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13 de maio de 2002 |
A hegemonia do grotesco no imaginário da mídia Dênis de Moraes (*)
O grotesco, enquanto manifestação de formas aberrantes e escatológicas, é um fenômeno que se alastra pela vida contemporânea, com reverberações fortes na mídia e nas artes em geral. A contrafação dos cânones esteticamente corretos seduz amplas faixas de audiência, predispostas a rir diante das situações chocantes que desfilam em telas e imagens. Poucos estudos abordam em profundidade a crescente prevalência dos padrões escandalosos nos produtos da comunicação. O império do grotesco, escrito pelos professores Muniz Sodré e Raquel Paiva (Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2002), vem suprir a lacuna, oferecendo uma competente arqueologia das formas expressivas que singularizam a estética do grotesco. Vale lembrar que esta é a segunda contribuição de Muniz Sodré à compreensão crítica do tema, pois, três décadas atrás, publicou A comunicação do grotesco, já na 14ª edição.
Em 154 páginas ilustradas com fotos, desenhos e gravuras, Muniz e Raquel compõem um rico mosaico sobre o percurso do grotesco na cultura e nas artes, desde a Antiguidade Clássica até a sua inserção nos nossos dias de entretenimento fast food. Os autores examinam os contextos históricos e socioculturais para evidenciar como o gosto pelo ridículo e pela excrescência prosperou e se diferenciou. Essa reavaliação indica que, de um substantivo com uso restrito à avaliação estética de obras de arte, a palavra grotesco "torna-se adjetivo a serviço do gosto generalizado, capaz de qualificar figuras da vida social como discursos, roupas e comportamentos". A partir de uma releitura das obras clássicas de Mikhail Bakhtin e Wolfgang Kayser sobre o assunto, Muniz Sodré e Raquel Paiva enquadram o grotesco como categoria estética dotada de lógica própria, não legitimada pela teoria hegemônica da arte. Com a sua propensão ao bizarro e ao vulgar, o grotesco é capaz de subverter o sentido estabelecido das coisas e delinear "uma radiografia inquietante, surpreendente, às vezes risonha, do real". Radiografia que, via de regra, incorpora traços de carnavalização estudados por Bakhtin em certas imagens do Renascimento, marcadas pela excessiva idealização de componentes míticos da cultura popular. O livro propõe uma tipologia de gêneros e espécies do grotesco, verificando a seguir como se refletem na literatura, nas charges e caricaturas da imprensa, no cinema, no teatro e na televisão. Nestes capítulos, ss análises sobre as ressonâncias do grotesco nas obras de Nelson Rodrigues e Lima Barreto são particularmente inspiradas. Segundo Muniz e Raquel, em suas 17 peças teatrais Nelson realiza "uma mistura de farsa, melodrama e tragédia, pontuada por uma linguagem coloquial e geralmente crua, em que o escândalo acontece sem afastar o risco". Nos romances e crônicas de Lima Barreto percebem a sensibilidade para criticar, anos antes da Semana de Arte Moderna, "o grotesco das hipocrisias e das idealizações com que o mundo oficial e a literatura estabelecida tentavam resolver o constrangimento das ambíguas identidades étnicas e culturais das classes dirigentes". Mas é nas 49 páginas dedicadas a uma crítica do grotesco na televisão aberta que o ensaio alcança seu ponto máximo. Veículo de massa por excelência, a TV de hoje confere ampla visibilidade às cenas escatológicas e vexatórias. Nem o célebre "padrão Globo de qualidade", com suas imagens assépticas, resistiu à ofensiva dos produtos apelativos e de baixo nível artístico. O que não deixa de ser uma desconcertante contradição com a evolução tecnológica da própria TV. Depois de reapreciarem a primeira onda do grotesco nas programações das décadas de 1960 e 1970 (Chacrinha, Sílvio Santos, Flávio Cavalcanti, Raul Longras, Hebe Camargo), Muniz Sodré e Raquel Paiva demonstram como a supremacia mercadológica da TV "popularesca" se consolidou nos últimos anos, em programas como o de Ratinho e Leão e nos "reality shows" (Casa dos Artistas e Big Brother Brasil). Segundo os autores, o grotesco se infiltrou nos diversos gêneros televisivos - dos programas de auditório ao telejornalismo espetacularizado. Na busca obsessiva pela audiência e, por extensão, pelas verbas publicitárias, as programações afastam-se de perspectivas críticas, substituindo valores éticos por emoções baratas e abjeções de toda ordem. No riso estimulado pela exibição do lado cruel da realidade, "antigos objetos de indignação (miséria, falta de solidariedade, descaso dos poderes públicos, etc.) recaem na indiferença generalizada". Muniz e Raquel chamam a atenção para o fato de que a audiência não é vítima, mas cúmplice passivo de um ethos a que se habituou. Um "pacto simbólico" rege a relação de contratualidade entre as emissoras e a maioria dos telespectadores (notadamente os mais pobres e com pouca instrução). Estes aceitam como verdade tudo que lhes é apresentado, assegurando em troca fidelidade a programas que atendam às suas expectativas de divertimento fácil. Daí porque a proliferação de seqüências estapafúrdias e constrangedoras no chamado horário nobre. Com base nas pesquisas de audiência, as redes de TV não param de reiterar que oferecem "aquilo que o público deseja ver". As emissoras querem cristalizar a idéia de que nada impõem aos receptores. Mesmo que exibam lixos eletrônicos como os piores clipes do mundo, cenas embaraçosas de traições amorosas, as famigeradas "pegadinhas". Por trás desse discurso de legitimação do banal e do exótico, ocultam-se as diferenças de classe e as hierarquias do consumo que regem e condicionam as preferências sociais. O imperdível "O império do grotesco" conclui que a adesão compartilhada à estética do grotesco reforça os mecanismos de controle do imaginário social conformado pela TV. Na mão oposta, a hegemonia da aberração favorece um contínuo distanciamento da consciência crítica e dos compromissos éticos que deveriam nortear a difusão de conteúdos de massa. Contudo, o quadro adverso não aniquila a força expressiva intrínseca da televisão. "Recusar um meio de comunicação que se dirige a milhões de pessoas é no mínimo burrice", sublinhava em 1974 o saudoso dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, Vianinha. Trata-se, isto sim, de reivindicar uma outra TV, muito menos grotesca e mais afim com o seu papel de veículo de entretenimento que precisa contribuir para a formação cultural e educacional. (*) Dênis de Moraes, doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense e autor, entre outros livros, de O Planeta Mídia: tendências da comunicação na era global, O concreto e o virtual: mídia, cultura e tecnologia e Globalização, mídia e cultura contemporânea, org. |
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