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La insignia
13 de maio de 2002


150 anos de cretinismo parlamentar


Mário Maestri (*)


Mesmo os que são contra não se atrevem a negar a importância germinal do pensamento econômico de Karl Marx, exposto sobretudo em O capital. As categorias que cunhou para a crítica do modo de produção capitalista tornaram-se moedas correntes, usadas por leigos e profanos, conscientes e inconscientes de suas origens marxianas.

Porém, ignora-se geralmente a fundamental contribuição do pensador alemão à historiografia científica. Ao contrário, tornou-se um quase truísmo a proposta da escassa ou nula contribuição de Marx e de seus epígonos à história, em geral, e à história política, em particular.

Essa esterilidade primordial nasceria da vocação epistemológica marxista de arrancar - a fórceps - as explicações dos acontecimentos políticos dos sucessos econômicos - propõe-se. A violação das infinitas mediações entre esta e aquela instância determinaria a incapacidade marxista da compreensão do político, do cultural, do ideológico ­- afirma-se.

Nas últimas décadas, prometeu-se a superação desse pecado de nascença do marxismo através de abordagens metodológicas da realidade social que incendiaram, uma após a outra, sobretudo os interesses de acadêmicos atraídos pelas últimas e inofensiva novidades culturais - a história das mentalidades, a história do quotidiano, a nova história cultural, a nova história política, etc.


Tempo e espaço

Karl Marx também revolucionou a historiografia, sobretudo política. Antes mesmo de desenvolver plenamente sua crítica categorial sistemática da produção capitalista, em 1867, em sua obra magna, inaugurou a aplicação do método sociológico materialista à história, sobretudo numa sucessão de magistrais trabalhos sobre a história imediata da França.

O mesmo interesse que atribuiu ao estudo da história econômica inglesa, devido à situação de vanguarda de sua economia, atribuiu à análise da história política e social da França, devido a ter sido o berço da mais acabada revolução burguesa e possuir o mais combativo, o mais organizado, o mais politizado e o mais revolucionário proletariado de sua época.

O historiador Maximilen Rubel lembra que, além de ter pretendido escrever ensaio sobre a Grande Revolução, Marx, "grande colecionador de datas", "compôs pacientemente", em oitenta página, com sua "escritura fina e cerrada", uma "cronologia da história da França do ano 600 antes de nossa era até 1589"!

Fato que certamente constitui motivo de escândalo para os que apontam a preocupação com datas e fatos como desvio positivista, ignorando que a ciência histórica trata-se de reconstituição e explicação essencial de processos humanos que se objetivam necessariamente no espaço e no tempo.


A essencia e a consciencia

Sobretudo em As lutas de classe na França, de 1850, O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, de 1852, e A guerra civil na França, de 1871, Marx apresentou uma interpretação da história política e social que marcou para sempre a historiografia científica. Não deixa de ser uma fina ironia que não tenham escapado dessa influência sequer aqueles que negam e ignoram essa revolução copernicana.

A revolução epistemológica marxiana na historiografia deva-se à explicação dos fenômenos históricos, políticos, ideológicos, comportamentais, etc. como determinados tendencialmente pelas condições sociais de existência das classes e, portanto, de seus grandes e pequenos atores. Fenômenos que jamais são compreendidos a partir das compreensões e justificativas superficiais dos protagonistas de seus atos.

"Sobre as diferentes formas de propriedade e as condições sociais de existência, levanta-se toda uma superestrutura de sentimentos, de ilusões, de modos de pensar e de concepções filosóficas, de expressões infinitamente variadas, criados e modelados pela classe, como um todo, a partir dos fundamentos materiais e das condições sociais correspondentes desta última."


Sociologia e História

Apesar da sua superação radical da simples reconstituição do evento, através do desvelamento de suas determinações essenciais, Marx manteve-se sobretudo nos quadros da crítica dos acontecimentos históricos singulares, circunscritos no espaço e no tempo. Definitivamente, não fez sociologia, mas historiografia política, em sentido estrito.

A leitura do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, cento e cinqüenta anos após sua redação, causa profunda perplexidade, sobretudo pela radicalidade e atualidade das lições que o autor retirou de sucessos de uma época em que as ferrovias eram novidade quase exclusiva dos países mais avançados do mundo!

Atualidade que não deve surpreender, já que nasce da confluência do rigor de pensador genial, com método revolucionário, na análise de uma situação sócio-econômica ­que se mantém ainda plenamente vigente, apesar de sua avançada decrepitude - modo-de-produção capitalista.

Em O Dezoito Brumário, Marx escolheu o parlamento como grande locus de análise dos sucessos que levaram ao golpe de Estado de dezembro de 1851, através do qual um aventureiro, que tinha como único trunfo ser o sobrinho putativo de Napoleão, vergou vilmente o governo republicano e constitucional francês.


Representados e representantes

Mantendo sempre sua crítica nos quadros da história política, analisando detidamente o comportamento dos grandes protagonistas, Marx desvela diante dos olhos dos seus leitores os complexos mas inquebrantáveis fios de Ariadne que uniam às classes sociais aos seus representantes políticos.

Sobretudo, mostrou que o poder político é expressão direta das forças sociais objetivas em cena. Que a representação parlamentar de classe vergada na luta social tem a força de um grito afônico contra o vento.

Sua análise dos fatos parte da derrota do proletariado francês, nas jornadas de junho de 1848, que transformou a representação parlamentar popular em espécie de sombra sem corpo, despida de poder real, diante da ditadura constitucional da burguesia republicana vitoriosa.

Assinala que, a seguir, a debilidade das forças proletárias e, portando, dos seus representantes parlamentares, permitiu a derrota da burguesia e da pequena-burguesia republicanas pelo "partido da ordem", constituído sobretudo pelas facções bourbônicas e orleanistas das elites dominantes.


República e monarquia

Sua fina análise registrou o fracasso das tentativas de unificação dos partidos realistas devido sobretudo ao fato de defenderem interesses concorrentes - o pró-Bourbon, a grande propriedade fundiária, o pró-Orléans, a burguesia industrial-financeira. Esforços que assinalaram igualmente a compreensão muito parcial pelos protagonistas políticos dos interesses profundos que defendiam.

"O que diferenciava as duas frações, não eram em nenhum caso pretensões de princípio, eram suas condições materiais de existência, dois tipos diferentes de propriedade, era a velha oposição entre a cidade e o campo, a rivalidade entre o capital e a propriedade fundiária."

Ao analisar o abandono das elites proprietárias de seus representantes parlamentares, na procura de proteção, sob a espada de Bonaparte, contra as classes populares, registrou a cômica tragicidade do espetáculo de artista pretensioso que move inutilmente dedos já não mais ligados por finos barbantes à marionete que se nega teimosa a obedecer suas ordens.

A burguesia, lembrava Marx, "declarava sem ambigüidade que ela ardia de desejo de se desembaraçar de seu próprio poder político a fim de se desembaraçar das incomodações e dos perigos do poder." Porém, os parlamentares burgueses faziam ouvidos moucos às ordens de se eclipsarem da vida política, deixando o palco livre ao general, ao capitão, ao sargento, ao sacerdote.

Na análise do autismo do parlamentar que crê que o sol nasça quando desperta e eclipse quando adormece, fundiu categoria sócio-histórica de imorredoura pertinência. "[...] esta enfermidade bem particular que, depois de 1848, golpeou todo o continente, o cretinismo parlamentar, que encerrou em um mundo imaginário aqueles que são por ela atingidos, retirando-lhes todo sentido, toda recordação, toda compreensão do rude mundo exterior […]."


Parlamentar filisteu

Em O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Marx expressou em forma dura seu desprezo pelo parlamentar filisteu, eternamente disposto a dobrar-se aos poderosos, "por medo ao combate, por lassitude, por consideração […] por seus familiares dependentes do dinheiro público, por sonharem com uma próxima vacância de cargo ministerial […], por puro egoísmo […]."

Sua crítica percutante fulmina igualmente a própria social-democracia, que apenas engatinhava, como vã tentativa de harmonizar capital e trabalho, como sonho irreal de transformar a sociedade, nos limites estreitos dos horizontes de classe do pequeno-burguês, por meios democráticos.

Escreveu sobre as relações dos políticos pequeno-burgueses com sua classe: "O que os torna representantes do pequeno-burguês é que intelectualmente não ultrapassam os limites que o pequeno burguês jamais ultrapassa na sua vida. Tanto é que eles são constrangidos teoricamente a proporem os objetivos e as soluções os quais o pequeno-burguês é igualmente constrangido pelo interesse material e pela situação social."

A lição que Marx tirou dos sucessos de 1850 é clara. A "força do partido proletário" encontra-se "na rua". Portanto, é sempre interessado no seu fortalecimento social que ele deve participar do jogo parlamentar, palco por excelência das classes exploradoras. Essas, se ameaçadas nos seus privilégios, pegam a bola e abandonam o jogo, para irem esconder-se por detrás da baioneta do juiz fardado.

Explica a vitória da ditadura napoleônica e a derrota das classes sociais como resultados do atraso político dos camponeses franceses de então. Para ele, superado esse impasse, realizada a imprescindível aliança operário-camponesa, "a revolução proletária" conquistaria "o coro sem o qual seu solo torna-se um canto fúnebre em todas as nações camponesas".


Brasil - das ruas ao parlamento

Nas últimas décadas, no Brasil, políticos populares partiram das ruas e dos campos para a conquista do parlamento e da administração do Estado burguês, onde se aquereciaram com tamanho gosto que passaram a amaldiçoar as antigas moradas, aterrorizada em perder o doce pedaço de paraíso alcançado.

No Brasil, o cretinismo parlamentar, de vício tornou-se virtude. A luta social e a acumulação de força do mundo do trabalho tornaram-se apenas espécie de curinga na manga, de incenso precioso a ser queimado no altar do parlamento de classe, diante ao qual o filisteu e o social-democrata adoram, ajoelhados, o bezerro de ouro.

Os sindicatos renegam as greves. Os partidos populars abandonam asas mobilizações, domesticam seus programas, mandam os militantes pra casa. Ao chegarem ao goverrno, juram que fazem o podem. Desde as cidades, seus candidatos e parlamentares xingam as lutas dos pobres dos campos.

O parlamento torna-se o sal da terra, o alfa e o ômega, o princípio e o fim. Para ganhar uma eleição, sobretudo sendo a principal, tira-se para dançar o próprio diabo, ainda mais se ele for liberal e um grande empresário.

O cretinismo parlamentar está para a esquerda brasileira como a dengue para o Rio de Janeiro. É cada vez mais difícil encontrar político ou pobre carioca jamais picado pelo mosquito malvado. Uma doença que, de tão forte, derreou a velha ilusão de mover os mares com os abracadabras parlamentares. Hoje, o prêmio é a própria sombra - o corpo tornou-se fantasmagórica ilusão.

Há cento e cinqüenta anos, Marx iniciava seu livro luminar lembrando que os grandes acontecimentos históricos repetem-se duas vezes. A primeira como tragédia, a segunda como farsa. No Brasil atual, a farsa parlamentarista assume cada vez mais a dimensão de uma imensa tragédia histórica.


Mário Maestri, 53, é historiador. E-mail: maestri@via-rs.net



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