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La insignia
21 de julho de 2002


As idéias e as formas: Filosofia e política


Jorge Furtado
Agência Carta Maior. Brasil, julho de 2002.


De um filósofo, resistente às paixões partidárias e eleitorais onde se perdoam as hipérboles, seria de se esperar argumentos que ultrapassassem o senso comum. Não é o que vemos na argumentação do filósofo Denis Rosenfield em freqüentes matérias jornalísticas ou textos assinados.


Informa o dicionário Houaiss que a filosofia é, entre outras definições possíveis, "a investigação da dimensão essencial e ontológica do mundo real, ultrapassando a mera opinião irrefletida do senso comum que se mantém cativa da realidade empírica e das aparências sensíveis". A política por sua vez seria, também entre outras acepções, "orientação ou método político e, por extensão, série de medidas para a obtenção de um fim", ou ainda "a arte de guiar ou influenciar o modo de governo pela organização de um partido, pela influência da opinião pública, pela aliciação de eleitores, etc." De um político pode se esperar, portanto, argumentos que sustentem uma visão "orientada" da realidade, capazes de seduzir eventuais eleitores ou de influenciar a opinião pública na direção de "um fim". De um filósofo, resistente às paixões partidárias e eleitorais onde se perdoam as hipérboles, seria de se esperar argumentos que ultrapassassem o senso comum. Não é o que vemos na argumentação do filósofo Denis Rosenfield em freqüentes matérias jornalísticas ou textos assinados.

Quando Rosenfield aconselha o PT a governar, "pois nada mais fez que vociferar", ou quando afirma que o "procedimento padrão" do PT seria "processar na Justiça todo aquele que criticava o atual governo estadual", usa argumentos que não ultrapassam e nem mesmo alcançam o senso comum. Se o PT nada mais tivesse feito que vociferar é pouco provável que a economia do estado tivesse crescido 11% em três anos, um número que ganha significado não apenas por estar acima da média nacional mas, principalmente, quando em comparação ao crescimento de 0,8% nos quatro anos do governo anterior (os dados são do IBGE). Se o PT tivesse processado "todo aquele" que o criticava, faltariam advogados e juizes no estado. Exageros de linguagem geralmente encobrem a fragilidade do raciocínio. Recorrer à justiça contra o que se julga ser uma ofensa pessoal à honra, causada pela opinião publicada de um jornalista é, e espero que continue sendo, um direito de qualquer cidadão numa sociedade democrática. Não vejo como isso possa ser associado a um governo "totalitário".

Rosenfield cita ainda uma série de "traços de um movimento totalitário" que estariam em curso no estado, repetindo alguns clichês que parte da mídia se esforça em tornar verdades inquestionáveis, como "a impunidade do MST no campo" ou "a afinidade com as Farc" (seja lá o que isso signifique). E inclui no rol "a triangulação Diógenes de Oliveira, Clube de Seguros da Cidadania, PT e a contravenção" e ainda "a falta de segurança". A única relação possível entre os pontos da lista é o fato de serem pauta da oposição estadual.


"Falta de segurança"

A criminalidade no Brasil é uma tragédia com números assustadores: 47 mil pessoas são assassinadas por ano, cifra que ultrapassa em muito a maioria das guerras em curso no planeta. É um problema terrível e um assunto de grande impacto na mídia. Não sei se a realidade dos números relativos à segurança pública no Rio Grande do Sul (homicídios, assaltos, etc.) confirma ou desmente a tese de que há também aqui um aumento da criminalidade. Até imagino que sim, se considerarmos a realidade nacional na qual o estado se inclui. Posso imaginar que os altos índices de desemprego, o avanço do poder do crime organizado decorrente da ausência do estado como garantidor das condições mínimas de uma vida em sociedade (entre elas, a segurança pública) estejam relacionados com uma criminalidade crescente. Mas não vejo como classificar a "falta de segurança" como "traço de um movimento totalitário".

Ao contrário. Governos totalitários, como os implantados na Alemanha nazista ou na Espanha de Franco, nas ditaduras do Brasil, Argentina, Indonésia, China ou Cuba, ou mesmo na teocracia dos talibãs no Afeganistão, costumam reduzir a criminalidade comum. No Complexo do Alemão, favela carioca comandada pelo autoritarismo armado do tráfico, não há roubos nem grades nas janelas pelo simples fato de que lá os crimes de assalto são punidos com a morte. O aumento da criminalidade, quando há e se há, é um fato sério. "Falta de segurança" não chega nem mesmo a ser um fato. É um sentimento, embora justificável, claramente pertencente ao campo da "opinião irrefletida do senso comum que se mantém cativa da realidade empírica e das aparências sensíveis".


Desapego à filosofia

O desapego à filosofia avança quando Rosenfield apresenta como traço de um movimento totalitário "a triangulação Diógenes de Oliveira, Clube de Seguros da Cidadania, PT e a contravenção". Além da imprecisão geométrica (quatro pontos sugerem um quadrilátero e não um triângulo), não há como relacionar a corrupção, se há e quando há, com totalitarismo. Os recentes escândalos da economia americana são apenas mais um exemplo de que a corrupção pode existir em qualquer regime político e só se torna pública e passível de investigação e punição nas democracias.

O caráter político-eleitoral da argumentação de Rosenfield mais se evidencia quando ele limita suas críticas ao território estadual. Nada há em seus textos sobre a violência crescente no país, o brutal endividamento do estado brasileiro, o risível crescimento econômico ou o fracasso do governo FHC na tentativa de reduzir a desigualdade social. Não há menções aos escândalos da privatização, nem às sistemáticas tentativas do governo federal de impedir a investigação sobre o caixa dois das suas campanhas. Rosenfield protesta contra "a ideologização e partidarização da Brigada Militar" mas silencia sobre as crescentes evidências do uso da polícia federal para investigar candidatos de oposição, isto sim um traço perigoso dos governos totalitários.

Em um estado democrático qualquer cidadão, filósofo, político, jornalista ou cineasta, tem o direito de expor e defender publicamente suas opiniões. E qualquer cidadão que se sentir ofendido tem o direito de recorrer à justiça. Em um estado democrático a defesa de posições políticas é sempre saudável. Que esta defesa desperte paixões e recorra freqüentemente a exageros de linguagem, é compreensível. É saudável, é compreensível mas, desculpe, não é filosofia.


(*) Jorge Furtado é cineasta.



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