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8 de julho de 2002 |
Precogniçao
Urariano Mota
Esse acontecimento, da invasão da sua casa, de certo modo Samuel previu. Desejou-o. Soube-o com quase certeza, vários meses antes. Para deixar a narração num mecanismo e esqueleto preciso, digamos que nas condições da ditadura Médici a invasão da casa de um militante era um acontecimento mais ou menos previsível. Seria como um molhar-se na chuva, quando se sai no inverno sem abrigo. Mas dizer isto é o mesmo que fazer um registro de escrivão num livro de cartório: nome, endereço, data. E, no entanto, o acontecimento do assalto a sua casa, a sua previsão, não se deu na amplitude e obviedade de um pêndulo, que avança nos meses e dias pela adição de períodos de minutos e segundos. A engrenagem não foi mecânica. Houve um processo diferente da previsibilidade da órbita de um cometa, que se move pela lei de Kepler, varrendo áreas iguais em tempos iguais. Houve elementos soturnos, musicais, e essa imagem de música lhe serve, porque, tendo uma base de ressonâncias físicas, recebeu uma organização sentimental que lhe mudou e fez esquecer a origem simples, elementar. Como um corpo que se tornou concreto sem anatomia.
Samuel era materialista. Queremos dizer, havia lido Os Princípios Fundamentais de Filosofia, de Politzer. Se um homem resolve equações do primeiro grau e consegue entender uma planta, e por isso recebe o tratamento de engenheiro, é natural que se julgue um engenheiro. Assim era, Samuel se julgava materialista porque lera Politzer e abraçara os deveres de um militante socialista. A premonição, portanto, lhe era vedada, por método, ofício e vontade. Mas não se abole por um decreto, dirigido sobre a consciência, as fantasias que o indivíduo assimila desde a mais tenra infância. "Toda superstição é estúpida", Samuel se dizia, cerrado. E com isso não lhe ocorria que ele golfava alguns componentes do leite que havia sugado no seio da mãe. Mas não golfava tudo. Endireitar o chinelo que se achasse emborcado, para não atrair a morte do dono, por exemplo, isso ele fazia, sem discutir, rápido, tão rápido e autômato quanto um piscar de olhos. E um piscar de olhos, sabe-se, com a exceção dos filósofos e cientistas mais analíticos, ninguém discute - faz-se, sem argumentos. Pois é claro que nem sempre a gente é o que deseja. O discurso, o império férreo do discurso, na sua sintaxe, léxico e ordenamento, simplifica ou omite astúcias que lhe escapam. Anos mais tarde, com espírito mais sereno, ele poderia ouvir com bom humor que as superstições, por via das dúvidas, não devem ser contrariadas. Se nada são, nada há de mais em observá-las. Naquele momento não. Nesse tempo de Samuel a essência dos fenômenos é atingida por pancadas. É um momento sem nuança, as cores são fortes, básicas, os objetos se definem por oposição, de guerra. O escuro nega em absoluto o claro. Ainda que se fale em dialética, difícil é ver que o negro se nutre da luz, que o claro, embora negue o escuro, é impossível de existir sem a irmandade do escuro. Agem como se a vida pudesse existir sem o seu fenecimento. Para eles a morte é um corte, brusco. Pois como recolher o fruto maduro da inexperiência? Naquele momento Samuel oculta, como uma identidade vexatória, o que não obedece a uma materialidade explícita. A palavras como espírito, religião, alma, pecado, virtude, niveladas como concepções vazias, ele responde com matéria, progresso, físico, revolução, programa. Naquele instante, e quantas coisas não dizemos na esperança de que o leitor veja a parte submersa que não foi nomeada, naquele instante a consciência deve refletir a matéria como um espelho reflete um objeto à sua frente. Naquele instante, dizia-se, "o conteúdo precede a forma, sempre, pois a forma se retarda em relação ao conteúdo, sempre". Naquele instante não lhe ocorre a possibilidade de que uma nova forma, quem sabe surgida feliz num lance de dados, venha a ser a bênção do acaso para um novo conteúdo. Pior, foge-lhe à vista o conteúdo que se move numa longa gestação, organizando-se em silêncio, sem alarde, até que rebente, como se fosse uma explosão inverossímil. Inverossímil porque só o materialismo - para ele restrito a uma teoria atéia do mundo - poderia fornecer uma previsão científica dos fenômenos da sociedade e da natureza. No entanto, quando invadiram a sua casa, ele o soube, bem antes. Daquela invasão ele já possuíra uma semelhança de certeza, há vários meses antes. Aconteceu, ele se disse, e apesar da infelicidade de sua mãe, e apesar da desarrumação, prática, que lhe caiu por cima, ele se sentiu feliz. Porque aquilo ele já esperava, e veio, como a coroação perfeita e acabada de um desejo. Como se fosse uma oração que perseguisse o milagre, como se a oração de olhos fechados parisse afinal o milagre, como se a fome calada fosse premonitória do alimento. Seus olhos ficaram úmidos, porque assim se deu. "Eu não pego mais o ônibus de volta para Beberibe", Samuel se disse, ao fim de setembro. Há vários meses ele vinha sonhando um enredo estranho. Estava na Encruzilhada, era tarde - e ele nunca soube precisar se esse tarde era pela madrugada ou se havia faltado luz no asfalto da avenida -, e ele ficava em dúvida se pegava o ônibus que o levasse ao centro do Recife, ou se entrava noutro que o deixasse de volta a Beberibe. Na urgência - era tarde - ele sempre voltava. Com pesar, angustiado, ele retornava num ônibus cheio, de luz baça, iluminado por lâmpadas frágeis, enfermiças, assim lhe pareciam, geradas por bateria gasta, indecisas entre o apagar-se e o consumo em baixa, lentas. O ônibus, em vez de fazer o percurso em linha reta, estendia-se por descaminhos, rumo a terras além-Paulista, até bater numa praia deserta, onde chovia, e ali ele descia sozinho, perguntando-se, "até onde terei de andar para pegar o ônibus de volta para Beberibe? ". Aborrecido por se ter deixado levar para além do seu ponto, ele estava sempre voltando para casa, e esta não era bem uma escolha, era uma imposição a que ele obedecia, para não vagar em estradas de terra batida, semidesérticas. Essa volta era mais que um aborrecimento, era uma angústia, um não-querer indo-se, um mergulhar em sombras de desconforto, de miséria do essencial. Era uma volta a um vale escuro. - Por que, no momento anterior, entre o adiantar-se para o centro da cidade e o recuo, sempre lhe escapava o ônibus que subia rumo à Guararapes? - Não lhe davam chance. Aparecia um ônibus e ele entrava, num impulso. Para o mesmo quadro: lá estava ele de volta, apertado, fedendo, entre cestos de bugigangas e velhos, à luz precária de velas. Na passagem de 29 para 30 de setembro, no entanto, sem aviso, nas mesmas condições do sonho de vários meses, Samuel pulou e se viu sentado no ônibus que o levaria ao centro do Recife. Ele não se perguntou, até porque os sonhos são desprovidos de retilínea lógica, como é que ele estando no ponto que o levaria para o sentido norte, tomou o ônibus que o levou para o sentido sul. E o veículo não veio na contramão, veio e continuou seu curso como se estivesse do outro lado. Ele nem se perguntou, tampouco, por que, estando à mesma hora dos sonhos anteriores, o que antes era noite, madrugada, sem transição virou dia, sereno, à boa hora da manhã em que a consciência recebe a luz na concórdia. Pois o que é o sonho se não a posse do corpo, do objeto, do sentimento do objeto, num desprezo total da estrutura física, do esqueleto? Que lhe importava a lógica? Estava indo ao centro. Então ele anotou, ao se levantar da cama a 30 de setembro, "consegui". E isto queria dizer, e ele o sabia, que estava rompendo laços que o amarravam à cama da mãe no outro quarto, e mais, que estava pulando fora do horizonte esmagador dos vizinhos da Ladeira do Sapoti, e mais, por fim, que ele estava indo para o futuro inscrito lá na Praça da República, quando se levantou de um banco. Pois estava indo para o centro da cidade. Livre. Em palavras mais claras: Samuel havia discutido e desenvolvido, com os olhos fechados, o que em sua vida estava em gérmen. Quando sua casa caiu em outubro, o ônibus do seu sonho ligou-se a seus dias. O que quer dizer: Em realidade objetiva, material, primária, Samuel entrou para a clandestinidade. |
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