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1 de outubro de 2002 |
Urariano Mota
Délio havia chegado ao Recife como um homem sem história. Isto quer dizer, ele não se havia formado, ele não havia comungado as angústias e fogo com aqueles jovens. Ele era um estrangeiro, ou melhor, um estranho, sem terra e sem referências conhecidas. Parecia falar aqui e ali um portunhol, quando na verdade usava palavras num contexto de acentos que não eram os do Recife. Esse estranho, essa estranheza, no entanto fazia-o um ser cativante, pelo ar do seu vulto. O seu porte, distendido, alto, enquanto expunha os seus pontos de vista, fazia de sua diferença uma qualidade. Délio possuía uma altura aí por volta de 1 metro e 76 centímetros. E parecia mais alto, fosse pela tensão permanente que impunha a seus ossos, na espinha a prumo, nos ombros levantados, no queixo erguido, fosse pela razão elementar dos saltos rombudos e altos, embutidos em seus sapatos. Cabelos largos, bigodes caídos, finos, de uma tessitura oriental. Olhinhos vivos, dançantes, quase zombeteiros. Riam-se, riam, como se à margem do que olhavam.
Esses traços, no entanto, só se destacavam quando animados por sua eloqüência. Aí morava o seu fascínio. Porque a sua fala proclamava um otimismo cerrado na revolução em marcha. Nessa fala a revolução não era um projeto futuro, a ser amadurecido dia a dia, no ondear e movimento das massas. Não. Era para já, estava acontecendo, arrebentando, irrefreável, em todo o Brasil. - Agora é o instante de conectar os quadros treinados em Cuba com a vanguarda do Nordeste. Sem temor. Compreende? Aquilo era doce música. Até porque vinham, as suas frases, integradas em melodia, cujo leitmotiv eram as bandeiras, que eram palavras mágicas de extraordinário poder de toque: a revolução, a derrubada da ditadura, o socialismo, as armas, a guerrilha. Ninguém notava, por força do seu encanto, que ele excluía o povo, sem mencioná-lo sequer em palavra, quando enunciava as várias nuances de sua melodia. Mas esse lapso, digamo-lo assim, lapso, era por si mesmo ainda mais fascinante. Em lugar de um povo utópico, querido em ânsia por uma esquerda isolada, Délio punha a própria esquerda aumentada por lupa, levantada em armas. Na sua fala a esquerda ganhava um poder de criação demiúrgica. O milagre da revolução seria alcançado, descido à terra a fogo de metralhadora, bomba e fuzis. Não era natural? Ao ligar uma coisa básica, verdadeira, que eram as armas e a força da violência, a uma coisa bela, grandiosa, que seriam a derrubada da ditadura e a instauração do socialismo, o resultado obtido por ele, nessa junção do básico ao improvável, parecia crível, verdadeiro. Tão natural quanto um fogo-de-santelmo numa tempestade previsível, estimulada pelo hálito da poderosa vanguarda. Os ouvidos eram férteis. Na primeira vez em que Délio foi visto, na primeira aparição aos olhos que ele procurava no Recife, ele estava em pé, na Livro 7, folheando as Reflexões de um Cineasta. Naquela ocasião o seu perfil se doava com generosidade ao público, e a primeira impressão era a de um desleixo nas roupas, uma ilustração do que se compreendia à época como um estilo hippie. Alpercatas, calças folgadas de algodão baço, blusa sem colarinho em cores justapostas, do amarelo ao laranja, bolsa ao ombro, cabelos compridos, assanhados. Mas um perfume discreto, de trilha no ar permanente, a quem lhe chegasse perto, insinuava: naquelas roupas e postura nada havia de frouxo e negligente. Aquilo era uma composição, dir-se-ia um décor, assentado em sua pessoa numa criteriosa escolha, para camuflar uma ação de guerra. Délio se mostrava de lado, em paciência fria, sem pressa, de quem possui as armas e o tempo a seu favor. Parecia furtar-se, querer furtar-se, ao mesmo tempo em que se oferecia, amistoso, coração aberto na língua a qualquer ente humano que o abordasse. Havia nele algo de feminino, que os seus inimigos tomados pelo ódio diriam de rameira, no trottoir, pelas evoluções, contidas, mas evoluções, que esboçava para seduzir e aliciar. Naquela ocasião ele se expunha de perfil, e o certo é que: pelos cabelos descidos nos ombros, pelos cílios longos e numerosos nos olhos, pelos dedos finos postos delicados sobre a página do livro, pelo recato que ele insinuava na sua pessoa, como se fosse um ser frágil, e pelo ofertar-se nos flancos, o certo é que banhava o seu corpo uma feminilidade untuosa, mais visível no rosto, que parecia ter saído de um banho onde a maquiagem da noite de esbórnia houvesse sido recém-lavada. Havia lassidão nos olhos, quando ele ousava erguê-los, esquecido de si. Mais adiante fechava-os, como gato que procura lugares menos ensolarados. Entrefechando-os com os cílios, deixando rasgos orientais nas órbitas, ele ganhava distância, como se visse o mundo sem ser visto, ou como se visse o mundo interpretando-o, escondido num outro ser coberto, deixando ao público uma face removível. Essa distensão em falsas rugas levava-o a puxar a linha dos lábios, num fino sorriso, parecia: - É levantar e sacudir. Só há imobilismo em quem resta inativo, porque jamais um revolucionário se apartou da ação, compreende? Essa fala escrita, associada à lembrança do sorriso daquele rosto, poderia sugerir mofa. Mas não para quem o ouvia. Porque a altura da voz era ciciante, o significado das palavras não era brinquedo, e esse significado lhe vestia uma inflexão séria, ainda que as palavras chegassem num timbre de voz hesitante, quebradiço. Voz que era dignificada pela gravidade dos assuntos a que se referia. A fragilidade em Délio mudava-se para um lugar onde não era notada. Estava interdita. Razoável. Para a ação guerrilheira não se esperavam músculos, vigor físico, pleno, viril. A guerrilha não é terreno para atletas de modelo olímpico. Pelo contrário, a guerrilha era uma ação entre sombras, que não se denuncia à luz clara como uma investida de artilharia pesada. Era uma ação de surpresa, ou minadora de forças do inimigo, pelo terror imprevisto no escuro. Melhor agiria quem melhor possuísse o disfarce. Mas não só. A sua fragilidade estava interdita porque não deveria ser notada pelo alvo a que procurava atingir, o subversivo que lhe cruzasse o caminho, e nisso ele era ajudado pelo alvo a ser atingido, porque o dever, a norma, para um militante, é mais que um dever ser, é ser. É mais que um amor e um respeito aos pais, quando resistimos a lhes notar as falhas, ou a canalhice. É menos que uma recusa hipócrita, e dizer isso ainda não é vestir e iluminar o objeto com a sua luz precisa, porque esta recusa era feita numa outra natureza, diferente da hipocrisia. Nessa natureza, rígida, que não admitia a nuance, não se harmonizavam os valores para a construção de um mundo novo com o quebradiço da postura e voz existentes em Délio. E porque não deveriam coexistir, não existiam, sequer como um conflito entre o ser e a sua hipótese, ou como diziam, como uma contradição. Viam aquela fragilidade caricatural, é claro, mas não deveriam vê-la, e portanto não era notada. Ela era um gaguejo numa locução fluente, um acidente, que apenas humanizava uma fala onde antes não houvera ensaio e acostumado treino. Num assalto prussiano arrancavam o homem e sua fala, para assentar em seu lugar o conteúdo que as suas palavras acenavam. À distância podemos dizer, Délio e seduzidos realizavam um jogo perfeito de equívocos. Vejamos mais de perto a sua fraqueza. Délio não era frágil. De um ponto de vista do vigor, da força, como um organismo biológico, Délio era um ser tão apto para a ação quanto qualquer homem. As suas mãos, o seu talhe, eram viris. Certo, os seus braços, magriços em relação ao tórax, não o predispunham para um trabalho braçal. Uma barriguinha avultava, como um repositório das gorduras faltas no volume dos braços. Mas nisso ele não era incomum. Era um traço. Essa desproporção ele corrigia pelo ar do rosto, que subordinava o restante do seu corpo. Como um busto, de um guerreiro altivo, sem braços. Vizinho à formosidade, à beleza. Pois ao contrário do que julgavam os corações, o diabo não é feio. Tinha até uma pose cinematográfica, à semelhança dos astros de filmes de faroeste, que, ao aparecerem na tela, as crianças logo identificam, aos pulos, gritando: - o artista! o artista! Impressionava. Os que se julgavam mais argutos diziam-se: "ele está cheio do orgulho de si - o orgulho sadio das bandeiras que defende". Outros consideravam: "com essa estampa, a repressão jamais desconfiará - ele não tem a aparência dos terroristas que ela pinta". Uns e outros passavam ao largo do seu pavoneamento, do enfatuado da altura dos ombros, e do seu andar. Ele caminhava com passos e evolução de quem carrega, e ostenta, metralhadoras e armas. Esse tipo de exibicionismo, os seduzidos, os atraídos viam, e não viam. Era como se a sua pessoa estivesse sublimada no que ele dizia. Que era traduzido, para os militantes, no que ele era capaz de fazer. A sua pessoa não era expulsa, era levantada, pelo que ele anunciava. Precavido, sabendo que não bastava ao vôo a sua plumagem, Délio refugiava-se num gosto declarado pela arte, para melhor justificar as quedas de um figurino machista. Ele respondia no que poderíamos chamar de responder a um erro com outro erro, erguido até o nível do preconceito. É duro dizer, é estúpido, mas tem que ser dito: ele achava, ou melhor, ele sabia que seus caçados achavam que um amante da arte, um artista, poderia ser "delicado". Pois o que é a arte, para quem não a conhece, senão o salvo-conduto para o reino do escuro, onde se põe o que desejarem o preconceito e a conveniência? É claro que, ao se defender Délio com tal arte, a própria arte não saía defendida. Mas o objetivo pretendido era alcançado. O que vale dizer, de um ponto de vista, de um ângulo estritamente tático, Délio estava certo. E não só, em verdade se diga: esse artifício nele não era só tático. Se ele pudesse baixar a guarda, se ele pudesse beber a ponto de ficar bêbado, ele não teria pejo em declarar: - Eu sou um artista. Vejam o que eu consigo: eles me crêem! Com efeito, os militantes com quem ele travou caminho, acreditavam-no. A sua caracterização vulgar tinha sucesso. Mas com uns descontos, que a sua vaidade não contabilizava. Havia ainda outros referenciais, que se cruzavam para melhor produzir a sua performance. Vivendo sob o terror, que não era só a pura eliminação física, era a ameaça de uma degradação física e humana sob intenso sofrimento, os militantes perdiam a fria e serena análise de consciência. Ganhavam a credulidade, que não era fácil e imediata, era angustiada. Para eles não havia mediação - ou se ia ao futuro, ousados, de súbito, (e esse futuro era um dia de sol na pátria do socialismo) ou se ia ao baque, brutal, das trevas. Nisso iriam com orgulho, com o peito quente, flamante, quem dera, sem tortura. Aquele grito louco dos revoltosos de Canudos, armados de espingardas e foices, quando gritavam para os canhões do Exército, "avança, fraqueza de governo!", para eles era a hora da orquídea, promessa cultivada que um dia foi possível, e mais uma vez numa nova orquídea em outro dia será possível. Retiravam desse grito o delírio, o elemento da fé no Conselheiro, que viam, mas retiravam, para guardar dele o desassombro heróico. Fraqueza de governo, o que podem contra o progresso da história? Sem passos de tartaruga, sem voltas, a revolução seria precipitada pela ação conseqüente de suas crenças. Quanta vontade! Era natural, e isso passava à margem do brilho que Délio acalentava da própria performance, que pretendia ser o vulto do companheiro desembarcado de Cuba. Ora, a causa era tão justa, e tão óbvia a sua grandeza, que o enunciado de palavras de ordem revolucionária só poderiam sair da boca de um revolucionário. Só um monstro, uma aberração, seria capaz de falar o belo e o justo tão eloqüente com a finalidade de matar exatamente o belo e o justo, de ocultar a intenção de foder e destruir a fraterna ambição dos companheiros. No entanto, a aberração existia, e não era tão aberrante, tão mosntruosa assim. De um ponto de vista espiritual tinha a sua lógica. De um ponto de vista físico a um só animal era semelhante: ao humano. |
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