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La insignia
15 de novembro de 2002


Brasil

Silva Jardim e Euclides da Cunha:
Repúblicas distintas, igual ostracismo


Rodrigo Gurgel (1)
La Insignia. Brasil, novembro de 2002.


No momento em que o Brasil comemora 113 anos da quartelada que deu início à República e, quase ao mesmo tempo, vê ascender à presidência do país um líder cujas características pessoais e históricas o referendam como o extremo oposto do que nos acostumamos a conhecer em nossa decepcionante classe política - com várias e honrosas exceções, é claro -, um saudável exercício pode ser o de relembrar duas figuras que, vivendo no mesmo país, sonharam e trabalharam por repúblicas muito diferentes.

O jovem Silva Jardim foi um dos poucos que destoaram, em parte, daquela quase absoluta maioria de republicanos conservadores, composta pelos históricos fazendeiros paulistas - que fundaram o Partido Republicano em 1870 -, pelos militares influenciados por Augusto Comte e, finalmente, pelos idosos oficiais, cuja principal característica era a indefinição doutrinal.

Esse jovem e brilhante orador, que passou à História como um exemplo do republicanismo radical que não vicejou entre os brasileiros, fez de seus meetings (2) uma tentativa de aglutinar a opinião pública ao redor do ideal republicano, o qual lhe parecia falso se não tivesse a participação popular. Visto com reservas pelos chefes do partido, ele acabaria sendo condenado a um ostracismo dissimulado, no qual permaneceria até a morte prematura, na Itália.

Francisco de Assis Barbosa, na apresentação que faz aos discursos, opúsculos, manifestos e artigos de Silva Jardim, coligidos, anotados e prefaciados por Barbosa Lima Sobrinho (3), evidencia as ressalvas dos velhos republicanos - no caso, Rangel Pestana - em relação ao orador, ao defini-lo como o "chefe do movimento revolucionário, ainda que o não seja do Partido Republicano. Atrás dele devem estar os homens da organização, os espíritos diretores, capazes de medir, friamente, o efeito de sua ousadia de agitador e de assegurar a vitória no momento dado e de assentar em bases fortes o edifício da república."

Tratava-se, no entanto, de um temor infundado. A leitura dos trabalhos coligidos em Propaganda Republicana mostra-nos apenas um jovem impertinente. Sua capacidade de agitador tomava vulto, à época, somente pelo fato de que os republicanos almejavam uma mudança política sem qualquer quebra de continuidade.

A 7 de abril de 1889, no auge da campanha republicana, num banquete que setores do comércio oferecem a Silva Jardim, vejamos, analisando seu discurso, como ele entende a propaganda republicana: "(...) Assim, como a política eleitoral também pode ser revolucionária, é claro que o radicalismo republicano não deve excluí-la do seu programa. Tomando-a, porém, como acidente, ele deve dirigir-se diretamente à ação extragovernamental, e antigovernamental. (...) Sobretudo, o que é preciso manter, em minha opinião, é a tribuna popular, como aquele que se acha mais em contato com o povo; (...). O que é preciso é manter a conferência, o meeting, e continuar as excursões políticas de que tenho dado exemplo (...). O que é preciso é desenvolver o affiche (4), o folheto enérgico, todos os meios de imprensa (...)."

E, logo a seguir, a forma pela qual deveriam, em sua opinião, ocorrer as mudanças no país: "(...) Pela palavra Revolução eu não entendo o armamento de milhares de homens, voluntários ou mercenários, contra outros milhares: isto seria a guerra civil. Com franqueza, não creio que devêssemos fazê-la, porque seria a prova de que não estava conosco, como apregoamos, a unanimidade da nação. (...) Pela palavra Revolução eu entendo hoje o que a 26 de maio entendia e exprimia; uma agitação em que pequenos motins não tiram o caráter geral de paz do movimento; bastantes contudo para enfraquecer de todo as forças monárquicas, e destruir o Império. O que absolutamente não podemos é abandonar o exercício dos nossos direitos; e nesse exercício não devemos recuar um momento, e aceitar a luta em todo o terreno, sem excluir, até desejando, a luta de mão armada."

Como vemos, o extremo conservadorismo dos latifundiários que controlavam o Partido Republicano acabou por transformar um moderado, cujos discursos titubeiam entre avanços e recuos de exaltação juvenil, num revolucionário...

Ler os discursos de Silva Jardim é sentir o gosto acre das coisas decrépitas e a melancólica certeza de que o rígido processo de controle ideológico, iniciado no período colonial, alcançara seus objetivos: o Brasil se mantivera plenamente apartado da elaboração dos alicerces que dariam vida às modernas teorias do Estado. Ou, como sintetiza o historiador Sérgio Buarque de Holanda, "a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas." (5)

O pensamento de Silva Jardim tem outras pérolas que merecem citação, a fim de que não permaneça o mito do agitador radical. Ele defende, por exemplo, um tipo especial, invulgar e confuso de ditadura: "A primeira necessidade para a República - desde a sua instalação - é um Governo forte, uma ditadura progressista, guiada pela opinião pública, revogável pelo povo." Divulga curiosas e inseguras teorias sociais: "É urgente desenvolver a simpatia pelo proletariado, especialmente preto, como mais infeliz, e bater as leis coercitivas do trabalho, harmonizando o proprietário e o trabalhador, aconselhando-se a este a submissão inteligente, que não exclui a independência." Em certo momento, critica os comunistas, por não compreenderem o que ele chama de "ligação simpática entre o capital e o trabalho", para, logo depois, elogiar a grande propriedade rural, por ter contribuído à "civilização de nossa pátria". E, condenando a imigração de chineses ao Brasil, pondera, repetindo velhos preconceitos: "A raça branca distinguia-se pela inteligência; mas que nem por isso lhe era inferior a raça preta, cujo desenvolvimento de afetos é mui grande, nem a raça amarela, a raça ativa por excelência."

O jovem tribuno, contudo, façamos justiça, bate-se corajosamente pela democracia interna do partido e por suas idéias, colocando-se frontalmente contra as resoluções de um congresso realizado em São Paulo, em maio de 89, e que isola o seu grupo, denominado de "revolucionário": "(...) Descubro na sua eleição [de Quintino Bocaiúva, para presidente do partido] o que eu sentia de longos meses: - uma conspiração de alguns elementos do Partido Republicano, gastos para a ação patriótica, e somente capazes de intriga para a cobiça do poder, - aliada à falta de compreensão da situação histórica atual, com o pretensioso fito de paralisar a agitação republicana." Nega, contudo, a cisão com o partido, mantendo-se como "divergente", pois afirma querer "impulsionar" a República. E vitupera, com total razão: "O liberalismo monárquico está nos absorvendo."

Na verdade, em meio às sucessivas crises, desde a primeira hora uma certeza se impõe entre todos os que, de alguma forma, batalharam de maneira sincera pelo república: a esperada democratização não virá. Ao contrário, o pulso forte dos militares e, depois, a política de conciliações, impedem a manifestação de qualquer idealismo.

Figura emblemática no curso de tais acontecimentos, o escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, vivenciaria as diferentes fases da nascente República, desde os tempos da propaganda contra a monarquia até a presidência de Afonso Pena, que, a confirmar a ausência de mudanças no regime republicano, fora, por três vezes, ministro do imperador Pedro II.

Em 1888, aluno da Escola Militar, Euclides encontra-se sob a influência, como tantos outros, de Benjamin Constant. Um protesto contra o ministro da Guerra, Tomás Coelho, que visitava a escola, é combinado entre os colegas. Na hora determinada, apenas Euclides se manifesta. Na formatura, ao invés de erguer seu sabre para saudar o ministro, tenta quebrá-lo e, não o conseguindo, atira-o ao chão. É preso e, levado a Conselho de Guerra, defende suas idéias republicanas e é expulso do exército por um ato pessoal do imperador. Será reconduzido ao exército em 1889, após a proclamação da República.

Contudo, os anos de idealismo duram pouco. Em carta ao pai, em 14 de julho de 1890, já critica a onda de favoritismo que se instalara no regime: "(...) Desconfio muito que entramos no desmoralizado regime da especulação mais desensofrida e que por aí pensa-se em tudo, em tudo se cogita, menos na pátria [...]. Imagine o senhor que o Benjamin (6), o meu antigo ídolo, o homem pelo qual era capaz de sacrificar-me, sem titubear, e sem raciocinar, perdeu a auréola, desceu à vulgaridade de um político qualquer, acessível ao filhotismo, sem orientação, sem atitude, sem valor e desmoralizado - justamente desmoralizado." (7)

Em 1893, eclode a Revolta da Armada e Euclides é chamado para trabalhar na fortificação e construção de trincheiras. Um incidente político envolve o escritor e o senador governista João Cordeiro, do Ceará, comprovando a fleuma republicana do escritor. O senador "sugerira, como represália a um atentado contra um jornal, que se asfixiassem em cal os presos políticos da revolta, então na Ilha das Cobras. Euclides (...) protesta com calor contra esta 'revivescência do barbarismo', manifestando-se a favor da 'serenidade vingadora das leis'. Em conseqüência, (...) cai em desgraça aos olhos de Floriano e dos jacobinos, que o apoiavam, e é, a 28 de março, afastado para bem longe, com a designação para a Diretoria de Obras Militares de Minas Gerais, na cidade de Campanha, onde vai dirigir as obras de construção de um quartel."(8)

Uma leitura da correspondência (9) de Euclides mostra, com nitidez, como, no transcorrer dos anos, sua decepção se transforma em mágoa e crítica. A 6 de novembro de 1895, confidencia a Bueno Brandão: "Tenho saudade daquela minoria altiva anterior a 15 de novembro... há tanto republicano hoje...". Em 1904, em carta de 22 de abril a Coelho Neto, recorda com indisfarçável nostalgia: "(...) Estupendos sonhos de mocidade (ó República!...) que não sei mais onde existem." E escrevendo a Otaviano Vieira, em 8 de agosto de 1909, deixa que se rompam todos os diques: "(...) Estou na reserva desde os vinte anos, quadra em que me assaltou o pessimismo incurável com que vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis. Talvez não acredites: ando nas ruas desta aldeia de avenidas, com as nostalgias de um inglês smart (10) perdido numa enorme aringa da África Central. Nostalgia e revolta: tu não imaginas como andam propícios os tempos a todas as mediocridades. Estamos no período hilariante dos grandes homens-pulhas, dos Pachecos empavesados e dos Acácios triunfantes. Nunca se berrou tão convictamente tanta asneira sob o sol! (...) É asfixiante! A atmosfera moral é magnífica para batráquios. Mas apaga o homem. (...)"

Euclides da Cunha, como tantos outros férvidos republicanos, acabaria por tornar-se vítima desse Cronos que devora seus próprios filhos. Walnice Nogueira Galvão (11) comenta, com acuidade: "Embora nunca se torne um escritor áulico, a exemplo da maioria dos intelectuais coevos, e mantenha um poder de fogo crítico intacto,(...) estava ciente de que o sistema o mantinha confinado e cozinhava-o em fogo lento, mantendo-o dependente de favores quando ele tinha direitos."

Euclides, agora, não é preso ou deportado a uma região inóspita do país, mas a mão silenciosa da República o desterra para o limbo do qual jamais viria a alcançar a posição que seus méritos exigiam. Atado, no fim da vida, a uma dúbia situação no Ministério das Relações Exteriores, ele nunca seria plenamente reconhecido.

Condenados ao mesmo ostracismo, Silva Jardim e Euclides da Cunha experimentaram o poder dissimulador das oligarquias brasileiras, que silenciam todos os que não partilharem de seus interesses, sejam moderados ou radicais, medíocres ou geniais, titubeantes ou destemidos.

Esta é, contudo, apenas uma das muitas faces tenebrosas da República brasileira.


Notas

(1) (1) Editor e ensaísta. Sítio na internet: www.rodrigo.gurgel.nom.br
(2) Assembléias.
(3) Jardim, Antônio Silva. Propaganda Republicana (1888-1889), MEC - Fundação Casa de Rui Barbosa, RJ, 1978.
(4) Cartaz.
(5) Raízes do Brasil, Cia. das Letras, SP, 1995.
(6) Refere-se a Benjamin Constant.
(7) Galotti, Oswaldo e Galvão, Walnice Nogueira. Correspondência de Euclides da Cunha (ativa), Edusp, SP, 1997.
(8) Galvão, Walnice Nogueira. Euclides da Cunha: História. Editora Ática, SP, 1984.
(9) Galotti, Oswaldo e Galvão, Walnice Nogueira. Op. cit.
(10) Fino, elegante.
(11) Galvão, Walnice Nogueira. Op. cit.



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