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La insignia
15 de fevereiro de 2002


América Ibérica: três mundos e suas interconexões


Luís Carlos Lopes


A América Ibérica tradicionalmente foi e é considerada por intelectuais europeus e norte-americanos como o espaço do sonho e da incapacidade da razão. Os argumentos são muitos. Alguns destes se fundam na literatura, na tradição política e cultural, outros na especificidade da história e na dificuldade para mudanças. A essência conservadora desta parte do mundo é enfatizada, assim como sua baixa propensão tecnológica e sua ética de fundamento católico, longínqua do protestantismo capitalista.

Não há como negar que sonhamos, que buscamos a razão para além do sono, tal como Goya, que lutamos contra moinhos de vento como Quixote, sempre pelo que imaginamos serem causas justas. Desejamos navegar por mares nunca navegados como Camões, naturalizamos a escravidão negra e, pelo menos no discurso, demonizamos a escravidão dos índios como os missioneiros e Las Casas. Fomos e somos americanos, ibéricos e africanos fundidos em um só amálgama.

No passo seguinte de nossa história, acabamos com a escravidão africana e a sujeição indígena formal. Reinventamos a miséria, recriamos níveis de vida e diferenças sociais incompatíveis até mesmo com os limites da tecnologia que desfrutamos.

Vivemos ditaduras civis e militares, em nome da pátria, da família, da religião e da 'liberdade'. Elas duraram muito, dez, vinte, trinta ... anos eternos de sofrimento, tortura, censura e repressão. Mas também sofremos e morremos lutando contra elas, as vencemos, assistimos suas derrocadas com um sorriso nos lábios e a eterna esperança de dias melhores.

Somos, por definição, contraditórios e por vezes a 'esquerda oficial' metamorfoseia-se em 'direita de fato', sem quaisquer remorsos ou pruridos. Os ventos sopram nossos moinhos para muitos lados. Muitas vezes preferimos o sono à razão. Desdenhamos do método, preferindo a improvisação. Nada determina de modo definitivo que seja sempre assim.

Mas não é exatamente destas contradições que tiramos nossa humanidade e nossas possibilidades? Não é por aí que podemos encontrar nossa força, enfrentando o preconceito e auto-inferiorização? Somos mestiços, graças a Deus! Mesclamos o sangue e a cultura dos povos da Terra e combinamos o racismo intrínseco às nossas sociedades com a tolerância ao estrangeiro. A xenofobia não é nosso forte, só aparece ocasionalmente sem nos macular de sangue, a não ser em episódios isolados.

Vivemos hoje três mundos, ao mesmo tempo, sem tirar nem pôr... A materialidade do capitalismo com suas leis tendenciais e sua lógica irracional do lucro, a cultura burguesa com seus mitos e sua ordem jurídico-política operacional adaptada as nossas peculiaridades e nossa herança específica que mistura um pouco de tudo que nos conformou.

Esta herança tem raízes antigas. Foi construída a partir da contra-reforma, dos descobrimentos, colonização, escravização e sujeição de africanos e indígenas. Ela incluiu tanto o tomismo exasperado do oito ou oitenta, do tudo ou nada, a leitura local do positivismo como ideologia do progresso de poucos, como também nosso desejo inconformado de subverter a ordem que nos oprime e de buscar caminhos humanos para seres humanos, para além da não-transcendência da tecnologia. Esta, nós devoramos e vomitamos as sobras. Somos canibais, especializados em nos alimentarmos das mais diversas culturas.

Não nos reduziremos a máquinas inferiores, reproduzindo o que nos mandam fazer. Empunharemos nossas lanças, arcos e flechas e tacapes. Subiremos os Andes e veremos o mundo do alto, redimensionando nossa estatura moral. Faremos quilombos, com samba, tango, bolero, salsa e merengue. Cantaremos o fado no século XXI, travestido em samba-canção, dançaremos nas passarelas dos nossos carnavais com a elegância da arte flamenga e mais uma vez derrotaremos nossos moinhos de vento, buscando nossa própria razão, a possível ao nosso caminho. Não renegaremos nossas origens, buscando nelas o que há de mais positivo.

Enfrentaremos, como no passado, as fogueiras da Inquisição e o poder de déspotas, banqueiros, fazendeiros, burocratas e tecnocratas enfurecidos. Lutaremos pela liberdade contra os que, entre nós, cantam loas à morte física, à negação da inteligência e ao tilintar do vil metal. Algum dia, venceremos, contribuindo, sem qualquer vergonha, para a luta humana na direção de tornar o planeta mais humano, mesmo contra as mídias que nos embrutecem e o embuste de nossa inferioridade. Esta que é, aliás, uma das faces da opressão que pesa sobre nós.



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