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31 de maio de 2002 |
O conto da legalização de uma imigrante Na fila Carla Guimarães (*)
Ali estava, na fila. Nem tão atrás para acreditar que nunca vou chegar, nem tão na frente para acreditar que não vou chegar nunca. Estava justo no meio do caminho. Esmagada por um caminhão distribuidor de leite Pascual que decidiu estacionar justo ao meu lado, reduzindo meu espaço de acomodação na fila a um cotovelo de distância.
E tudo cheirava a merda. Merda velha, merda de dois dias atrás. Merda produzida por um cachorro que passeava livremente pelas ruas, cagando a ermo, sem pensar que alguém, um dia, poderia estar parado ao lado da sua merda. Certamente era um cachorro pulguento e mal encarado, pois cheirava a cachorro pulguento e mal encarado, cheio de parasitas, vermes e afins. Cheirava pior que merda. O espaço deixado pelo caminhão me empurrava para cima de uma cerca de metal e eu tinha que usar todos os meus dotes de bailarina para evitar pisar na fétida excressão que jazia ao meu lado. Eram apenas 8 horas da manhã e meu dia já estava apertado e cheirando mal. Nueva Numancia, assim se chamava o bairro onde me mandaram para receber, por fim, minha carteira de residente na Espanha. Na porta da delegacia e na fila dos imigrantes, eu xingava mentalmente o sacana que me fez acordar as 6 da manhã, pegar três conexões de metrô e me perder por um bairro obreiro que mais parecia uma vizinhança qualquer do Brasil. Estou segura que eles devem preparar todo um esquema e calcular estrategicamente como destroçar minha vida de delegacia de imigração em delegacia de imigração, de fila em fila e de papelada burocrática em papelada burocrática. Tudo pensado e repensado com o único objetivo: que eu desista de tudo e volte a cruzar o poço que nos separa, o Atlântico. Porque são nesses momentos, e em nenhum outro, que penso com mais fervor que nunca: o que é que eu estou fazendo aqui? Detrás de mim, dois árabes conversavam com cara de cansaço, seguramente estavam pensando o mesmo que eu. Na minha frente, uma russa, que me abriu um sorriso desses que te desconcertam até quando se está de mal humor. Não teve vergonha em dizer que era puta, mas sim em revelar que era russa... Coisas da vida. Ela estava feliz porque depois de cinco anos iria por fim ser legal, existir. Diante da fila, a Bodega Limona recebia o carregamento de leite. Ao lado direito da Bodega, estava a Fruteria Pablo. No esquerdo, o Bar de Charo. Entre os dois, o negócio que mais prosperava na região: uma velha máquina automática de fotos 3x4. Eram tantos os imigrantes e tão grande era a fila, que a máquina não parava para descansar, tirando as fotos que adornariam as novas carteirinhas de residentes. Ou deveria dizer: sobreviventes. Atrás de mim, chegou um terceiro homem que falou animadamente com os árabes. Eu segui sem entender nada até que ele tirou umas notas do bolso e comprou o lugar na fila, instalando-se detrás de mim enquanto os outros abandonavam a espera. Eles não eram legais, apenas vendiam seu lugar na fila da legalidade. Charo, a do Bar, andava contente, com um sorriso de orelha a orelha. Instalada na porta, cumprimentava os vizinhos e recebia todo o contingente da fila que, a medida que iam sendo atendidos, decidiam tomar um cafezinho bem quente ou uma cerveja gelada, apesar da hora matinal não ser a mais própria para tomar a primeira dose. Creio que Charo aprendeu a abrir o negócio bem mais cedo e eu, a tomar cervejinhas pela manhã. Melhor dizendo, claras, uma mistura de cerveja e água tônica. Saindo da fruteria Pablo, uma senhora já bem velhinha parecia não coincidir com a opinião alegre de Charo. Ela acreditava que os imigrantes estavam tomando o trabalho dos seus filhos e netos, pior, fazendo que os salários fiquem cada vez mais baixos e a assistência social cada vez pior, pois trabalham por muito menos. Para dizer a verdade, a velha se mostrou um tanto facista, pois parecia não falar de gente, simplesmente repetia classificações genéricas como negros, mouros e sudacas (1). E as gritava como se fossem verdadeiras ofensas. A merda começou a cheirar mais forte desde que comecei a escutar o discurso da velha que, em algum momento e infelizmente, até chegou a fazer sentido. O bem estar social alcançado na Espanha vem sendo reduzido nos últimos anos. Talvez porque seja mais fácil fechar uma empresa em Barcelona e reabrir outra no Brasil, onde seguramente pagarão menos impostos, terão mais privilégios e pagarão menores salários. Melhor ainda se buscam em algum estado onde os sindicatos não sejam fortes. Coisas da globalização, este evento que supostamente traz benefícios para todos. O sol de primavera já estava esquentando e eu tirei o casaco. A fila, milagrosamente, caminhou e pude deixar, por fim, o reduzido espaço entre o caminhão e o cocô de cachorro. Infelizmente, o novo integrante da fila que comprou seu espaço atrás de mim, não tinha os mesmos dotes de bailarina que eu e acabou pisando na merda. Resultado, o cheiro continuava me seguindo e a sensação exata era que a merda andava atrás de mim e que nunca, nunca mais iria me deixar! Respirei fundo, depois percebi que esta foi uma má idéia e desisti de respirar, como se isso fosse possível. Uma hora mais, depois de tentar ler um capitulo de um livro de bolso qualquer, nem pude acreditar quando cheguei na porta da delegacia. Obviamente depois da entrada de um grupo grande de gente até que o policial decidiu freiar a fila justamente em mim. Tive vontade de explicar que sou pequena, magrinha, que não faria diferença aí dentro, mas que pelo menos não estaria aqui fora, sentindo-me empacada, enfileirada, estancada. Olhei para a cara do policial e desisti de qualquer súplica. Sério como um inglês, sua decisão de me deixar de fora já estava tomada. Sabem qual é a sensação de ser a primeira da fila? Porque teoricamente eu era a primeira, pelo menos naquele momento. É reconfortante e desoladora. Reconfortante por saber que finalmente vai entrar, e desoladora por não saber quando. Esperei mais meia hora e entrei na delegacia. Havia uma placa imensa para os residentes e entrei na nova fila, na fila de dentro. É um avanço. E a verdade é que não demorou muito, logo entreguei o passaporte e o resguardo a funcionária que olhou três vezes a foto antes de me entregar a carteira. Tive que explicar: que na foto do passaporte estou com o cabelo liso, mas ele é cacheado mesmo. Ela olhou outra vez, reconfirmando. E leu o nome Guimarães como se estivesse lendo inglês ou russo. Eu confirmei, não queria complicações, não iria explicar como ler meu nome, nem dizer que não me chamo Gina Rãs. Mas depois de tanta fila, aprendemos a ser flexíveis. E por fim recebi, em mãos, a tão suada carteirinha de residente. Sai da delegacia com um sorriso nos lábios, não era como o bonito e desconcertante sorriso da russa, mas era um sorriso. Melhor dizendo, era uma risada meio idiota, meio feliz. E fui direto para o Bar da Charo: «una clara, por favor». Demorei para guardar a residência na bolsa, lendo e observando cada mínimo detalhe. Brindei com o senhor ao lado, que já estava na quinta cerveja, e depois de tocar, apalpar e reapalpar, decidi cheirar a carteira antes de guardar na bolsa. Não sei porque, imagino que estava muito sugestionada, mas não é que a danada da carteira cheirava a merda... Notas (*) Carla Guimarães é uma roteirista e dramaturga brasileira que vive atualmente em Madrid. (1) sudaca: palavra que indica a condição de sul americano. |
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