximar-se da singularidade, reinstalar a Política do Sujeito, hoje destituída indevidamente pelas políticas do conceito. Não teria bastado, como demonstração da insuficiência dos paradigmas determinista e experimental a experiência constrangedora de Laplace, a dos evolucionistas clássicos e dos experimentalistas? Laplace, como se sabe, um dos criadores da Mecânica celeste, certo de que no universo existe um lugar para cada coisa e uma coisa para cada lugar, estava a demonstrar a reversibilidade das trajetórias, mediante o exemplo da omelete que voltaria para dentro da casca do ovo, quando a geometria de suas esferas celestes começou a derreter sob a ação da teoria do calor. Isso obrigou a Física a abandonar o determinismo para abrigar na termodinâmica, sem enrubescer, a probabilidade. Assim, a própria experiência da ciência atesta que a descontinuidade, provocada pela compensação estatística, acabou sendo absorvida para dentro da continuidade da Física clássica. A probabilidade, uma abstração, passou a determinar estados da matéria. Embora se trate de prestidigitação epistemológica, o caso atesta o reconhecimento involuntário de que a própria ciência, que rejeita a continuidade, precisa assumi-la magicamente, como cobertura ideológica para escamotear a sua ausência, condição para fundamentar a sua pretensão de controlar a realidade. Afinal de contas, é preciso entreter a audiência, que paga a conta e que, por não entender de teorias, espera que a régua e o compasso sejam capazes de lhe assegurar o mesmo tipo de certeza oferecida, anteriormente, pela bola de cristal dos adivinhos e pelas poções encantatórias das bruxas. Quanto aos funcionalistas e experimentalistas: Como explicar que a árvore pudesse estar dividida em estratos, antes que a bicharada e a girafa dela se aproximassem para ocupar os seus respectivos lugares? Probabilidades de quê seriam esses padrões, se se desconhece o resultado das interações entre os bichos, no seu exercício recorrente de redefinir os espaços que ocupam? Qual a garantia de que vão manter-se em seus respectivos estratos? Qual a garantia de que os estratos vão manter-se inalterados, como escaninhos, à espera de seus respectivos visitantes? Quem assim o determinou? A vida parou? Criar padrões de probabilidades, como sugere Karl Popper, não seria um exercício tão inútil como profetizar sobre o passado? Quantos conjuntos de interações diferentes podem resultar das interações entre os papéis de uma mesma pessoa? E de um grupo de pessoas? Antes de se concluir a conta, o efeito colateral de uma nova interação sobre o conjunto das interações terá alterado não somente a sua composição, mas também as suas propriedades. A única realidade que conta é a da singularidade, a diferença. Sim, reconhece-se utilidade nos padrões. Sabendo-se, com Pascal, que o nariz de Cleópatra, se longo um quarto mais de polegada poderia ter mudado o curso da história, é plausível que se busquem nas ciências sociais padrões de narizes de comprimento supostamente estabilizador. Mas ocorre tanto na política quanto em outra parte que o problema somente é real quando surge um novo nariz que foge ao padrão, em razão da mudança no seu tamanho ou do modo de apreciá-lo. O padrão tem, pois, a sua serventia circunscrita à possibilidade de a partir dele enxergar-se a diferença. Mas não se pode esquecer de que é a realidade que se busca enxergar melhor, e não o padrão, que aqui comparece somente para confirmar a sua inadequação contextual. Eis problemas que nem de longe se encontram resolvidos no dicionário, livro que, ao registrar em palavras o sentido das coisas, nos levaria supostamente a enxergá-las na sua transparência. Se isso não ocorre, é porque o sentido, dissociado da referência - ainda que a lógica e os códigos o neguem veementemente -, é insuficiente para expressar a complexidade do que cada um dos interlocutores enxerga no contexto. As palavras dão-nos o significado das coisas, não o seu contexto, que é por definição o sentido associado à sua referência, ou o sentido presente na consciência, necessariamente contextualizada. Não é possível precisar objetivamente, mediante a construção de um sentido, o conteúdo experimentado por cada interlocutor quando esse sentido se reporta, por exemplo, à referência última - o desejo de se comprazer na existência. Trata-se de uma referência sobre cujo conteúdo todos estão de acordo quanto ao seu desacordo recíproco, e vice-versa. Embora de caráter social e cultural, o conteúdo da intersubjetividade não pode encontrar-se codificado no plano do qual ela emerge, ou estruturado em pares de opostos: o individual emerge do social como nova instituição, inovação normativa e normatividade inventiva, como quebra de simetria, como expressão cultural diferenciada, única, intransferível na sua integridade, mas ainda assim comunicável, graças ao fato de o espaço da comunicação ser necessariamente multívoco, por se encontrar embebido numa prática social e cultural comum, conflitante e solidária. É por ser aberto à interpretação e à reelaboração de novos sentidos, que o conteúdo da comunicação, pretensamente unívoco por parte de quem o enuncia, torna-se multívoco ao ser acolhido diferentemente, na percepção, por cada um dos interlocutores: a comunicação não é telegrafia marxista-positivista. Dialoga-se da mesma forma como Holmes investiga. Em vez de intimar a realidade a responder sim ou não perante o tribunal da ciência sem cabeça que, assim, a constrange logicamente para dentro de sua camisa-de-força, escondendo-a em vez de revelá-la, o investigador Holmes e os interlocutores no diálogo buscam provocá-la, de todos os modos possíveis, para que ela se revele, a desabrochar em pétalas como uma margarida. Nada aqui a ver com Heidegger, a pastorear a sua continuidade desacompanhada da descontinuidade: a realidade revela-se somente como contexto - realidade e abstração a um só tempo -, em cuja referência reconhecem-se as propriedades de seus componentes. Na ausência do contexto, não faz sentido falar-se em propriedades. A experiência do poeta é elucidativa do papel da referência no discurso. Na poesia o poeta busca superar o espaço e o tempo, que condiciona a sua busca de expressão estética, para alçar-se à transcendência e assim fazer-se entender pelo seu público. Como expressão, a poesia é o produto da objetivação da experiência do poeta mediante a palavra - o poema. Para escrever poemas, o poeta precisa dispor (1) de uma maneira pessoal de combinar as palavras no verso, vinculada ao desejo de atingir a perfeição; (2) de um determinado modo de enxergar o mundo, vinculado a um desejo de comunicar a sua multividência singular a um público universal e (3) de um certo ideal mimético de comportamento, vinculado a um desejo de incorporar como referência de seu público a sugestão de mudança implícita em seus versos. Ao incorporar uma sugestão de mudança em seus versos - uma nova referência -, o poema materializa um modo de fazer, que se projeta como um desejo de mudar o modo de fazer de seu público; e este, ao mudar eventualmente, em conseqüência, irá estimular mudanças no modo de fazer do poeta, e assim por diante. O diálogo entre público e poeta, conflitante e solidário, que transcorre, não somente no plano do sentido, mas também no plano da referência, mediante a remissão das palavras do poema a ela, não cessa, a menos que a racionalidade de Habermas intervenha para silenciá-los, suprimindo assim a oportunidade enriquecedora de emergência de novas diferenças, de elaboração de novos sentidos e de novas referências. O monólogo, ou o pensamento único, impõe-se quando se elimina a referência, a auto-recorrência, a instância crítica (crítica não somente racional, mas integral, ou seja, epistemológica e axiológica). Reportando-me ao esquema que venho utilizando, posso dizer, então, que o sentido instaura-se e se move somente no plano da abstração (não dissociado do plano da realidade, que é a sua referência) enquanto a referência situa-se no plano da realidade, que também inclui o plano da abstração, uma vez que a realidade é tudo. A pessoa de Aristóteles, como fonte geradora de sentidos possíveis, é a realidade, a referência; os seus papéis são abstrações, que não se dissociam embora se distingam de sua pessoa e tornem possível falar-se dela. O ser humano é a referência última e intransponível da existência: a ela tudo se reporta e dela nada se exclui. É o ponto de indução, como diriam os matemáticos. O equívoco dos intestinos e do paladar, na sua pretensa auto-suficiência, é assumir que a solução deve ser completa (Zero ou Um), assim como está previsto na ordenação racional de seus respectivos sistemas. Eles não suportam o drama, a tensão, a expectativa, a transição, a incerteza, o risco, o prazer e o encantamento, que fascinam a pessoa do turista e o leitor de novelas policiais. (O risco, aqui, é medido pela quantidade de esforço despendido na direção não desejada). Por força de uma auto-sujeição ideológica que dura há séculos no Ocidente branco e cristão, sujeição ao pensamento linear, não se admite como propriedade intrínseca e irremovível do contexto a idéia de conflito. A ciência dos conceitos foi criada para eliminá-lo. O mundo ordenado pela lei divina, na qual se inspira Newton, é equilibrado, não é conflitante: o pardal não bota ovo no ninho do tico-tico, nem Odisseu hesita entre dois amores. Por isso, a ciência sem cabeça não enxerga a complexidade da realidade, como o mostrou Espinosa. Aprendemos com Espinosa que resolver o problema implica necessariamente não resolvê-lo por completo, e sim instalar a sua solução no espaço do problema, que se configura por sua vez como uma nova solução e um novo problema, e assim indefinidamente. O apetite desperta o desejo de saciedade, e este, o apetite. É nesse sentido que se fala em estado do problema - a sua descontinuidade na sua continuidade. A despeito das aparências, o problema e a solução não mantêm entre si uma relação linear e seqüencial; são, ao contrário, simultâneos e coextensivos: disputam o mesmo espaço de possibilidades, conflitante e solidário. Vejam-se os casos de Holmes detetive, de Holmes ciclista e do sonhador. Veja-se caso do turista. O desejo de viajar é a solução visada pelo turista; o problema gerado pela solução instala-se nesse mesmo espaço (o da solução) na forma de exacerbação do conflito entre o paladar, que insiste em partir, e os intestinos, que insistem em permanecer em casa. Vislumbra-se ao lado do conflito a presença da solidariedade, que se expressa na necessária coesão entre os opostos, a sua unidade, que é a pessoa. Uma passada de olhos pela história das idéias vai mostrar que o grande espantalho que sempre apavorou e apavora quase todos os filósofos e cientistas do conceito é a incerteza - daí a sua necessidade compulsiva de delimitar, de separar o cristal da fumaça. A criação da ciência atende a uma evocação nostálgica da onisciência divina, de caráter providencial. Ao longo dos séculos desperdiçou-se um gigantesco esforço intelectual para remover a incerteza do horizonte humano. E, ao fazê-lo, militou-se, ipso facto, pela remoção do prazer, que somente é prazer se associado ao risco. Mas o fato é que tanto no caso da maçã da ciência quanto no caso do ser humano, não há prazer algum em cumprir um destino que se limita a cair do galho. Cada um de nós quer dar-se o prazer, não isento de risco, de traçar o destino a gosto, exercitando-se, não na liberdade da maçã, que é nenhuma, e sim na liberdade contextual, que abre para a existência humana a oportunidade de jogar o jogo de criar regras de jogo, de acordo com a referência do contexto em que se está. Odisseu, náufrago, não sabe se conseguirá retornar à casa. Essa é, por excelência, a imagem da condição humana. Tanto teme deixar-se prender pelos encantos de Calipso, que lhe oferece a imortalidade, quanto, desejoso de cair nos braços de Penélope, receia tornar-se vítima das maquinações do deus Posseidon, que espreita a passagem de sua nau para convertê-la em rochedo. Decidir-se - eis o que caracteriza a humanidade de Odisseu, que assim procede orientado pelo desejo (referência) de se comprazer na existência. Por incidir sobre o plano orientado da abstração (sim ou não), a decisão é um salto no abismo. Se a decisão de partir o leva a deixar Calipso, não lhe entrega no ato a sua Penélope. No novo espaço aberto pela decisão, instala-se o risco de retomar a travessia por mar. Posseidon infunde temor a todos os navegantes. Desse temor brota o desejo ilusório de se controlar a realidade. Dessa ilusão nasceu a cibernética, que sonha com converter o mar em geleia, para desencanto do surfista. A realidade é incontrolável - embora sempre orientada pela referência do desejo de se comprazer na existência -, quando as interações entre os papéis ocorrem livremente, sem constrangimento; quando o turista ouve, sem emitir juízo anestesiante, as razões de seus intestinos e as razões de seu paladar. É possível precaver-se da adversidade climática porque não se controlam as condições térmicas, as condições hídricas, a intensidade luminosa, a duração do dia, os fatores químicos e os fatores mecânicos que nela intervêm. Se se pudessem controlar os ventos, a umidade, o calor, a formação de nuvens, etc., não se desenvolveria a perspicácia de suspeitar da iminência da chuva, prevenindo-se com o guarda-chuva. O surfista não desfrutaria do prazer, não isento de risco, de surfar. O desejo cibernético de controlar a realidade inspira-se na auto-regulação do clima, dos ecossistemas ou da célula. Não é preciso a intervenção de ninguém para que a concentração de oxigênio na atmosfera seja constante, para que a temperatura da Terra se mantenha, para que a composição dos oceanos seja a mesma. Tais sistemas são abertos, o que significa dizer que mantêm interações permanentes com o meio, com o qual trocam energia, matéria e informação. Um sistema aberto seria uma espécie de reservatório que se enche e se esvazia à mesma velocidade, mantendo-se a água no mesmo nível, enquanto o volume de entrada e de saída permanece o mesmo. É a esse mesmo êxito na auto-regulação dos processos naturais que aspira a ideologia do equilíbrio - com a diferença, essencial, de que, para realizá-la, suprime o papel do meio no qual se dão as interações, para evitar que elas ocorram fora de controle de quem acredita poder controlá-las. O carpinteiro Gepeto foi mais esperto na realização de seu propósito criador, ao convocar a fada para soprar o sopro da vida em sua criatura, o boneco de pau Pinóquio. Na história das tentativas de se controlar a realidade, mediante a entronização de uma abstração auto-reguladora, a mais cínica, a mais cruel, a mais trágica, a mais despudorada é a ideologia do equilíbrio, que orienta a física, a economia e as ciências em geral. Emergiu de um contexto no qual interessava à ideologia do capital assegurar o controle da situação social e política, num mundo em transição, infundindo à sua pretensão de hegemonia e estabilidade no comando a auto-ilusão da perenidade. Karl Polanyi encontrou-a formulada, de modo lapidar, na parábola de Joseph Townsend (1786). A parábola vem à cabeça de Townsend nos primórdios da Revolução Industrial, quando o capital, em vez de promover o bem-estar de todos, como prometido, produzia riqueza de um lado, gerando miséria de outro, a exemplo da caldeira da locomotiva a carvão, que gera energia, acumulando cinzas no borralho. O cenário da parábola é a ilha de Robinson Crusoe, no Oceano Pacífico, próximo à costa do Chile. O aventureiro Juan Fernandez, que teria inspirado a idéia da novela a Daniel Defoe, deixara nessa ilha algumas cabras e bodes, para que se pudesse comer a sua carne em caso de visitas futuras. Os animais multiplicaram-se em proporção bíblica, convertendo-se em estoque de alimentos facilmente acessíveis aos corsários, na maioria ingleses, que molestavam o comércio espanhol. Para afugentá-los, as autoridades espanholas fizeram introduzir na ilha um cão e uma cadela, que também se multiplicaram na velocidade do Gênese, reduzindo o número de cabritos. "Um novo tipo de equilíbrio se estabeleceu", escreve Townsend, em favor de seu argumento, na discussão da Leis do Pobres, de que os pobres, rejeitos da Revolução Industrial, deveriam ser abandonados à própria sorte. "Os mais fracos de ambas as espécies foram os primeiros a pagar o seu débito para com a natureza; os mais ativos e vigorosos conservaram suas vidas" (Leia-se na internet "A dissertation on the Poor Law", de Townsend). O equilíbrio, para o controle das populações entre ambos os grupos de animais, ocorria da seguinte maneira. Os cães, famintos, perseguiam os cabritos que, para fugir, subiam nos altos penhascos, inacessíveis aos perseguidores. Lá em cima, os cabritos sentiam-se no desespero entre morrer de inanição e descer à planície, para sem devorados; enquanto na planície, para não morrerem de inanição, vociferavam os cães, à espera de abocanhá-los, quando vencidos pela fome. No paradigma social de Townsend, que acena com o mesmo débito animal e cultural para com a natureza, não se consegue enxergar a diferença entre a sociedade animal e a humana. Confunde-se, identificando, a auto-regulação, pressuposta em ambos os mundos. Ambos estariam igualmente sujeitos à lei do equilíbrio, que regula também o equilíbrio entre a população de cascavéis e ratos, chacais e antílopes, gaviões e colibris - toda a natureza e a humanidade girando sanguinolentamente em torno de seu eixo cósmico, azeitado por Newton com a almotolia de Deus, a quem se atribui essa sinfonia carniceira, porém equilibrada. Tem-se na naturalização humana da fábula a mais grotesca e macabra homenagem prestada por um ser humano à capitulação da própria inteligência. É preciso que se esteja tomado de um desespero puritano infinito, de um ódio calvinista à Criação, ao mundo e a si mesmo para aspirar do mais profundo da alma a um mergulho tão abissal na imobilidade da coisa, a abstração auto-suficiente. Um tal delírio retira a sua investida suicida da suspeita de que o seu cobertor é curto para cobrir a extensão da realidade e, para se convencer da verdade dos cartógrafos de Borges, recorre à lógica, que lhe fornece os seus opostos excludentes. Com a lógica, ele remove para baixo do tapete a parte sobrante da realidade, a diferença, que a sua abstração não consegue abarcar. Como, porém, as sobras, renitentes, insistem em se manifestar, desvelando as zonas de sombra que a sua abstração intenta camuflar, ele reage enquadrando na sua abstração não somente o universo conhecido, mas também o universo de todos os possíveis. Conhece por antecipação, para não se surpreender perante o reconhecimento de uma diferença entre a sua abstração e a realidade. Dispõe previamente de todas as respostas, antes que sejam feitas as perguntas. Mobiliza e coloniza todos os sistemas racionais de explicação, que têm a função de corroborar a sua verdade delirante, perante um mundo agora ameaçador. Lembra o louco de G. K. Chesterton que, por ter perdido tudo menos a razão, enxergava intenções conspiratórias no farfalhar das cortinas na janela. Assim, a realidade, que antes se lhe apresentava como uma paisagem a desfrutar, com risco porém, assume agora a expressão sintomática, capaz de levá-lo a realizar a tempo o diagnóstico perturbador. Como diz a canção, "Depois que aquela mulher/ me abandonou/ não sei por que/ minha vida desandou/ o canário morreu/ a roseira murchou/ o papagaio emudeceu/ e o cano d' água furou..." (cf. Herrmann, F., 1998). Um diagnóstico que o incita, na espiral do delírio, a buscar controlar ainda mais a realidade. Ante a evidência do insucesso recorrente, o delirante acaba por votar ódio à realidade, ou a si mesmo, o que é a mesma coisa - aí estaria o motivo do ressentimento e do rancor em que se encontra embebida a alma de todas as ideologias. Recorro ainda a um exemplo, para elucidar a evidência. Na pressa aparentemente cordata de celebrar a vida, o biocentrismo - ideologia atualíssima entre ecologistas, que suprime toda diferença entre o mundo humano e animal -, reduz a singularidade da existência humana a um produto abstrato da espécie, que recorreria ao indivíduo apenas como oportunidade de afirmar o seu triunfo impessoal. Assim, a existência, o seu estatuto singular, anterior a toda abstração, desaparece nessa participação igualitária e vicária num universal desprovido de sentido, desgarrada de qualquer contexto que permita reconhecê-la, e reconhecer-se, como humana. Não há dúvida de que a existência humana lança areia nas engrenagens da Criação, mas daí concluir com os primitivistas que é preciso suprimi-la, para que se restabeleça o equilíbrio cósmico, é abdicar da própria inteligência e da ética. O delírio - ou a abstração racional isolada do sentimento e dos demais valores - não tolera a diversidade de percepções de uma mesma realidade. Ou se impõem as razões dos intestinos, ou as do paladar: duelos lógicos. O delírio ambiciona representar tudo mediante a utilização de um sistema explicativo único, enquadrar e controlar a realidade, a exemplo do lendário ladrão Procusto, que cortava ou espichava os membros de suas vítimas, para que se ajustassem ao leito em que as prendia. Controlar a realidade é eleger um dos papéis, entre todos os que interagem no contexto, para assumir o comando, estabelecendo-se uma hierarquia de poder entre eles - é o parâmetro, na linguagem cibernética. Sob o parâmetro, a realidade dobra-se ilusoriamente à vontade humana, como o mar se dobrou à vontade de Moisés. Como parâmetro, tem-se na história da antropologia, por exemplo, o veso, contemporâneo do advento da termodinâmica, de escandir no diapasão energético todos os contextos culturais. Assim, a complexidade da existência humana explica-se, de modo reducionista, pela sua habilidade de afiar a ponta de uma flecha, acionar um moinho de vento, uma máquina a vapor, uma usina nuclear, ou a administração de uma empresa, mediante a construção de autômatos, convertidos em software. A inspiração do modelo energetista, que empolgou tanto a Marx quanto a Freud, vem de sua consolidação realizada por G. Oswald, criador da físico-química, a explicar todos os fenômenos a partir do papel que a energia desempenha no contexto humano. Auguste Comte acreditou em poder explicar tudo segundo a lei de seus três estados e do paradigma da física; os cardeais, segundo os dogmas do Papado; Freud descobriu o seu parâmetro na libido sexual; Lutero e Calvino, na briga entre Deus e a sua criatura, o Diabo; Vilfrido Pareto, no equilíbrio cósmico e nos resíduos, ou parte obscura da natureza humana; Cesare Lombroso, na hereditariedade; Levy-Strauss, nos duelos lógicos inscritos no cérebro; G. Wundt, na consciência coletiva; Carl Jung, nos arquétipos coletivos; Durkheim, na física, ou coisa, social; Konrad Lorenz, no instinto de agressão; Quincas Borba, na humanitas; Simão Bacamarte, na racionalidade científica; o conde de Gobineau, na "raça dos loiros dolicocéfalos da Inglaterra, Bélgica, norte da França e Alemanha"; e outros, em outros emplastros mentais. Todos eles, sinceramente convencidos de que o turista de Veríssimo não dispõe de outra alternativa: é o paladar, para uns; ou são os intestinos, para outros: políticas do conceito. |
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