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La insignia
11 de fevereiro de 2002


McVida!


Rui Bebiano
Non!. Portugal, 11 de fevereiro.


Existiam restrições impostas pelo governo do Estado Novo que mais pareciam pormenores de comédia. Aconteceu com o isqueiro, "perigoso" instrumento que carecia de licença paga para ser utilizado pelos cidadãos fumadores. E atenção que não era uma licença por isqueiro, mas sim por utilizador: uma família de dez elementos que partilhasse um único desses objectos precisaria... de dez licenças. Talvez fosse um modo de prevenção das tendinites. Aconteceu também com a Coca-Cola, a vulgaríssima bebida refrescante que, durante décadas, enquanto se incentivava o consumo de vinho, foi liminarmente banida do país. Eis algumas das palavras dirigidas por Salazar a Makinsky, responsável daquela multinacional para a Europa, no sentido de excluir qualquer possibilidade de distribuição comercial da bebida (transcritas por M. F. Mónica): "Sempre me opus à sua aparição no mercado português. Trata-se daquilo a que eu poderia chamar 'a nossa paisagem moral'. Portugal é um país conservador, paternalista e - Deus seja louvado - 'atrasado', termo que eu considero mais lisonjeiro do que pejorativo. O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que eu detesto acima de tudo, ou seja, o modernismo e a famosa efficiency. Estremeço perante a ideia dos vossos camiões a percorrer, a toda a velocidade, as ruas das nossas velhas cidades, acelerando, à medida que passam, o ritmo dos nossos hábitos seculares". Para não falar dos cartazes publicitários da empresa, evocadores de atitudes expansivas e joviais, ou da presença autónoma da mulher no espaço público, coisas que provocavam suores frios nos defensores dos padrões morais do regime.

Se o problema se pusesse na altura, semelhante destino teria, sem dúvida, uma tentativa de instalação dos restaurantes da cadeia McDonald's. Não por razões dietéticas, na jurada defesa do pão com chouriço e do copo de três, mas simplesmente por causa do colorido berrante do logótipo, das t-shirts justas dos empregados e das empregadas, dos estranhos bonés de basebol. Um atentado ignóbil, considerar-se-ia, à samarra e ao barrete. Mas ainda bem que assim não é e que podemos ver hoje entre nós aqueles mesmos espaços, decorados com um grande M amarelado sobre fundo vermelho, que, em tempos de dinheiro contado à justa, ainda ajudam muito boa gente a enganar a fome e a matar a sede.

Não sendo - como José Bové, o conhecido rosto da actual luta contra o pronto-a-comer planetário - partidário do encerramento puro e simples daqueles espaços que albergam regimentos de Big Macs, Cheeseburguers, Crispy Chicken e outros acepipes com cognomes americanizados e muito ketchup, resisto empenhadamente a entrar em tais sítios e esforço-me sempre que posso por dissuadir os outros de o fazerem. A razão é quádrupla: não se sabe minimamente aquilo que se come, não existe surpresa alguma no acto de comer pois o sabor é sempre o mesmo, engordamos imenso sem nos alimentarmos, e, aspecto assaz chocante, não há sopa. Mas, acima de tudo, deixei de ir a tais sítios por olhá-los como delegações locais de uma mcdonaldização que nos quer matar o prazer da comida saudável, personalizada, e nos tem vindo a marcar os ritmos de vida.

Por mcdonaldização - termo inventado pelo sociólogo George Ritzer - entende-se o processo de acordo com o qual as cadeias de restaurantes de fast food acabaram, sob vários aspectos, por influenciar diversas áreas da sociedade, como a educação, o trabalho, o divertimento, a política ou mesmo a vida familiar, tanto na América como, de forma crescente, no resto do mundo. Essa influência passa por uma aplicação a esses domínios dos princípios inerentes à organização dos McDonalds: eficiência, cálculo, previsibilidade e controlo. Aspectos que apenas podem ser aplicados organizando todas as actividades de uma forma absolutamente racional e rotineira. Para entendermos melhor a origem da ideia é preciso conhecer a história da McDonald's. Uma história que é contada, porém, de duas maneiras diferentes.

Take 1 (versão da empresa) - Tudo começou em 1954, quando Ray Kroc, um vendedor de batedeiras, achando muito estranho que uma hamburgueria situada perto do deserto de São Bernardino, Califórnia, precisasse de oito máquinas, decidiu meter-se no avião e ir lá dar uma espreitadela. O restaurante que encontrou, gerido pelos irmãos Maurice e Richard McDonald, era pequeno, mas os hambúrgueres eram saborosos, as batatas fritas bem tostadas e os batidos invulgarmente cremosos. O sucesso na área era inquestionável e assim Kroc comprou o nome McDonald's e começou a construir um império. A partir do comes-e-bebes obscuro e rascóide, no meio de nenhures, o génio do senhor Kroc teria produzido o milagre da multiplicação.

Agora o Take 2 (versão contada por Bill Bryson) - No mesmo ano de 54, quando Kroc entrou pela porta do tal estabelecimento, já os manos McDonald eram lendários no ramo. A revista American Restaurant publicara, dois anos antes, uma reportagem sobre eles, sucedendo-se a partir daí as visitas de pessoas que queriam ver como é que aqueles dois sujeitos conseguiam fazer tanto dinheiro num espaço tão pequeno. E Kroc só conseguiu convencer os irmãos a vender o negócio em 1961, quando a cadeia já tinha 200 restaurantes e os McDonalds, ambos com um pavor imenso de andar de avião, decidiram que não seriam capazes de administrar convenientemente a empresa por não se poderem deslocar através dos Estados Unidos.

Existe porém uma verdade que é comum a ambas as histórias: a McDonald's afirmou-se devido ao facto de produzir alimentos que os clientes conheciam de antemão, reduzindo o tempo de escolha e de espera, adaptando o produto à vida ritmada dos consumidores, a baixo custo devido à mecanização e à rotina. Riqueza de sabor e inovação era coisa olhada com desconfiança, uma vez que o objectivo central - produzir o máximo lucro - estava garantido. Daí ao alargamento da cadeia a todo o mundo seria um passo e, hoje, o palhaço Ronald, imagem de marca da empresa, apresenta-se como sendo "o sorriso que todo o mundo conhece", apenas ultrapassado, segundo dizem, pelo Pai Natal. Conta-se a propósito que uma menina japonesa, em férias com a família, chegou à Califórnia. Ainda no aeroporto de Los Angeles, olhou em redor, fixou-se num ponto e disse: "olha mãe, eles aqui também têm McDonalds!"

Espalhados por todo o lado, passaram a servir de modelo a muitas outras cadeias e até a simples postos de venda locais e individuais de comida pronta, destronando aos poucos muitos restaurantes de comida caseira barata e reduzindo o espaço de manobra dos barzinhos de petiscos que ainda apostam na qualidade, na surpresa, no atendimento pessoal, no tempo para saborear. E ao mesmo tempo, ampliaram, com o seu exemplo, "mcdonaldizaram", a velha ideia fordeana da produção em série. Monótona, barata e extremamente produtiva do ponto de vista comercial. Contando sempre, claro, com uma clientela pouco exigente, cheia de pressa ou com a carteira magra. É assim que hoje encontramos pastelarias, hipermercados, lojas de pronto-a-vestir, livrarias, bancos e até serviços públicos, como centros de saúde, correios, transportes, etc., que passaram a utilizar o mesmo esquema: reduzindo a escolha e baixando os custos, mecanizando e desqualificando os seus trabalhadores, forçando o cidadão a escolher o que existe tal qual existe. Se não gosta, adeusinho que está outro à espera. Até a política dos partidos institucionais lhe seguiu o caminho: slogans minimalistas, campanhas sem ideias, comícios cirúrgicos, desaparecimento do improviso, da espontaneidade, pura e simples venda do "produto". Tudo a copiar os senhores McDonalds!

Numa entrevista, publicada pelo site activista McSpotlight, perguntavam a Ritzer se, depois daquilo que escrevera, ainda comia nos restaurantes da McDonald's. A resposta foi pronta: "Mas que coisa posso eu fazer no meio de uma autoestrada se estiver cheio de fome e não houver outro lugar onde comer?" E até Manuel Vasquez Montalbán, gourmet e pai literário de Pepe Carvalho, o detective-gastrónomo, já reconheceu a mesma coisa. Como eles, nenhum de nós poderá jurar sobre o livro sagrado que jamais desse McQualquer-coisa comerá. Antes isso, francamente, do que os biscoitos do cão. Mas se o fizer apenas por não possuir uma qualquer alternativa é porque terá já consciência de que está perante uma forma violenta de opressão dos estômagos. E que todas estas práticas, que lhe copiam o modelo, configuram um atentado contra a liberdade de escolha e a qualidade de vida. Da nossa vida.



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