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La insignia
18 de novembro de 2002


A morte ou a guerrilha


Marco Albertim
La Insignia. Brasil, novembro de 2002.


Não havia nevoeiro para completar o disfarce de Vítor Mansur. Mas o céu carregado cobrira de cinzenta nuvem as tumbas do cemitério. Cruzes, túmulos e lajes chorando umidade na escura manhã. O único portão de ferro, aberto, dera passagem a Vítor Mansur. Ele entrara curvado em respeito à memória dos mortos, ou assim queria fazer supor. Não sabia rezar, mas contristar o rosto não seria difícil, posto que há um ano, foragido, escondera-se dos outros e de si mesmo. Sentado num dos bancos da capela, tinha como companhia a mulher que fazia a faxina. Fosse surpreendido, decomporia com cacoetes a feição pungente à frente do Cristo de joelhos chagados e olhos fixos nele.

O vento soprava das janelas. As sabiás faziam dos oitizeiros a câmara ideal para seu concerto.

- O rapaz está com problemas, procura a solução...

- ?

A faxineira não resistira à estudada comoção de Mansur. Perguntou sem propósito policial. Mas alguma suspeita, de estalido, poderia se misturar a seus intentos bíblicos; a parábola serviria de inspiração à cabuetagem. Mansur cruzou os braços, dando a entender que o silêncio não devia ser interrompido.

A caixa de fósforo estava numa das mãos, como combinara. Seria identificado pelo objeto, responderia a uma pergunta, já sabida, de um interlocutor desconhecido. Seria levado a lugar seguro, ao menos com cama e comida. Estava há uma hora esperando, engendrando rezas. Mas o instinto o tirou dali. Se o desconhecido estivesse preso, poderia, sob tortura, dizer que teria o encontro naquele lugar. Voltou à pensão onde dormira. Quando foi ao banheiro, a proprietária o chamou para falar com alguém.

- Este senhor é policial. Quer ver os seus documentos.

Ele voltou ao quarto e apanhou o documento de identidade. O nome era verdadeiro, mas o agente era experiente no trato com prostitutas e cafetinas, e não com conspiradores em trânsito.

- O modelo do documento é outro. Precisa trocar na secretaria - avisou o homem de chapéu de feltro e camisa de linho.

Mansur recolheu o documento dizendo que providenciaria outro. O banho teve o efeito de uma ducha. Do chuveiro, ouviu o polícia dizer que só aceitava dinheiro de rapariga porque se tratava de ofício legal. "Não é a mesma coisa que receber dinheiro de ladrão!"

O contato não fora logrado. Era preciso sair da cidade. Sem dinheiro, foi ao posto fiscal fazendário, na rodovia. No local, passagem obrigatória de veículos de carga, poderia, mediante prestação de serviço, conseguir carona para Alagoas, onde teria como arranjar dinheiro. Juntou-se a outros migrantes, gente arribada à cata de trabalho. Uma semana descarregando mercadorias de caminhões, dormindo num balcão, cujo chão, coberto de notas fiscais velhas, acolheu sem suspeitas sua andrajosa clandestinidade. Juntou uns miúdos que davam para as refeições. Um motorista o chamou para tirar a carga na cidade; o pagamento seria a viagem de volta a Salgueiro, acesso ao sertão alagoano. Despejou uma centena de caibros num depósito de armazém e viajou na boléia ao lado do motorista.

Saltou na rodovia para evitar o trânsito da cidade. Sábado. Um punhado de caminhões, lado a lado, estacionara na margem; carregavam cestos e garajaus com aves para o comércio na feira. As placas, todas de Alagoas. Mansur foi ao posto de gasolina; nos fundos, tomou banho no banheiro dos empregados. À boca-da-noite, os primeiros feirantes voltavam da cidade. "Vão precisar de ajuda para repor os bichos que sobraram." Ofereceu os préstimos e foi aceito.

Mais tarde deitou sobre uma das carrocerias, sob a noite ideal do sertão incendido; estrelas no hemisfério e brisa mundana. Com pouco uma dezena de homens dormiu sem assuntar com os astros. Fitou longamente as cintilações e incorporou aos sentidos o alvoroço na fábrica.

- Eles nos espionam a pretexto de zelo pelo patrimônio. Quem tem mais interesse na fábrica? Nós ou meia dúzia que se apropria dia a dia do excesso de nosso trabalho?

A viatura da polícia, do outro lado da avenida, permaneceu estacionada. Três diretores da fábrica observam da portaria o ajuntamento. Nas negociações, a comissão se comprometera a não entrar em qualquer das salas da administração, para forçar a adesão à greve. Ninguém da diretoria ou qualquer dos prepostos desceria à esplanada para forçar funcionário ao retorno ao trabalho.

- Não há mais condições de manter o acordo!

Era a sentença esperada. Mansur desceu do estrado improvisado, largou o megafone e entrou no prédio. Uma dezena de grevistas o seguiu. Um deles tem um tambor na cintura, pendurado no ombro por uma alça de couro.

- Ninguém deve furar a greve!

Gritos. O tambor ressoa nos corredores da administração. As mulheres que não aderiram, correm, se escondem nos banheiros. Os homens ficam no lugar, acuados. Mais correria e ribombos de botas no assoalho. O bombo é arremessado e o níquel ressoa no chão. A polícia passa pelo piquete aos empurrões e põe as mãos no percussionista. Mansur é agarrado.

- Turco filho-da-puta!

A sala do interrogatório é vaporosa. O chefe de polícia grita. Quatro auxiliares estão atrás, dispostos a avançar. Mansur, jogado numa cela sem luz nem janela, só o catre de madeira sobre quatro pés finos e curtos, pouco acima do piso frio. Ao fim de duas semanas, quando imagina terem sumido as escoriações, é retirado para o pátio vazio sob o sol de que fora privado. A luz queima nos olhos; tem a impressão de que nunca vai recuperar a visão. O caminhão do lado partira com a primeira leva de feirantes. O ruído do motor esquentando coincidira com o primeiro feixe de luz derramado pelo

Os homens se preparam para a viagem de volta, arrumando caixas, dobrando lonas, desatando cordas. Ele passa a mão no rosto, removendo os resíduos do pesadelo. Encara o sol ainda encoberto por restos da noite. Num minuto, era Vítor Mansur, oculto e disforme.

De madrugada o comboio parou em Palmeira dos Índios. O motorista exigiu seu pagamento; os homens se juntaram e pagaram. Desceu do caminhão para o local do ônibus que o levaria a Maceió. No caminho, desfiou uma loa muda à generosidade dos feirantes. A iniciativa fora do camponês sem pêlo no rosto e pele com dobras nos cantos da boca. "O rapaz foi de muita serventia em Salgueiro. Vamos pagar a passagem dele." Mansur agradeceu. Seguiu com os olhos na estrada e os sentidos no devir.

Instalou-se na casa à margem da linha do trem, em Bebedouro. Ali dormira com sua mulher, Dejanira. As janelas ficavam abertas, mas só podia sair à noite para as maquinações antifascistas. Dejanira viajara sem dizer para onde, por segurança. No quarto, a poeira, nenhum traço dela e meia dúzia de livros sobre a cômoda de verniz desbotado. Monteiro Lobato, Humberto de Campos, Machado de Assis, trama bastante para ocupar o recesso forçado. Leu Angústia sem descanso. Nos fundos da casa, a goiabeira no oiteiro e o canavial ocultando o quintal. Mansur imaginava o cadáver de Julião Tavares pendurado na corda amarrada ao galho mais grosso. Luís Padilha, lívido, a casimira empapada de suor.

Saiu para comprar cuecas e teve um susto. Na rua do Comércio, avistou caminhando em sua direção o polícia que não poupara a memória de sua mãe. Entrou numa loja com saída para a rua paralela. Dúvida se fora visto ou não. Recolheu-se ao Bebedouro. À noite, avisou ao contato que lhe conseguira a casa. Semana seguinte estava de volta ao Ceará, cruzando outra vez sertões e caatingas.

Em Juazeiro procurou ônibus para Fortaleza. Passagem só no dia seguinte. Novembro. Romaria. Gente de todas as raças vestida com a bata escura à moda do padre Cícero. Mansur se juntou aos romeiros, subiu a escadaria da estátua, foi à capela e entrou no cemitério para visitar o túmulo do padre.

Na hospedaria dormiu num quarto com quatro penitentes. Único sem veste preta, modos urbanos, jeito de quem não estava disposto a expiações. Deu boa-noite antes que apagassem a luz; não ouviu resposta. Os romeiros dormiram como adolescentes purgados. Gente com cismas, terrosa, saída das gretas do Cariri. A memória do interrogatório reapareceu nas sombras.

- Você vai sair daqui e não volta nunca mais. Se voltar à agitação só lhe restam duas saídas: a morte ou a guerrilha! Demitido, em vão alega imunidade sindical. A notícia se espalha. Não há greve, mas a produção se arrasta vagarosa por toda manhã, o bastante para trazer o camburão. Mansur é retirado por um dos seguranças, por ordem da gerência. Do lado de fora, os policiais militares são outros e não o identificam.

De volta para casa, vê o camburão de civis estacionado na frente; os mesmos que o espancaram. Adquirira o costume de dobrar para a rua na esquina mais distante da avenida. Tem tempo de recuar, pegar outro ônibus e se esconder nas matas de Paulista. À noite, vai para Igarassu e frei Mariano o acolhe. Sem o conhecimento do prior, uma semana na clausura comendo o arroz levado pelo amigo recém-saído do noviciado; única refeição que sobrava no refeitório. Defeca na hora precisa, quando os corredores estão vazios.

Despede-se do amigo numa manhã de nuvens escuras. Sabe que está entrando na clandestinidade. "A morte ou a guerrilha." Com algum dinheiro, um bilhete de trem no bolso e o boné na cabeça, segue para a Estação de Porta dÁgua. Na estação de Maceió é recebido por Dejanira, recôndita como ele. Disseram-lhe que não se preocupasse que seria reconhecido assim que descesse do vagão. Dormira todo tempo da viagem e acordou dentro do sonho. Dejanira alfabetizara adultos e teve que fugir por causa do método Paulo Freire.

- Não é bom me abraçar aqui - avisa ela. - Há polícia por toda parte, embora não nos conheçam.

- É esta a clandestinidade que me reservaram!?

- Não. É um prêmio de consolação. Os amigos sabem do nosso caso, mas advertiram que não devemos namorar como dois adolescentes no meio da rua.

- É um drama. Sai a polícia, entra o casal apaixonado.

- Calma, sonhador. Chegou a vez da celebração, mas não houve anistia.

Saltam do táxi no Bebedouro e atravessam a linha do trem. A casa está fechada, a vizinhança é escassa. Mansur respira com impaciência. Dejanira abre as janelas. Corredor vazio de móveis. O único utensílio da sala é a rede com bordas em fiapos, desbotada. No quarto, a estante com livros e a cama de solteiro, velha e aprumada. Na cozinha, o fogão de duas bocas e a mesa com duas cadeiras para as refeições. Dejanira deixara um punhado de feijão na água. Acende o fogão e joga dois nacos de charque na vasilha de barro. O arroz cozinha rápido.

Enquanto comem, a vizinha da casa mais próxima nos fundos sem muro, desafina nos versos:

Quem namora com Riqueta
Tem na alma uma trombeta
Quem se casa com Riqueta
Tem na língua a gosma seca.

Sentam no chão do terraço, os olhos vadios no hemisfério. Mas o infinito é fatigante e a juventude dos dois é transitória. Na cama estreita são capazes de apreender os átomos e o sentido do cosmo. Levantam-se e se fundem no branco cetim que cobre o colchão. A geometria do leito ora é nicho, ora é trapézio. Dejanira, fêmea contida, esguicha, se extingue e se reanima. Mansur, tronco e membro fornidos, faz do conúbio a alquimia que mistura gozo e vindita. A felação mútua abate a guarda dos corpos. O amor estruge na madrugada do Bebedouro.

A manhã vem com insistentes fios de luz nas brechas das telhas. A vizinha não poupa a vida de Riqueta.

Dois meses se passam entre a laboriosa celebração conjugal e reuniões em que não se vê sinal de melhora na vida política do país. A morte do estudante Odijas Carvalho, num porão policial de Recife, desanima, recua o propósito de demonstrações de ruas. Aqui e ali, uma parede amanhece com dizeres que pedem o fim da ditadura. Uma minoria, um punhado de guerreiros de escol, ao abrigo de sombras, escrevendo em muros o discurso de duas, três palavras.

Dejanira é a primeira a viajar, chamada a executar serviços em lugar mais seguro, onde há carência de sua mão-de-obra. A despedida é feérica, convencidos de que o vínculo ideológico os reunirá em festim mais abundante. Mansur é operário com dotes científicos, maneja ferramentaria como um velho mestre de oficina. Maceió é pequena e tem poucas indústrias. Vai para Fortaleza onde voltará a ser artesão respeitado e, com segurança, juntará outra coluna de aliados.

Os romeiros sumiram ainda estava escuro. O quarto vazio mas num canto e noutro o cheiro de terra revirada. "Respiram húmus."

Na Praça José de Alencar o teatro exibia show com Cartola e Clementina de Jesus. Estudantes e intelectuais. "Isso aqui está cheio de tiras." Ostensivos e paisanos. Os homens não sorriem e Mansur passa sem mostrar dor.

No fundo da primeira página o jornal trazia notícia de guerrilha no Pará. Tenente do exército fora aprisionado por subversivos em cidade à beira do Araguaia. A nota de poucas linhas estava espremida por outras maiores. Os olhos de Mansur ressaltam. Ele carrega junto às roupas na sacola, o projeto de uma metralhadora. Vai executar quando estiver trabalhando nos serões noturnos. Tem memorizada a quantidade de parafusos e pinos, mas não se desfaz do papel. Os furos têm medida de precisão. Sabe operar a plaina. O torno será manejado por outro camarada operário. Como não conseguir? Ele e o torneiro juntos na empreitada. Arma pronta, o primeiro no manuseio, o instrutor dos camaradas.

Na pensão, Mansur examinou o jornal à cata de notícias sobre guerrilha; nada. O censor distraído deixara passar a curta nota. Deitou-se e o sonho de tornar-se guerrilheiro era uma intoxicação alcoólica.

A ruiva dona da hospedaria pedira que preenchesse a ficha de hóspede. Teve que assinar o nome verdadeiro, com número da identidade, data e local de nascimento. Perguntou o que pretendia fazer em Fortaleza.

- Procuro trabalho.

- Conheço o comandante da Polícia Militar. Ele pode indicar um gerente de fábrica onde você pode trabalhar.

- Não será preciso. Tenho comigo uma lista de amigos; é tudo profissional como eu.

Respondera ao mesmo tempo em que a ficha era preenchida. A ruiva não pôde deixar de notar o traço nervoso da letra de Mansur.

Dali a dois dias teria encontro no portão do Castelão. Alguém o receberia para se instalar de vez na cidade. Na manhã seguinte foi ao local, se familiarizar para evitar atraso. Passados os dois dias, quando estava no ponto do ônibus, sentiu o toque no ombro. Olhou para trás e deparou com o rosto conhecido, de onde saiu a voz cava:

- Turco filho-da-puta!



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