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4 de março de 2002 |
O homo burocraticus Luís Carlos Lopes
A burocracia normalmente é confundida com as atividades administrativas. Há motivos para tal. A origem da palavra relaciona-se aos atos de poder governamentais e privados que dependem de algum tipo de registro, processamento escrito ou imagético que os simbolizem. Estes atos existem desde a criação do Estado, das sociedades divididas em classes e das formas de expressão escritas ou pictografadas mais elaboradas. O poder político, social, econômico e cultural sempre necessitou de produzir marcas contratuais, por meio de documentos e outros registros. Quando invocadas, elas simbolizaram e simbolizam, para além da fala humana, o poder de fato. Como têm uma longa história, as práticas burocráticas se diferenciaram em seus próprios contextos, permanecendo no mundo contemporâneo, que é o que aqui nos interessa, com feições próprias.
No contexto atual existem tradições burocráticas leves e pesadas. Elas fazem parte da cultura dos povos e refletem formas diversas de ver a vida, o trabalho e até o amor... Mesmo na mesma formação social podem existir diferenças que polarizam as contradições sociais e o modo que as tradições são operacionalizadas por instituições, grupos sociais e pessoas. As práticas burocráticas podem ser pragmáticas ou formalistas, simples ou complexas, enfadonhas ou prazerosas ou um pouco de cada coisa. Estamos no domínio da artificialidade da vida humana. Não é natural que nos apeguemos a determinadas práticas. Precisamos aprendê-las e valorá-las como corretas, falsas ou situações intermediárias. Elas podem ser impostas, consensuais ou parcialmente aceitas ou rejeitadas. Elas funcionam de acordo com os sistemas de crenças dominantes e com os usos que fazemos destes no cotidiano e em uma perspectiva de médio e longo prazo. Portanto, a burocracia funciona como a moral e seu conseqüente jogo normativo da vida e até da morte, seja ela natural ou, por exemplo, por efeito da atual epidemia brasileira da dengue. A burocracia representa a interferência do Estado e dos grupos com maior poder econômico na vida coletiva e privada. Formaliza igualmente a regulação social e econômica, quando expressa em documentos tais como formulários, escrituras, contratos, atestados, correspondências e sobretudo nos kafkianos processos jurídicos, administrativos e legislativos dentre outros. A burocracia trata das formas, para compreendê-la temos que pesquisar os conteúdos e ver como se relacionam com o rito formal. Se este se sobrepõe às proposições pragmáticas dos documentos, temos um caso de burocratismo formalista, do famoso papelório excessivo, da opressão dos longos prazos e da dificuldade de se obter o que se quer ou se precisa, hoje também existente no ritual formal processado pelos computadores. É ingênuo pensar que este formalismo não expressa interesses e não represente algum tipo de poder. Ao contrário, por mais irracionais que sejam as exigências, elas não são naturais, são pensadas e propostas por gente de carne e osso que possui algum propósito confessável ou não. Tem forte base weberiana a idéia de uma burocracia racional, eficiente, leve e capaz de estruturar os negócios de Estado e privados sem o formalismo excessivo das burocracias originárias do mundo aristocrático do passado europeu. É indiscutível que países tributários de diversas tradições políticas e culturais puderam ou possam ter maior ou menor sucesso nesta empreitada. Mas a burocracia sempre esbarrará nos limites existentes de racionalidade social, econômica e cultural. Sendo uma das expressões do mundo da vida concreta, a burocracia contém seus elementos e não pode se dissociar do conjunto da realidade material e simbólica onde opera. Na verdade, é parte de tudo isto, mesmo se, por vezes, tente se apresentar como peça isolada. Sob o ponto de vista da estruturação social, a crença na burocracia como panacéia universal ou arma político-institucional é muito forte. Ao mesmo tempo, esta crença facilita a formação de uma certa lógica de bando, isto é, de grupos organizados que se apegam às regras burocráticas e exercem seu poder através destas. Estes grupos tentam eliminar ou modificar os conteúdos originais, exageram no poder da forma e a utilizam para oprimir, esconder ou impedir qualquer transformação. Para ser burocrata deste tipo, não é necessário ser funcionário administrativo. Existem burocracias nas mais diversas profissões e funções sociais. Conhecemos em vários países a formação e o uso como instrumento de poder das burocracias partidárias, sindicais, corporativo-profissionais etc. Para ser burocrata, no sentido acima descrito, basta ser medíocre e serviçal ao poder. É muitas vezes o que resta para pessoas que jamais conseguiram construir suas independências intelectuais e profissionais, nutrindo um pavoroso rancor de quem ganha a vida com seu suor e inteligência e, ainda por cima, tenta inovar. É preciso lembrar que o homo burocraticus pode ser de qualquer sexo, religião ou orientação político-ideológica. São perigosos. Atacam quando menos se espera e estão sempre prontos para servir ... ao poder. Trata-se de uma perversão, uma doença social estimulada, em especial pelos Estados autoritários, corruptos e pelas sociedades caracterizáveis pelas formas mais brutais de exploração do homem pelo homem. Existem em toda parte, é uma praga daninha que floresce sem muito esforço. Basta existir espaço, haver necessidade e oportunidade, eles aparecem, compondo o cenário. A antítese disto tudo é o estímulo à inteligência e à justiça social. Neste terreno, a burocracia não tem argumentos, ela só sabe seguir normas, formas sem conteúdo, ficções do poder necessárias à imutabilidade do que nos cerca. |
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