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La insignia
16 de novembro de 2002


O crime do Brooklin


Urariano Mota (*)
La Insignia. Brasil, novembro de 2002.


A primeira notícia foi do assassinato mesmo. Ele, engenheiro em pleno vigor das atividades produtivas, ela, psiquiatra em pleno gozo de discernimento e profissão: Manfred e Marísia foram encontrados mortos na cama. A segunda notícia, oito dias depois, foi que estarreceu: se matar, ainda que continue a ser crime, já não mais causa comoção, vale dizer, se o saber da eliminação de gente já não nos estremece, o matar os próprios pais ainda não é assim tão comum. A segunda notícia arrancou-nos da apatia. Ela nos fere, e nem tanto pelo inusitado. O baixo percentual da ocorrência, a resposta a quantos assassinatos de pais são feitos pelos próprios filhos a cada 100 homicídios, o resultado dessa indagação fria não é bem o que nos comove. Somos alcançados por algo mais fundo que o número estatístico.

Como sempre acontece, quando somos atingidos, magoados, por um acontecimento raro, mas que ainda assim nos deixa em pé, a nossa razão procura uma causa, algo confortante, que nos reconcilie com a paz. Por que uma filha comandaria tal crime, e assistiria, talvez a uma segura distância, ao trucidamento dos pais? A imagem da acusada de homicídio não conforma com o brutal assassinato. Perturba-nos, porque tende a se confundir com a causa. Jovem, bonita, 19 anos, ar de fada de conto infantil. Meiga, discreta, o nosso preconceito resiste a vê-la como a mandante do crime. A história de nossa formação lombrosiana, de assassinos feios, tenebrosos, de horror físico proporcional ao horror do crime, resiste a enquadrar a graciosa e serena Suzane. E mais resiste o nosso preconceito, porque herdamos a cultura racista contra negros escravos, de feras escuras portanto, resiste a ver essa jovem, bem-nascida!, de um lar de bem-postos profissionais liberais!, resiste a vê-la como a antifadinha azul. A sua imagem no enterro dos pais não bate. Na foto, ela põe o rosto de lado, como se buscasse um ponto de fuga ao desastre que caiu sobre a sua civilizada e cristã cabecinha. No entanto, procuramos o que supere a antinomia. Se ela, segundo um absurdo, se ela, supondo uma exceção à regra de assassinos miseráveis e ferozes, participou de um crime de bárbaros, perguntamo-nos, à falta de uma luz e caminho seguro: por quê?

Então a nossa paz se conforma, com a primeira razão divulgada, após a segunda notícia do crime. A suave Suzane teria matado os pais por amor. Por amor ao namorado, é claro. Ah, bom. Assim compreendemos. Os pais não aprovavam o namoro e faziam pressão para que ela rompesse de vez a relação com o namorado. Chegaram a ameaçá-la com uma viagem, a essa altura extradição, para a Europa. Assim, até compreendemos. Sentimentos não se rompem por ordem exterior, ou para o exterior. A natureza se revolta, compreendemos. Vejamos então que, a partir daí, a imagem da jovenzinha machucada no coração se sobrepõe à imagem dos pais arrebentados na cabeça a golpes de ferro. A homicida é também vítima, porque muito antes de matar teve a própria alma sufocada. A sua reação foi quase uma legítima defesa do espírito. Que tragédia houve, mas que tragédia teria sido evitada, fossem os pais um pouquinho mais cordatos. Ah tivessem sido eles compreensivos. A partir dessa hipótese, de mandar matar por amor, o rosto da acusada do crime ganha contornos que conformam a nossa velha crença: a de que o bem sempre triunfa, às vezes por caminhos até meio tortos.

No entanto, devemos ir um pouco mais devagar nesse avanço. Pois a continuar nessa hipótese, quase legitimadora, deveríamos ver a jovem, uma vítima ela própria também, como uma coisinha sem substância, oca, entregue ao torvelinho, aos ventos incertos do destino, ou, na melhor das hipóteses, como tonta marionete, manipulada por cordéis de um senhor namorado envolvente. A ela não se aplicariam quaisquer julgamentos éticos, ou criminais. Coitada, a bobinha teria vindo a se revelar uma criancinha aética. Ou mais grave, talvez, pelos danos causados: uma bonequinha de brinquedo assassino. Mas a esta altura, já se vê, pelo próprio nível de redução, que o modelinho de coisinha oca ou de bonequita maldita não cabem na jovem concreta, de carne e osso, estudante de Direito, que construiu o álibi do motel para ela e o namorado, o que demonstraria a sua ausência na hora do crime. Pior, que é capaz de tão sutil racionalização : a romântica que manda matar por amor. Então continuemos.

A segunda explicação que procuramos pôr de acordo com a segunda notícia do crime foi a de resolvê-lo pela volta dos nossos sentimentos mais conservadores. Sim, porque a este crime terminamos por dirigir os nossos mais primitivos receios. Pois somos pais, condição a esta altura terrível. Que incerto futuro reservamo-nos, já que todo pai se vê, injusta e ridiculamente, um criador de destinos pela educação que lega? (Machado, distante, nos sopra, "não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".) Em lugar da solidariedade ao casal assassinado, tivemos antes um sentimento de medo. E aqui repetimos o comportamento adotado por quase todos nós em relação à desgraça e degradação da sociedade no Brasil. Perguntamo-nos, antes: que fera pode nos assaltar por sangue, dentro mesmo do nosso lar? Pois o inimigo ou está dentro de nós, se fazemos de nossos rebentos uma réplica de nossa carne e espírito, ou vem dentre nós, se com eles guardamos o costume da convivência. Os comentários, conservadores, se espalham a nosso redor, no trabalho, na vizinhança: "Devemos é impor limites! Eles pensam que podem fazer tudo e ficam sem freios. Olhem em que deu. O certo é a linha dura: eu não quero você com fulano ou sicrano. Não quer?, então tome cacete!". O que isto quer dizer: sob disciplina férrea, aplicando espancamentos e algemas, receberemos a graça do autêntico carinho filial. Nem de longe nos passa que almas machucadas pela brutalidade são incapazes de um amor verdadeiro. Nem de longe nos ocorre que agindo pela força receberemos um simulacro de ternura, com beijos e carinhos servis. Imitação de amor de filhos acovardados. Sequer vemos que o passo imediato a tal educação pelos socos é uma expressão mais simples: matemos os filhos antes que os filhos nos matem.

O que a comoção e o espanto não deixaram ver é que mais que uma educação formal, recebida em casa, nas escolas, há, domina uma educação informal e infernal. Ela é e está onipotente nos livros que nem tentamos ler, porque se entranha no próprio ar que respiramos. Alguém já notou que neste crime, em vez de um crime por amor, está mais precisamente um crime por grana? Sim, por grana, por dinheiro, por dólar, clara, simples e cruelmente? Se não, vejamos: se os pais não queriam o namoro, se os conflitos evoluíram até uma ordem para que a filha estudasse na Europa, por que a doce Suzane não usou do recurso que jovens semelhantes a ela utilizam, ou seja, a fuga de casa para viver com o namorado, num idílico mundo, onde somente sobrevivesse o puro amor? Este tem sido o expediente de milhares de jovens no Brasil: a renúncia ao lar paterno para construir um próprio. Mas não, para isso havia sérios e desconfortáveis impedimentos. A saber, pura e simplesmente, o casal não poderia viver tão-só da força do sentimento. As pessoas não vêem, ou não querem ver, mas os dados do crime por cobiça, por grana, têm provas robustas, como fala o jargão criminalista. Apenas 10 horas depois dos assassinatos, o cunhado da jovem comprou uma motocicleta de 1.100 cilindradas. Houve roubo do casal morto, declarado pela filha, no primeiro depoimento, de 8.000 reais e 5.000 dólares. E isto era mais que um disfarce para caracterizar um latrocínio. Pois confessado o crime, a polícia apurou que Suzane e o namorado, executor da sentença de morte, planejavam viver juntos depois do recebimento da herança. Convenhamos, o amor assim é mais saudável. Na racionalização da jovem, os pais, obstáculos ao amor, foram afastados, talvez até sem dor, poderia ser acrescentado, porque receberam golpes certeiros de barras de ferro na cabeça. Depois, salto ligeiro da fera, era correr para a herança.

Na altura em que escrevo, a imprensa noticia que a acusada pede que se transmita ao irmão que ela está arrependida, e triste. Talvez aqui o verdadeiro móvel da tristeza ainda não seja bem o brutal assassinato dos pais. Para quem possuía a perspectiva de receber uma herança, e vê-la escorregar em sangue por entre os dedos, como dizê-lo? - Mergulha numa apagada e vil tristeza.


(*) Escritor, autor do romance Os Corações Futuristas, e da novela policial O Caso Dom Vital, inédita.



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